“A arte da performance liberando o instante à vertigem de emergência de universos ao mesmo tempo estranhos e familiares, tem o mérito de levar ao extremo as implicações dessa extração de dimensões intensivas, atemporais, a-espaciais, a-sigificantes a partir da teia semiótica da cotidianeidade.” (Félix Guattari)
Artistas e pesquisadores do teatro e da dança, ao buscarem conceituar o ato performático, concordam sobre seu caráter diferencial no cenário das manifestações artísticas. A performance lida com o chamado multiplex code, que se caracteriza por misturas de elementos multimídia (COEHN, 2007) e pela multiplicidade derivativa de elementos cênicos, composições que se apropriam de gestos, movimentos, como fonte de expressão visando perturbações ao lugar comum das coisas codificadas.
O fazer artístico contemporâneo desdobra-se na radicalidade da contramão à lógica racionalista que busca no sentido único, no significado datado das coisas do mundo, seu suporte para o pensamento.
Considera-se que J. Beyus foi um dos artistas pioneiros, entre outros, na condução de imagens cênicas, ao utilizar elementos que ousassem desconstruir os conjuntos semiotizados impeditivos de apreensão de uma realidade suprassensível, ou seja, impeditivos de transformar os processos de arte em forma de vida.
Nesse sentido apropriamo-nos de uma lógica em que a ideia seria criar um campo de pensabilidade fora do que orienta o pensamento entendido como representação. Dentro dessa perspectiva, articulam-se algumas contribuições dos filósofos contemporâneos, como Foucault, Deleuze, e psicanalistas, como Guattari e Winnicott, que buscam, com seus construtos teóricos e clínicos, atravessar os modelos redutores de apreensão do mundo, de maneira a oferecer novos planos de pensabilidade a partir da experimentação, entendida aqui como uma experiência estética.
Construímos desde aqui uma oportunidade para discutir sobre os ajustamentos semióticos aos quais estamos submetidos a fim de que, pensando o pensamento, possamos desajustar os processos impeditivos de outros olhares para mundos possíveis. Pensar o pensamento foi a tarefa levada a termo pelas questões trazidas por Foucault em sua genealogia do pensamento ocidental, legando-nos, de uma vez por todas, a herança de não poder mais se iludir com a noção de verdade, origem e fundamento.
Assim, entendemos a contribuição do ato performático como uma forma de possibilitar, por meio da experiência cognitiva sensorial, o acesso a campos que ultrapassam a compreensão racional de significados. Portanto, torna-se necessária uma discussão do que se entende por experiência estética.
Numa tentativa de retirar o termo “estética” de certo lugar-comum, aproximamo-nos da proposição nietzschiana do transformar a vida em uma obra de arte.
Segundo alguns pesquisadores e coreógrafos, uma manifestação artística estaria associada ao que se entende como senso comum relativo à palavra estética: uma experiência ligada ao belo como o transcendente, uma observação distanciada que permite um julgamento racional2, um juízo de gosto – como Kant propunha, assentado na razão transcendental. Porém tal regulação limita a compreensão da dimensão crítica que esses outros filósofos nos aportaram.
Assim, o entendimento senso comum do termo estético distancia e distorce a experiência estética de seu campo de sustentação ontológico, qual seja: a estesia, como condição sensível do corpo que, no seu encontro com o mundo, possibilita a apreensão de campos diferenciais, permitindo desventramentos de mundos.
Mesmo que Cohen (2007, p. 127) tenha aproximado a performance da experiência estética, segue mantendo na ideia de estética o teor do significado, sustentando a percepção estética associada ao universo da representação. Já Fernandes (2010, p. 126) defende:
A ação é o ponto nevrálgico de toda performance, que se estrutura com base em um fazer e não no ato de representar [revelando que] as operações performativas […] são as maiores responsáveis pelo desvio paulatino das exigências de representação […] transformando o apelo puramente especular em encorajamento de percepções sensoriais.
Em outro comunicado, Cohen (2012) parece redimensionar a questão estética aproximando-a mais da experiência com o vivido fora da representação, por evocar o termo estética como campo das forças:
Nesse contexto, contemporâneo, a “performação” contrapõe-se aos paradigmas da representação: aos espaços “auráticos” da cena […] o aporte das novas tecnologias […] amplificam os mecanismos de mediação, virtualização e refratação da percepção e captação de códigos sensíveis […] demarcam tempos, espaços, corporiedade […]. A questão que se propõe na arte da performance é de uma mediação e intervenção nos planos de realidade, superando os limites entre os campos do real e da ficcionalidade, entre sujeito e receptor da obra, dando complexidade e polissemia à produção do evento.
Nessa medida, podemos conjugar à ideia de performance o nonsense, o paradoxo, o espaço diferencial e, assim, nos aproximarmos de um campo de fluxos longe do senso comum e do bom senso, pois estes, segundo Deleuze (1974), só fazem repetir predicados e caminham sempre na mesma direção, buscando a harmonia e o linear.
Com base nessa concepção, propomos que o ato performático realiza agenciamentos de semiotização, impedindo que se prenda ao mesmo sistema interpretativo o mesmo invariante de figura de expressão, o que torna obscura e misteriosa a articulação entre conteúdo e expressão; “o caos, ao invés de ser um fator de dissolução absoluta de complexidade, torna-se o portador virtual de uma complexificação infinita” (GUATTARI, 2000, p. 78) e ainda “a complexidade, liberada de suas sujeições discursivas significantes, se encarna então em danças maquínicas abstratas, mudas, imóveis e extraordinárias” (GUATTARI, 2000, p. 105).
Deleuze e Guattari inauguram, ao tecerem tais ideias, a possibilidade de sair de um modo molar de funcionamento das coisas do mundo para favorecer a captação do campo intensivo, que diz respeito ao modo molecular de funcionamento da vida. Esse campo molecular, sutil ao se congelar em uma forma, faz emergir o mundo molar. O performer seria aquele capaz de, ao atravessar o mundo molar, o mundo das formas, captar as forças moleculares e, assim, produzir um campo de afetação em que a experiência estética se compõe pela sensação, campo de imanência, desajustando os espaços codificados, sendo, portanto, sempre inaugural.
Este é o sentido radical de uma estética da imanência: “ela se deseja gesto e não representação, Darstellung e não Vorstellung, processo e não aspecto, contato e não distância” (DIDI-HUBERMAN, 2003, p. 143).
É nesse sentido que nos provoca Beuys3 com sua proposta de campo alargado da arte, em que o artista possibilita, por meio de ações, o acesso ao inconsciente enquanto força, de maneira a permitir que autor e espectador se comuniquem ao captar as forças e se colocar em ação: viabilizar que o invisível de algo seja percebido.
A corporeidade compõe-se de atravessamentos, de informações que se encontram virtualizadas. Antes das formas, retendo a vontade que dirige todo o pensamento, seria possível, por meio das contraimagens, a produção de diferenciais.
Ao interpelar as forças inconscientes do espectador, não o inconsciente recalcado, mas os vazios – o que se coloca entre ausência de representação de coisa ou imagem e as pulsões –, o artista seria capaz de expressar o caráter imanente das coisas do mundo. Uma ação, portanto, seria o dispositivo capaz de criar imagens inconscientes indutora de forças que favoreceriam a emergência das contraimagens.
Tais estados se sustentam na atualização de um campo de virtualidades sempre presentes que, como processos subjetivantes, operam por forças ainda não codificadas, transduzindo-se4 em formas. Essas forças estão em um campo intensivo como virtualidades, que são atualizadas no processo de construção de mundos, a partir da preensão perceptiva. Embora não conscientes ou conscientizáveis, esses virtuais se dão aos sentidos por micropercepções dos espaços moleculares e vão constituir parte do dialeto de cada um.
A alusão rítmica, conceito proposto por Gil5, parece estar referida ao espaço idiolectal, entendido como o dialeto próprio, como algo singular no tocante às inscrições já realizadas na trajetória pessoal, de forma a marcar a instalação na subjetividade de um quase-território, mas que ainda não pode ser nomeado, mostrando-se como uma espécie de névoa que indicaria algum contorno.
José Gil (2001) apoia-se na trilha das pequenas percepções para nos trazer a contribuição da experiência da dança como produzida pelo encontro dos corpos, por meio de efeitos que ele designa como efeito nuvem. Este faria parte das experiências captadas para além do codificado, dos espaços localizáveis e que não temos uma consciência vigil. O efeito nuvem poderia ser entendido como um lugar entre o visível (gestos codificados) e o invisível (forma das forças). São essas nuvens de sentido que, no avesso da intencionalidade, invadem o corpo pelos movimentos; constituindo a consciência do corpo, seus movimentos tornam-se movimentos de pensamento.
As nuvens de sentido sendo formas móveis, como poeiras que se organizam momentaneamente num sentido, mas que rapidamente se deslocam para outro movimento, infinitamente, possibilitariam a emergência de comunicação entre os inconscientes, que, segundo Beuys, não se liga a uma experiência individual, e sim a uma imagem-nua, a uma ação. Imagem-nua é algo que pertence às pequenas percepções, ao mundo a-significante, ao campo imanente da existência.
Em seu livro A arte como linguagem, José Gil (2010) aproxima a experiência estética da produção de mundo e a localiza no despertar do artista e da criança no contato com os existentes. Segundo o autor (2010, p. 55),
antes da intencionalidade da consciência que pressupõe o objeto dado, existe uma ligação com o mundo, que visa este mundo como mundo animado. Na percepção de uma coisa forma-se sempre um devir-coisa […] [que] está indelevelmente inscrito na percepção que o artista e a criança tem do mundo. Na percepção daquela mesa por Beuys que acha demasiado baixa como um rafeiro, há um devir-cão da mesa. Não se pode percepcionar sem projetar a vida no mundo.
Winnicott, psicanalista inglês que contribuiu de forma decisiva para uma releitura da psicanálise, enfatiza a importância de atentar para as experiências primárias do desenvolvimento, onde se localizariam vivências de captação de mundo pelos sensos de eu. Espaço/tempo a-significante em que a comunicação se daria aí, neste vir a ser, na processualidade, neste fluxo intensivo em que o percepcionar está impregnado de uma corporeidade aberta, deiscente.
A potência do corpo desenvolve-se sobre um fundo de impotência primeira. Em virtude de sua prematuridade e de sua dependência ao meio exterior a criança está aberta aos agenciamentos intensivos. Por tal via nos esforçamos, por meio dos cuidados, para que o corpo do bebê se torne capaz de ter consciência de si e do outro. Constata-se, assim, que a fragilidade inicial é uma força de onde o corpo humano retira sua potência, justamente por ser uma forma em formação.
A infância, em todos nós, preserva seu olhar a-significante sobre o mundo, campos pré-discursivos em que a intensidade, que subjaz ao discurso, mantém a linguagem viva. A esse intervalo Foucault (1971) denomina o fora do discurso e nos propõe perceber que, justamente, nesse território em que operam as forças – o campo intensivo, e pela chance de tangenciá-lo – nos é possível sair de um ajustamento semiótico. Tal ajustamento, que escraviza os sentidos pelo fechamento dos códigos, opera uma redução na capacidade crítica de perceber o mundo.
No processo de vir-a-ser, este outro que se institui na alteridade e que denomina mãe é “um banho de palavras, são olhares, sorrisos, contatos, braços que amparam – o que se chama na falta de melhor coisa, ambiente” (PONTALIS, 1991, p. 117). Essa afirmação nos coloca diante não só da dimensão da singularidade, como também da dimensão necessária da ação, da estesia, da corporeidade na experiência primária constituída na afecção com o mundo.
A capacidade transdutora do corpo refere-se às proposições enunciadas por Deleuze e Guattari, assim como Foucault, ao aproximar a vida em sua produção à ideia de obra de arte, ou seja, à possibilidade de que nos processos de subjetivação se constituam espaços estéticos de resistência, linhas de fuga aos mecanismos de poder, fazendo emergir outras formas de estar no mundo. Contemplamos, também, essa sintonia de ideias em Winnicott quando este destaca:
Através da expressão artística, há a esperança de manter contato com nossos selves primitivos, de onde se originam os sentimentos mais intensos e sensações amedrontadoramente agudas e ficamos realmente empobrecidos se somos apenas sãos (WINNICOTT, 1978, p. 285).
Sob essa perspectiva, o trabalho performático, operando por transdução, possibilita o acesso ao campo pré-individual, ao coletivo transindividual como território das forças que devém formas. Nesse sentido, o corpo sustenta, no ato poético, sua extensão política ao se tornar fazimento de si mesmo no encontro do campo sutil das coisas do mundo.
A arte, assim, afirma a vida inventando novas possibilidades de existência e tem como finalidade última, se é que existe, uma subjetivação sempre a conquistar. Por intermédio de processo de captação do real reinventa-se a vida de modo a combater a rigidificação codificada de que o poder necessita para se constituir em sua tirania. A singularização, a individuação consiste, justamente, em um processo de transdução em que o pré-individual se torna acessível para produzir o deslocamento necessário, viabilizando novos territórios existenciais, resistindo à uniformização do pensamento e das condutas.
Trabalhando na potência do campo pré-individual, Agamben (2007) fala-nos, em seu livro Profanações, sobre a força disruptiva da existência e seu poder criador:
Todo o impessoal em nós é genial; genial é, sobretudo, a força que move o sangue em nossas veias ou nos faz cair em sono profundo, a desconhecida potência que, em nosso corpo, regula e distribui tão suavemente a tibieza e dissolve ou contrai as fibras dos nossos músculos. É Genius que, obscuramente, apresentamos na intimidade de nossa vida fisiológica, lá onde o mais próprio é o mais estranho e impessoal, o mais próximo é o mais remoto e indomável. Se não nos abandonássemos a Genius, se fôssemos apenas Eu e consciência, nunca poderíamos nem sequer urinar. Viver com Genius significa, nessa perspectiva, viver na intimidade de um ser estranho, manter-se constantemente vinculado a uma zona de nãoconhecimento (AGAMBEN, 2007, p. 17).
O impessoal, sendo o que nos ultrapassa, implica estranheza no que da vida não é nossa posse: é poder falar do resto, do lixo, do banal, do vergonhoso retirando a rede de sentidos que torna esses fluxos codificados como negativos, entendendo, desde aí, arte como aquilo que pode restaurar o livre uso do mundo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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FONTE
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