Bento Prado Jr. analisa Gilles Deleuze
O filósofo Bento Prado Jr. (1937-2007), professor da Universidade de São Carlos (UFSCAR-SP), compartilha de longa data com Gilles Deleuze o interesse pela obra do francês Henri Bergson. Em sua tese de livre-docência na USP, defendida em 1964 e publicada em 1989 com o título “Presença e Campo Transcendental – Consciência e Negatividade na Filosofia de Bergson“, Prado Jr. examinava a tentativa de superação, pela metafísica vitalista de Bergson, do dualismo entre sujeito e objeto. Dois anos depois, Deleuze publicaria sua análise da obra bergsoniana, em vários pontos coincidente com a tese de Prado Jr. Um novo encontro entre os dois pensadores acontecerá na palestra programada para os “Encontros Internacionais Gilles Deleuze“. Prado Jr. examinará aspectos do autor de “Mil Platôs” na conferência intitulada “Deleuze: da História da Filosofia à Filosofia“. Em entrevista por escrito à Folha, Prado Jr. analisa em detalhe o projeto filosófico de Deleuze e avalia os significados de sua obra.
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Folha: Para Foucault, “um dia, talvez, o século será deleuziano“. Que lugar Deleuze ocupa na filosofia do século 20 e que lugar ele deveria ocupar na filosofia futura?
Bento Prado Jr.: É cedo ainda para decidir sobre o lugar de Deleuze na filosofia do século 20. Para assim situar um contemporâneo nosso, seria preciso que sobrevoássemos nosso tempo e a nós mesmos. “A fortiori” é rigorosamente impossível antecipar o balanço que o século 21 fará do nosso (Bergson, numa entrevista, recusou-se a responder a alguém que lhe perguntava quais seriam os traços essenciais do teatro do futuro – e acrescentou que se pudesse antecipá-los faria esse teatro, que se tornaria presente; do mesmo modo, se eu pudesse antecipar a perspectiva da filosofia do século 21, eu a escreveria, trazendo-a para o século 20).
Folha: O sr. é autor de um trabalho sobre Bergson, “Presença e Campo Transcendental“. Como avalia a apropriação que Deleuze faz da obra bergsoniana?
Prado Jr.: Antes de apropriar-se da filosofia de Bergson, Deleuze escreveu alguns ensaios e um livro sobre Bergson como historiador da filosofia (embora seja preciso nuançar, como faremos logo adiante), que seguramente estão entre os mais notáveis (elite da elite) da enorme bibliografia consagrada ao autor de “Matéria e Memória“.
Devo dizer que meu próprio livro deve enormemente ao pequeno ensaio de Deleuze “La Conception de la Différence Chez Bergson“, de 1956. E acrescento que, se Deleuze tivesse publicado seu “Le Bergsonisme” em 1964 e não em 1966, eu teria perdido o assunto de minha tese. Mas, o que importa é que, fornecendo uma interpretação inspirada e rigorosa da filosofia de Bergson, Deleuze a articula com outras filosofias (Nietzsche, William James, Whitehead, Hume…), montando um dispositivo de iluminação mútua e cruzada em rede, criando assim o campo de uma nova iniciativa de pensamento. História da filosofia e filosofia se entrecruzam, a ponto de se tornarem indiscerníveis. Respondendo literalmente a pergunta, essa apropriação é “legítima” não só porque enriquece aquele que se apropria, mas também porque libera a obra apropriada de leituras viesadas ou pobres, reabrindo os canais para sua compreensão imanente.
Folha: O que significa a exigência deleuziana de pensar o mundo sob a lógica da mudança, do devir?
Prado Jr.: Como Bergson (por exemplo, no último capítulo de “A Evolução Criadora“), Deleuze vê na história da filosofia o desenvolvimento de uma mesma idéia da filosofia, subordinada aos princípios da identidade ou da representação soberana, rompida apenas, segundo ele, em momentos excepcionais (materialismo antigo, estoicismo, Espinosa, Hume, Nietzsche…). O que há de comum a toda tradição da filosofia é a cegueira para a irredutibilidade do sensível ao lógico ou ao conceitual (que não pode reabsorvê-lo sem resto) para a singularidade do Acontecimento, que não pode ser antecipado, re-conhecido ou (p)re-representado, que constitui o Ser mesmo do Devir.
Nessa idéia, convergem a idéia bergsoniana de heterogeneidade entre as duas multiplicidades (quantitativa e qualitativa) e a idéia humeana da imaginação como solo do espírito, caos que precede a normalização e a fixação dos princípios que o transformam em natureza humana. Essas duas formas radicais de empirismo (bergsoniana e humeana) levam Deleuze a uma remodelação da “Estética Transcendental” que libera o sensível da sua unificação conceitual ou intuitivo-formal, desligando-a da “Analítica Transcendental“, para ligá-la diretamente à “Crítica da Faculdade de Julgar“. O que se exibe assim é o sensível sem conceito, dispersão caótica ou Devir enlouquecido. O Devir não é antecipável, domesticável na recognição do conceito e passa a ser o verdadeiro signo do Ser. Só a idéia de Devir pode devolver, com sua rebeldia à representação, a espessura ou a dimensão do Ser – ou do Cosmos sobre fundo de Caos.
Folha: Qual a importância da crítica deleuziana à subjetividade como fundamento?
Prado Jr.: A crítica deleuziana à subjetividade como fundamento é menos uma originalidade de sua filosofia do que um ponto pacífico de toda reflexão contemporânea de vocação anti-fenomenológica, da filosofia analítica aos famosos “desconstrucionismos”, passando por todos neo-pragmatismos (o naturalista, norte-americano, e o transcendental, alemão) e por todos os estruturalismos. O que a distingue, talvez, é ver no sujeito fundante (cartesiano, kantiano, husserliano e mesmo hegeliano – conforme Gérard Lebrun, em “O Avesso da Dialética“, Companhia das Letras, págs. 254-257) um sujeito essencialmente representativo e submetido ao regime da identidade, “arquê” unificadora e síntese prévia da experiência, capaz de exorcizar toda forma de diferença rebelde. Trata-se de inverter a linha do pensamento, para levá-la para algo como um campo prévio, pré-subjetivo e pré-objetivo, donde constituir tanto sujeito como objeto. Contra a Filosofia do Sujeito, retomar o movimento da reflexão de Hume e de Bergson (a imaginação de Hume, entendida como coleção anônima -não sistema- de dados ou idéias, como conjunto sem estrutura ou centro, “coleção sem álbum, peça sem teatro, ou fluxo de percepções” – ou o campo das imagens do primeiro capítulo de “Matéria e Memória“, de Bergson, neutro epistemologicamente, onde ainda não se separaram o para-si e o em-si), de Sartre (o Sartre de “La Transcendence de l’Ego“, que projeta o ego para fora da consciência, definindo-o como tão transcendente quanto uma cadeira ou um pedregulho), de William James (o do “stream of thought” dos “Principles“, que lamentava não poder dizer, como seria necessário, em inglês, “it thinks”, como se diz “it rains”, já que a gramática do enunciado “I think” cria a ilusão da substancialidade do cogito). Não era já Nietzsche que via na identidade do cogito ou do sujeito fundador um efeito, apenas, de uma ilusão gramatical?
Folha: Que lugar esta crítica ocupa na formulação de uma ética e de uma política?
Prado Jr.: No campo da ética e da política, criticar o sujeito auto-fundante (a autonomia moral, por exemplo, no sentido kantiano) significa denunciar a heteronomia por sob a aparência da autonomia. Mais uma vez é Nietzsche a chave (ou o principal instrumento) da operação deleuziana.
No fundo, autonomia seria uma forma sublimada da heteronomia ou de interiorização de um poder (Lei ou Senhor) externo ou transcendente. Do ponto de vista político, significa, talvez, a mais perfeita expressão do esquerdismo na sua vertente anarquista. E poderia uma filosofia, cuja vocação essencial é a de instaurar uma metafísica “anarcôntica”, exprimir-se politicamente de maneira diferente?
As críticas endereçadas à política de Deleuze são muitas e diferentes. Alguns nela vêem, a despeito da alergia deleuziana pela dialética, o ressurgimento, à revelia do autor, da fraseologia dos jovens hegelianos de esquerda (Max Stirner, por exemplo). Outros, mais cruéis, nela vêem uma versão dramatizada e descabelada das posições radicais, mas muito bem comportadas (mais éticas que políticas), de um Alain: o indivíduo ou o cidadão contra os poderes.
Crítico particularmente duro, Vincent Descombes aponta sobretudo para o que seria o pseudo-marxismo de Deleuze (que, todavia, em “Conversações“, reafirma seu “marxismo”), já que, depois de descrever os efeitos destrutivos do capitalismo “…ele envia polidamente a luta de classes para o museu” (em “Le Même et l’Autre“, Ed. de Minuit, pág. 208).
Não me cabe desempenhar o papel de juiz, entre os acusadores e os advogados de defesa. Mas posso lembrar, pelo menos, que o que há de mais vivo, hoje, no marxismo parece também ter remetido ao museu, pelo menos, a idéia da organização da luta de classes, com a reconhecida falência da idéia do proletariado como classe universal. E, se não estou completamente enganado, Deleuze não estaria assim, hoje, em tão má companhia.
Folha: Quais as implicações da teoria das multiplicidades e do conceito de virtual para a reformulação dos conceitos de conhecimento e de verdade?
Prado Jr.: Os conceitos das multiplicidades (sublinhemos o plural) e de virtualidade são essenciais para evitar dois escolhos em que o pensamento pode encalhar, segundo Deleuze. Ou duas concepções aparentemente rivais da filosofia, mas que partilham uma mesma epistemologia e uma mesma ontologia, já que fazem do conhecimento um ponto terminal em que o pensamento atinge seu repouso final, sem resto, na sua coincidência com um objeto fixo desde sempre, que sempre esperou, bem comportado e em silêncio, a luz que finalmente o revela tal qual é, idêntico a si mesmo. Fenomenologia e filosofia analítica, visão de essência ou circunscrição lógico-funcional de estados-de-coisas parecem partilhar essa espécie de otimismo epistemológico e ontológico, que identifica pensamento e conhecimento.
A exposição mais clara das idéias de pensamento, conhecimento e verdade está presente em “O Que É a Filosofia” (Ed. 34), onde a filosofia é definida na tensão que a liga e a separa da ciência e da arte. Não se trata de privilegiar nenhum dos ângulos do triângulo assim definido, mas de mostrar a peculiaridade da relação que cada um deles estabelece com a verdade.
O que o livro nos oferece é a compreensão do que há de vertiginoso na filosofia – mas também, e seguindo o mesmo movimento de pensamento, do que há de vertiginoso na ciência e na arte. Filosofia, ciência e arte são planos irredutíveis, mas podem ser explorados segundo uma mesma estratégia; às instâncias da instauração filosófica, corresponderão instâncias simétricas da instauração artística e científica; “plano de imanência da filosofia, plano de composição da arte, plano de referência ou de coordenação da ciência; forma do conceito, força da sensação e figuras estéticas, funções e observadores parciais” (op. cit., pág. 277).
Mas é preciso sobretudo marcar o principal alvo polêmico do livro, que é a concepção da filosofia como análise lógica da linguagem. Ao que Deleuze responde com a afirmação do caráter não-proposicional da língua da filosofia. Ao contrário da proposição ou da função proposicional, necessariamente remetida a um estado-de-coisas real ou possível, ou ainda a um referente externo, na linguagem da filosofia o conceito não se reporta a nada que lhe seja exterior, ele se põe a si mesmo e é, assim, auto-referente. O estilo da filosofia é mais da ordem da “poiesis” que da “aletheia”. Mais uma vez, assim, distinguimos pensamento de conhecimento. E da verdade se poderá dizer que ela é refratada de modos diferentes nos planos diferentes da ciência, da arte e da filosofia.
Folha: O que significa para a filosofia a proposta deleuziana de subversão do paradigma transcendente, dominante desde Platão? Qual a relação desta proposta com a chamada “morte da metafísica”? Em resumo, para Deleuze, o que significa pensar?
Prado Jr.: É evidente que significa, antes de mais nada, retomar a iniciativa (e mesmo sua linguagem e seus “personagens conceituais”), mas sobretudo significa transformar Nietzsche em personagem conceitual de sua própria filosofia. Como se Nietzsche fosse também uma espécie de Zaratustra de Deleuze, mobilizado na guerra contra as formas contemporâneas da filosofia da identidade e da repetição. Nietzsche dizia que a morte de Deus não se consumaria enquanto mantivéssemos nossa crença na gramática. Deleuze diria, talvez, que a metafísica da identidade não terá morrido enquanto se acreditar que a análise lógica da linguagem é o método da filosofia.
Folha: Deleuze teve em Foucault seu mais destacado interlocutor. Porém, após a morte de Foucault, ele propôs a superação de um dos momentos da analítica do poder formulado no conceito de “sociedade disciplinar”. Em seu lugar, sugeriu o novo conceito de “sociedade de controle”. Em relação a que formas de poder visíveis, hoje, é pertinente aplicar o conceito deleuziano?
Prado Jr.: Esta questão é claramente respondida por Deleuze no “Post-Scriptum” de “Conversações“. Não se trata, propriamente, para Deleuze de opor-se a, ou de criticar, o conceito de “sociedades disciplinares“. Trata-se de apontar para uma transformação da sociedade contemporânea, apoiando-se justamente nas análises de Foucault e em continuidade com elas. Segundo Foucault o modelo do confinamento, que se esboça nos séculos 18 e 19, em substituição ao que chama de “sociedades de soberania“, culmina no início do século 20.
A sugestão de Deleuze é de que esse modelo começa a sofrer transformações depois da Segunda Guerra Mundial, quando o confinamento é substituído pelo esquema do controle. Eu cito: “A família é um ‘interior’ em crise como qualquer outro interior, escolar, profissional etc. Os ministros competentes não cessam de anunciar reformas supostamente necessárias. Reformar a escola, reformar a indústria, o hospital, o Exército, a prisão; mas todos sabem que essas instituições estão condenadas, num prazo mais ou menos longo. Trata-se apenas de gerir sua agonia e ocupar as pessoas, até a instalação das novas forças que se anunciam” (op. cit., pág. 220). Essa idéia de uma sociedade de controle -mas agora sou eu quem pergunta – não seria ela parecida com a idéia frankfurtiana da sociedade administrada?
Folha: O pensamento de Deleuze é frequentemente criticado por seus opositores como irracionalista e, às vezes, rotulado de pós-modernista. É preciso defender Deleuze destas acusações?
Prado Jr.: Irracionalismo é um pseudo-conceito. Pertence mais à linguagem da injúria do que da análise. Que conteúdo poderia ter sem uma prévia definição de Razão? Como há tantos conceitos de Razão quantas filosofias há, dir-se-ia que irracionalismo é a filosofia do outro. Ou, pastichando uma frase de Émile Bréhier, que na ocasião ponderava as acusações de “libertinagem”, poderíamos dizer: “On est toujours l’irrationaliste de quelq’un” (Sempre se é o irracionalista de alguém). Não, não é necessário defender Deleuze dessa acusação, à qual certamente não lhe ocorreria dar resposta. Basta sorrir. Quanto à questão do “pós-modernismo”, a atribuição – até onde posso perceber – cabe mais a Lyotard (que a transformou em cavalo de batalha em sua polêmica com os alemães) do que a Deleuze.
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Entrevista publicada no Caderno Mais! do Jornal Folha de S. Paulo em 02 de junho de 1996, por Cássio Starling Carlos.