A psicanalista e professora da PUC-SP, Suely Rolnik, participou do VII ENECULT – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, na Universidade Federal da Bahia – UFBA, com a palestra “Esferas da insurreição: sugestões para o combate à cafetinagem da vida“, transmitida ao vivo em 15 de setembro de 2017 pelo canal da UFBA no Youtube (acesso disponibilizado abaixo).
Neste ano Rolnik publicou pela editora N-1 o livro “Esferas da Insurreição: notas para uma vida não cafetinada” – título semelhante a palestra, o qual estão aprofundadas estas e outras ideias. Em seu prefácio, o filósofo Paul B. Preciado, deixa a seguinte mensagem acerca deste trabalho: “Este livro é como uma belíssima larva que cresce no esterco: a ondulação e a suavidade aveludada do pensamento de Suely Rolnik, seu riso contagioso, a falta de vergonha e de medo lhe permite entrar nas camadas mais obscuras do fascismo contemporâneo, nos guiar nos lugares que mais nos aterrorizam e tirar dali algo com o que construir um horizonte de vida coletiva, uma artista cuja matéria é a pulsão. Uma cultivadora dos bichos-da-seda da “izquierda bajo la piel”. Não se pode pedir mais de uma escritora: devir-larva, cartografar a lama com a mesma precisão com que outro cartografaria uma mina de ouro. Por isso, leitores, adentrem com essa larva no magma da besta e busquem os germens da vida que, ainda que desconheçam, os rodeiam, e que, com uma torção do olhar, poderiam ser seus – poderia ser sua própria vida”.
O trabalho apresentado abaixo se trata apenas da síntese do material utilizado e disponibilizado por Rolnik após sua apresentação na UFBA.
I – Insurreição macropolítica: um protesto programático das consciências
Foco (visível e audível): a assimetria de direitos nas formas de relação social estabelecidas pelo regime colonial-capitalístico. Relações de poder no âmbito das classes sociais, raças, gêneros, sexualidades, religiões, etnicidade, colonialidade…
Agentes (apenas os humanos): todos aqueles que ocupam posições subalternas nas relações de poder em todos os domínios da vida social.
O que move seus agentes: o impulso de ‘denunciar’ as injustiças do mundo em suas formas vigentes para mobilizar as consciências.
Intenção (empoderar-se): sair da invisibilidade e da inaudibilidade, para ocupar afirmativamente um lugar de fala e de direito de existência digna.
Desmantelar a assimetria nas relações de poder, promovendo uma redistribuição dos lugares que seja mais igualitária – não só no campo político, mas também nos campos social e econômico.
Critério moral de avaliação das situações: sistema de valores estabelecidos – bússola moral que orienta nossas escolhas e ações na esfera macropolítica.
Modo de operação (por oposição ao opressor para destituí-lo de seu lugar de poder): estratégias de luta contra o opressor e as leis que sustentam seu poder em todas suas manifestações na vida individual e coletiva.
Modo de cooperação (construção de movimentos organizados, via recognição identitária): em torno de uma mesma reivindicação (concreta) e em função de uma mesma posição (subalterna) num determinado segmento da vida social. Nesta posição, que pertence à esfera da ‘pessoa’ na experiência subjetiva, desenha-se um suposto contorno identitário, que facilita a necessária agrupação; o problema é quando a subjetividade confina-se neste contorno e a ele se reduz. Um modo de cooperação que gera força de pressão para viabilizar uma reversão efetiva nas relações de poder no plano institucional.
II- Insurreição micropolítica: um protesto pulsional dos inconscientes
Foco (invisível e inaudível): o abuso perverso da força vital da natureza, em todos seus elementos, o que inclui o humano. Esta é a matriz micropolítica do regime colonial-capitalístico: uma patologia altamente agressiva com graves sequelas para o destino do planeta.
Agentes (humanos e não-humanos): todos os elementos da biosfera que se insurgem contra a violência exercida sobre a vida. Os elementos não-humanos reconhecem instintivamente a despotencialização da vida resultante de seu abuso, produzindo transmutações que lhe permitem retomar seu curso. No elemento humano, sob o regime colonial-capitalístico, a redução da subjetividade à sua experiência como sujeito, leva o desejo a agarrar-se ao status quo, e a agir contra a perpetuação da vida.
Os agentes humanos da insurreição micropolítica são todos aqueles e aquelas que buscam resistir ao estupro de sua pulsão vital para retomar o poder de decidir o destino da mesma. O combate nesta direção atravessa toda a sociedade, estejamos na posição de subalternidade ou de soberania nas relações de poder.
O que move seus agentes: o impulso de perseveração da vida que, nos humanos, manifesta-se como impulso de ‘anunciar’ mundos por vir para mobilizar os inconscientes.
Intenção (potencializar-se): reapropriar-se da força vital e sua potência de criação, o que no humano depende de reapropriar-se igualmente da linguagem para que a pulsão encontre seu dizer, de maneira a tornar sensíveis os mundos que se anunciam ao saber-do-corpo. Esta é a condição para que o movimento pulsional se complete em seu destino ético, produzindo um acontecimento. A insurreição micropolítica é, nela mesma, uma ressurreição da força vital. A intenção aqui é produzir ‘potencialização’, o que é distinto de ‘empoderamento’.
Critério pulsional de avaliação das situações: o que a vida pede – bússola ética que orienta nossas escolhas e ações na esfera micropolítica.
Modo de operação (por afirmação da vida em sua essência germinativa, para desertar as relações de poder): não ceder ao abuso da pulsão, o que depende de fazer a travessia do trauma que tal abuso provoca e que prepara o terreno para o sequestro de sua potência. É este trauma o que nos faz permanecer enredados na cena das relações de poder, seja na posição de subalternidade ou de soberania (mesmo que nos insurjamos contra elas macropoliticamente).
Há que desertar seu papel, transfigurando seu personagem ou simplesmente abandonando a cena que, com isso, não tem mais como se sustentar. Construir para si um outro corpo, abandonando a carapaça de um corpo estruturado na dinâmica do abuso.
A resistência micropolítica é também e indissociavelmente uma resistência clínica: curar a vida de sua impotência, sequela de seu cativeiro na trama relacional do abuso.
Modo de cooperação (construção do comum, via empatia): tecer múltiplas redes de conexões a partir de situações, experiências e linguagens distintas, cujo traço de união é uma perspectiva ética: a afirmação da vida em sua essência transfiguradora e transvaloradora.
Criam-se territórios relacionais temporários, variados e variáveis, nos quais se produzem sinergias coletivas, provedoras de um acolhimento recíproco que favorece a travessia do trauma do abuso colonial-capitalistico. Tende a compor-se assim um corpo individual e coletivo resistente à cafetinagem da vida, capaz de a repelir.
De tais reapropriações coletivas da pulsão depende a possibilidade de constituição de campos de emergência de acontecimentos, nos quais configuram-se outros modos de existência e suas respectivas cartografias.