Gilles Deleuze: Uma Vida – por Silvio Gallo

Gilles Deleuze: Uma Vida - por Silvio Gallo

 
Gilles DELEUZE (1925-1995)

O que é a imanência? uma vida… Ninguém melhor que Dickens narrou o que é uma vida, ao considerar o artigo indefinido como índice do transcendental. Um canalha, um mal sujeito, desprezado por todos, está para morrer e eis que aqueles que cuidam dele manifestam uma espécie de solicitude, de respeito, de amor, pelo menor sinal de vida do moribundo […] Uma vida não contém nada mais do que virtuais. Ela é feita de virtualidades, acontecimentos, singularidades.¹

Deleuze escreveu essas frases naquele que é considerado o último texto escrito por ele. Apareceu na Revista Philosophie, publicada pelas Éditions de Minuit, uma das editoras com as quais ele colaborou, em seu número 47, datado de 10 de setembro de 1995. Em novembro desse mesmo ano ele estaria morto. O acontecimento Gilles Deleuze veio ao mundo em Paris, 70 anos antes, mais precisamente no dia 18 de janeiro de 1925, filho mais moço de um engenheiro. Que virtualidades, que singularidades estariam presentes nessa vida?

Deleuze fez seus estudos médios no Liceu Carnot, em Paris, e após sua conclusão matriculou-se na Sorbonne, para estudar filosofia. Nessa instituição, assistiu aos cursos de professores renomados, como Jean Hippolyte, Ferdinand Alquié e Maurice de Gandillac, por exemplo. Seu ingresso na Sorbonne deu-se em 1944 e, em 1947, obtinha o diploma de estudos avançados sobre Hume, que desenvolveu sob a orientação de Jean Hippolyte e Georges Canguilhem. Deleuze apresentará sua tese de doutorado tardiamente, em 1968, quando já era um professor experiente e reconhecido, com vários livros publicados. Na universidade francesa, são apresentadas duas teses, a principal e a complementar; a tese principal de Deleuze foi intitulada Diferença e Repetição, enquanto que a complementar foi Spinoza e o problema da expressão. A primeira foi orientada por Maurice de Gandillac; a segunda, por Ferdinand Alquié. Nas entrevistas de O Abecedário de Gilles Deleuze o filósofo narra, bem-humorado, o episódio de sua defesa de tese na Sorbonne: foi a primeira sessão de defesa de tese após as manifestações de maio de 68 e estavam todos muito assustados, a banca mais preocupada em observar se não havia manifestantes por perto, que poderiam violentamente interromper a sessão, do que interessada na própria apresentação do candidato. De toda forma, Deleuze foi, evidentemente, aprovado e ambas as teses seriam publicadas em seguida como livros, ainda nesse ano de 1968. 

Já em 1948, logo após concluir a graduação, prestou a agrégation, concurso público para ingresso no magistério, na área de Filosofia. Entre 1948 e 1957 foi professor de Filosofia na educação média francesa, em princípio nos Liceus de Amiens e de Orléans, transferindo-se, finalmente, para Paris, onde trabalhou no Liceu Louis-le-Grand. Em 1957 ingressou na carreira universitária, sendo que até 1969 exerceu diversos cargos: assistente, na Sorbonne, em História da Filosofia (1957-1960); pesquisador (entre 1960- 1964), no Centro Nacional de Pesquisa Científica (o famoso CNRS, na sigla em francês); encarregado de ensino, na faculdade de Lyon (entre 1964 e 1969). 

Em 1969, foi nomeado, por indicação de Michel Foucault, professor na recém-criada Universidade de Paris VIII – Vincennes, onde permaneceria até sua aposentadoria, em 1987. A experiência de Vincennes foi Sui generis: fruto da reforma universitária empreendida pelo governo francês após as agitações do “maio de 68”, na qual as universidades passam a ser regidas pelos princípios de autonomia, pluridisciplinaridade e participação dos usuários, Vincennes é o primeiro “Centro Experimental” criado, justamente com o objetivo de promover novas perspectivas de produção e ensino acadêmicos. Por indicação de Georges Canguilhem, a direção do Departamento de Filosofia é entregue a Foucault, que fica encarregado de contratar os professores. O primeiro a ser solicitado é Deleuze; porém, devido a estar bastante doente, só poderá atender ao chamado dois anos depois, quando Foucault já terá deixa- do Vincennes, para assumir sua cátedra no College de France. Dentre os contratados por Foucault e com os quais Deleuze trabalharia, podemos citar: François Châtelet, Jacques Ranciere, Alain Badiou, entre outros. 

O Centro Experimental de Vincennes será determinante na experiência docente de Deleuze e também na construção de seu pensamento transversal. Sobre essa experiência, escreveu ele: 

Em Vincennes, a situação é diferente. Um professor, digamos, de filosofia, fala de um público que inclui, com diferentes níveis de conhecimento, matemáticos, músicos (de formação clássica ou da pop music), psicólogos, historiadores, etc. Ora, em vez de “colocar entre parênteses” essas outras disciplinas para chegar mais facilmente àquela que pretendemos lhes ensinar, os ouvintes, ao contrário, esperam da Filosofia, por exemplo, alguma coisa que lhes servirá pessoalmente ou que tenha alguma intersecção com suas atividades. A Filosofia lhes interessará, não em função de um grau de conhecimento que eles possuiriam nesse tipo de saber, mesmo quando se trata de um grau zero de iniciação, mas em função direta de sua preocupação, ou seja, das outras matérias ou materiais dos quais eles têm já um certo domínio. É, pois, por conta própria que os ouvintes vêm buscar alguma coisa num curso. O ensino da filosofia orienta-se, assim, diretamente, pela questão de saber em quê a filosofia pode servir a matemáticos, ou a músicos, etc. – mesmo, e sobretudo, quando ela não fala de música ou de matemática […]. 

A presença de numerosos trabalhadores e de um grande número de estrangeiros confirma e reforça essa situação […]. Atualmente, esse método está ligado, na verdade, a uma situação específica de Vincennes, a uma história de Vincennes, mas que ninguém poderá suprimir sem fazer desaparecer também uma das principais tentativas de renovação pedagógica na França. O que nos ameaça é uma espécie de lobotomia do ensino, uma espécie de lobotomia dos docentes e dos discentes, à qual Vincennes opõe uma capacidade de resistência.²

Deleuze nunca foi um homem da mídia, um filósofo da mídia, à moda de um Sartre ou de um Foucault. De espírito retraído, nunca gostou de viajar, de estar em congressos, de dar entrevistas. Mas foi um grande professor, em Vincennes e anteriormente a ela, como mostra seu público, sempre numeroso e diverso. Ao Magazine Littéraire certa vez definiu seus “sinais particulares”: “viaja pouco, jamais aderiu ao Partido Comunista, jamais foi fenomenólogo nem heideggeriano, não renunciou a Marx, não repudiou Maio de 68.”³ Numa entrevista a Raymond Bellour e François Ewald, em 1988, instado a falar sobre sua vida, afirmou o seguinte:

As vidas dos professores raramente são interessantes. Claro, há as viagens, mas os professores pagam suas viagens com palavras, experiências, colóquios, mesas-redondas, falar, sempre falar. Os intelectuais têm uma cultura formidável, eles têm opinião sobre tudo. Eu não sou um intelectual, porque não tenho cultura disponível, nenhuma reserva. O que sei, eu o sei apenas para as necessidades de um trabalho atual, e se volto ao tema vários anos depois, preciso reaprender tudo. É muito agradável não ter opinião nem idéia sobre tal ou qual assunto. Não sofremos de falta de comunicação, mas ao contrário, sofremos com todas as forças que nos obrigam a nos exprimir quando não temos grande coisa a dizer. Viajar é ir dizer alguma coisa em outro lugar, e voltar para dizer alguma coisa aqui. A menos que não se volte, que se permaneça por lá. Por isso sou pouco inclinado às viagens; é preciso não se mexer demais para não espantar os devires.[4]

Adiante, na mesma entrevista, Deleuze fala de sua experiência como professor: 

As aulas foram uma parte da minha vida, eu as dei com paixão. Não são de modo algum como as conferências, porque implicam uma longa duração, e um público relativamente constante, às vezes durante vários anos. É como um laboratório de pesquisas: dá-se um curso sobre aquilo que se busca e não sobre o que se sabe. É preciso muito tempo de preparação para obter alguns minutos de inspiração. Fiquei satisfeito em parar quando vi que precisava preparar mais e mais para ter uma inspiração mais dolorosa […] Um curso é uma espécie de Sprechgesang [canto falado], mais próximo da música que do teatro. Nada se opõe, em princípio, a que um curso seja um pouco até como um concerto de rock. [5] 

Encontros. Os encontros foram virtualidades importantes na imanência Deleuze, que geraram agenciamentos e intercessores. No plano da “vida privada”, podemos citar seu encontro com Denise Paute Grandjouan (conhecida depois por Fanny Deleuze), com quem se casou em 1956 e com quem teve dois filhos. Fanny foi também companheira de militância de Gilles, estando junto dele quando das atividades com o Grupo de Informação sobre as Prisões (GIP), criado por Foucault em 1971. 

No plano da divulgação de sua obra, foi importante o encontro com a jornalista Claire Parnet. Com ela escreveu Diálogos, em 1977, considerada uma boa introdução a seu pensamento. Em 1991, Parnet concebeu e produziu uma série de entrevistas com Deleuze, já bastante debilitado pela doença, cujo fio condutor são as letras do alfabeto. Para cada uma delas Parnet escolheu uma palavra significativa na vida/obra de Deleuze e sobre a qual ele discorreu livremente, de forma mais breve ou demorada, dependendo do caso. Avesso à mídia, o acordo foi que a entrevista só viria a público após sua morte. É hoje um importante documento vivo sobre o homem-Deleuze, o filósofo-Deleuze. [6] 

No plano filosófico, dois encontros foram determinantes. Em 1962, encontrou-se com Michel Foucault em Clermont-Ferrand, encontro promovido por Jules Vuillemin. A amizade com Foucault começa por uma afinidade filosófica: o interesse por Nietzsche; os dois seriam os responsáveis pela edição crítica das obras completas do filósofo alemão em francês, entre 1966 e 1967. Essa amizade filosófica manifesta-se numa série de artigos: Foucault comenta Deleuze; Deleuze comenta Foucault. Em 1970, Foucault escreveu o artigo “Theatrum Philosoprucum”, publicado na importante revista Critique, no qual comenta longamente dois livros de Deleuze, recém-lançados: Diferença e repetição e Lógica do sentido, e lança uma frase que se tornaria famosa: “um dia, talvez, o século será deleuziano”. A amizade se estende pelas opções políticas de esquerda e, sobretudo pelo ativismo: Deleuze militou com Foucault junto ao GIP: Grupo de Informação sobre as Prisões, no início dos anos 1970. Mas é também a política que os afasta: divergências de concepções políticas e de militância, que se agravam no final de 1977, fazem com que os dois simplesmente nunca mais voltem a se encontrar.[7] Não obstante, após a morte de Foucault, em 1984, Deleuze lança um belo livro dedicado à filosofia do amigo. O curioso nesse encontro filosófico, é que Deleuze e Foucault nunca escreveram nada juntos: suas obras tangenciam-se nos interesses e nas perspectivas, mas em termos de produção teórica a única coisa que fizeram juntos foi darem entrevistas, como aquela famosa sobre Os Intelectuais e o poder, de 1972. [8] 

Em 1969 acontece o encontro filosófico mais importante de Deleuze: aquele que se deu com Félix Guattari. Deleuze, após uma série de estudos em História da Filosofia, produzindo obras sobre Hume, Spinoza, Nietzsche, Kant, Bergson, acabava de produzir duas obras monumentais, nas quais lançava-se à aventura de um pensamento sem redes de segurança nem botes salva-vidas: Diferença e Repetição e Lógica do Sentido. Guattari, por sua vez, havia abandonado a psicanálise estruturalista de Lacan e o modelo revolucionário leninista, interessando-se pelos investimentos revolucionários do desejo na vida cotidiana, e estava desenvolvendo a psicoterapia institucional na clínica La borde, com Jean Oury. Juntos, produziram os dois magistrais volumes de Capitalismo e esquizofrenia: O Anti-Édipo, em 1972, e Mil Platôs, em 1980, além do volume sobre a literatura de Kafka, em 1975, Kafka: por uma literatura menor, e da última grande obra dos dois e de cada um deles: O que é a Filosofia? (1991). Com Félix Guattari, Deleuze desenvolveu um estilo de produzir filosofia. 

Numa entrevista de 1985, assim Deleuze pronunciou- se sobre sua parceria com Guattari: 

O essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Sem eles não há obra. Podem ser pessoas – para um filósofo, artistas ou cientistas; para um cientista, filósofos ou artistas – mas também coisas, plantas, até animais, como em Castañeda. Fictícios ou reais, animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores. É uma série. Se não formamos uma série, mesmo que completamente imaginária, estamos perdidos. Eu preciso de meus intercessores para me exprimir, e eles jamais se exprimiriam sem mim: sempre se trabalha em vários, mesmo quando isso não se vê. E mais ainda quando é visível: Félix Guattari e eu somos intercessores um do outro. [9]

Deleuze foi perdendo seus intercessores. Em 1984, morreu Foucault. Em 1992, morreu Guattari, logo depois que haviam publicado O que é a Filosofia? Sua doença se agravou: sofria de uma insuficiência pulmonar que lhe tirava as possibilidades de uma vida ativa. Aos poucos, viu-se obrigado a abandonar todas as suas relações sociais e, por fim, inclusive suas atividades de escrita. Sentindo suas virtualidades e suas forças esvaídas, Deleuze pôs fim à própria vida: jogou-se da janela de seu apartamento em Paris, em 04 de novembro de 1995.

________________________________________________ NOTAS

1. DELEUZE, Gilles. L’Immanence: une vie… Philosophie, n. 47. Paris: Les Éditions de Minuit, 1° de setembro de 1995, p. 5-6. Cito aqui na tradução de Tomaz Tadeu, Revista Educação & Realidade, n. 27/2.

2. DELEUZE, Gilles. Em quê a filosofia pode servir a matemáticos, ou mesmo a músicos… Educação & Realidade, jul./dez. de 2002, v. 27, n. 2, p. 225-226. 

3. Magazine Littéraire, n. 406, frévier 2002, L ‘effet Deleuze – philosophie, estétique, politique, p. 20.

4. DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 171-172.

5. DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 173-174.

6. L’abécédaire de Gilles Deleuze está disponível em vídeo no mercado francês. No Brasil, uma versão legendada em português é veiculada pela TV Escola, do MEC, na série Ensino Fundamental.

7. Sobre a amizade Deleuze-Foucault e seu afastamento, ver a biografia de Foucault escrita por Didier Eribon: Michel Foucault – uma biografia. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.

8. A entrevista de Foucault e Deleuze sobre os intelectuais e a política pode ser encontrada em português em duas fontes: na coletânea de textos de Foucault organizada por Roberto Machado, com o título Microfísica do poder, publicada pela editora Graal; ou no vol. IV dos Ditos e escritos, de Michel Foucault, edição brasileira pela Forense Universitária, sob a direção de Manoel Barros da Mota.

9. DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 156.

___________________ FONTE GALLO, Silvio. Deleuze & a Educação. Editora Autêntica.

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