TEMPO, LIBERDADE E EMOÇÃO. ENTREVISTA COM DAVID LAPOUJADE

Por ocasião da publicação de Potências do tempo pela editora Cactus, de Buenos Aires, David Lapoujade concedeu aos editores a entrevista que reproduzimos na íntegra. O livro foi recentemente publicado em português pela n–1 Edições. Na entrevista, Lapoujade esclarece como foi possível rearranjar temas clássicos do bergsonismo sobre bases que nos lançam a diversos problemas atuais.


Antes de tudo, gostaríamos de saber o que te levou a trabalhar sobre Bergson, quais problemas conduziram você a ele, e o que você procurava?

 Sempre trabalhei sobre Bergson, como estudante e depois como professor. A princípio, é um gosto por sua filosofia, um gosto intraduzível, mas que eu explorei, um gosto pelos problemas que ele coloca, por sua escrita elegante e direta. Em seguida, este gosto se reforçou com a leitura de Deleuze, que me fez gostar de Bergson de outro jeito. Mas se escrevi este livro é por causa de um livro anterior sobre William e Henry James, Fictions du pragmatisme. Em Henry James, notadamente, encontramos personagens que vivem fechados numa espécie de tempo exterior, como a personagem da novela A fera na selva que espera, ao longo de toda sua vida, o acontecimento que deverá transfigurá–la. Tudo se passa como se ela vivesse no exterior do tempo que passa. E quando ela, enfim, ‘desce’ no tempo é para saber que é tarde demais, que o tempo passou… Ora, é isso que me fascina, a experiência pela qual entramos no tempo para passar com ele, e fazer morrer aquilo a que nos apegávamos – ao invés de se colocar de fora e de o ver passar, permanecendo apegados às pequenas eternidades artificiais. Parece– me que isso é a própria experiência do bergsonismo: passar para o interior do tempo ao invés de pensá–lo de fora.

Sua leitura de Bergson coloca o foco sobre o problema da liberdade. Como se relaciona a liberdade com a crítica à inteligência? Qual é o tema da liberdade bergsoniana, ou em todo caso, o que é que se liberta e do que se liberta?

Mas a liberdade é precisamente isso para Bergson: descer no tempo e encontrar a continuidade subterrânea da qual somos feitos. Como em Henry James, é uma maneira de romper com o destino preexistente. A liberdade em Bergson é inseparável da afirmação de si, de um eu profundo, como ele diz. Porém, este eu profundo se confunde com as emoções mais intensas que experimentamos ao longo de nossa vida – o que não quer dizer, necessariamente, as mais fortes ou as mais violentas. Só se entra no interior do tempo pela emoção. Ou melhor, experimentar a passagem do tempo é sem dúvida a emoção mais profunda em Bergson, a fonte de todas as outras, uma emoção positiva sem nenhuma melancolia. Então, em que isso engaja nossa liberdade? É que o mundo social, com todas as suas exigências, só espera de nós ações preestabelecidas, todo um automatismo cotidiano familiar a cada um. É como um sistema de questões às quais respondemos de acordo com expectativas de toda ordem, política, social, conjugal, familiar, profissional. Esperam de nós ações, falas, reações, como se o mundo não deixasse de nos perguntar a cada instante, de maneira imperativa: e agora, o que fazer? Contudo, temos a impressão de que a emoção nunca responde as questões que o mundo nos coloca, ela responde sempre de outro jeito: é gracioso, é injusto, é perturbador, é intolerável etc. A emoção é uma resposta que não é precedida, que não é determinada por nenhuma questão prévia. Só que, na maioria das vezes, não temos direito a essas exigências de expressão, somos obrigados a ignorá–las. Ela vai se desfazer e se acumular nas profundezas até, às vezes, adquirir uma potência explosiva. No melhor dos casos, essa potência se libertará num ato ou numa série de atos expressivos que vêm legitimar essas reivindicações. Isso, me parece, é o acontecimento inaugural do bergsonismo: a ligação indissolúvel do tempo e da emoção. O tempo como emoção fundamental, como afeto da liberdade.

Podemos pensar, depois de Bergson, que existe não somente uma crítica da inteligência, mas uma crítica das emoções, ou ao menos de um certo tipo de emoção? Atualmente, não existem técnicas de controle e formas de servidão completamente mascaradas pelas emoções?

Claro, e Bergson não as ignoraria. Sem dúvida, na época de Bergson, certos melodramas do teatro, certos romances desempenhavam esse papel. O esporte, o cinema, a televisão, e ainda outros meios podem desempenhar esse papel hoje. Não é difícil experimentar emoções doces, fortes, individuais ou coletivas, o problema, então, é de encontrar o critério que diferencia essas emoções – que Bergson chama superficiais – das emoções profundas. A solução de Bergson é muito bonita: são superficiais todas as emoções provocadas por objetos que comovem. Um filme triste faz chorar, uma piada faz rir, um ato imoral escandaliza etc. Há uma causalidade evidente. As emoções profundas são essas que invertem essa causalidade. São profundas todas as emoções que engendram seu objeto, no sentido em que elas nos fazem ver sob um aspecto radicalmente novo, como se ninguém antes tivesse visto sob este aspecto. Neste sentido, uma emoção profunda não nos emociona, ela nos ensina alguma coisa de novo, de inesquecivelmente novo. Sim, a emoção não emociona, ela ensina.

Poderia nos explicar a distinção que você instaura entre a atenção à vida e o apego à vida? Considerando que há sempre o problema da liberdade, você pensa que essa distinção conceitual coincide ou ao menos implica uma alternativa política ou ética?

Ah, esta distinção não sou eu quem instaura, é Bergson. Só que é verdade que ninguém o havia notado, creio eu. A atenção à vida descreve o mecanismo pelo qual somos obrigados a nos interessar pelo que se passa no mundo exterior para viver. Ela define em Bergson nosso sentido do real, isto é, nossa “normalidade”. Aquele que perde momentaneamente o sentido do real é um sonhador ou um distraído; aquele que o perde permanentemente sofre de uma patologia mental ou mesmo se torna louco. O apego à vida é outra coisa e concerne a um problema que Bergson só se coloca no fim de sua vida: o que prende os homens à vida? O que faz com que os homens se agarrem à vida? A reposta de Bergson é surpreendente, é a moral e a religião que os prendem à vida, ligando–os aos outros membros do grupo e aos deuses. Porém, esta concepção é, para Bergson, diretamente ética e política, quase no sentido em que Nietzsche falava de uma “grande política”. A última questão que coloca Bergson, no último capítulo de seu último livro, pode ser resumida da seguinte maneira: no seu curso frenético de desenvolvimento industrial, em seu superconsumismo, em suas guerras incessantes, sempre mais devastadoras e mortíferas, como podemos dizer que o homem ainda está apegado à vida? E sob qual forma? A questão que Bergson propõe já é global, não é uma questão de política interior ou mesmo internacional, é uma questão endereçada à humanidade enquanto forma dominadora da vida sobre a terra. É uma questão cosmopolita em sentido estrito. Isso me parece muito moderno e próximo de muitos tipos de questionamentos contemporâneos, mesmo se eles tomam hoje outras formas.

Esta diferença que você descreve entre a atenção à vida e o apego à vida parece estar ligada aos problemas de saúde, de doença e de loucura, em suma, ligada aos problemas de equilíbrio. A impressão que temos é que, durante o primeiro momento da diferença, Bergson se concentraria sobre a operação humana que nos permite viver em equilíbrio sem nos tornamos loucos. E que, mais no fim de sua obra, ele estaria mais interessado no apego à vida, que implica, como dissemos, num certo desequilíbrio, em nos tornarmos um pouco loucos. Como você vê isso?

É isso mesmo, exceto que o apego à vida não exige se tornar um pouco louco; exige, ao contrário, sair da doença própria à espécie humana, se liberar de todas as ficções religiosas nas quais ela se prende de maneira infantil, segundo Bergson. Neste sentido, Bergson é mesmo um filósofo “médico da civilização”. Como em Nietzsche, o homem aparece para ele como uma espécie de doença. E aqueles que parecem um pouco loucos como você diz, pode ser que sejam aqueles que têm mais saúde. Tenho muita consciência de que, ao dizer isso, nos afastamos da ortodoxia bergsoniana. Temos o frequente costume de ler as Duas fontes da moral e da religião como um livro em que Bergson reata com o cristianismo, mas o problema parece completamente outro, e muito mais moderno, muito mais atual. De uma certa maneira, tenho a impressão de que ele diz a seguinte coisa: é preciso um acontecimento tão importante como aquele do cristianismo para que o homem não seja mais um animal doente.

Intuição e simpatia são ao mesmo tempo termos da linguagem comum e conceitos muito fortes na obra de Bergson. Poderia nos esclarecer sobre o lugar que eles ocupam nela?

A intuição, em Bergson, é um dos conceitos mais conhecidos e, igualmente, um dos mais controversos, visto por muito tempo como um tipo de sentimento divinatório, justamente carregado de simpatia. Porém, o que gostaria de mostrar é que se a simpatia é certamente inseparável da intuição, ela é completamente distinta. A intuição é uma relação de si consigo, Bergson repete isso sem parar. É uma relação do espírito com ele mesmo. Mesmo que ele não disponha de nenhum meio de “sair” dele mesmo. Contudo, é justamente a simpatia que vai lhe permitir não sair dele mesmo, mas se enriquecer de todas as alteridades que povoam o mundo, esposando seus movimentos. Simpatizar é sempre simpatizar com um movimento, tem a ver, para Bergson, com um ritmo da duração. E o movimento é o próprio espírito, seu sentido ou sua “consciência”. Assim, quando ele esposa um movimento exterior, o espírito devém outro; ele devém a consciência ou o espírito desse movimento, no mesmo momento em que o próprio movimento devém espírito ou consciência. Um deleuziano o chamaria assim: um devir. Deleuze e Guattari dizem: devém–se animal se o animal devém outra coisa. E mesmo Bergson poderia dizer: o espírito devém movimento exterior contanto que este movimento devenha espírito. Esta operação é a simpatia que realiza, e não a intuição.

Em relação ao lugar que ele atribui à noção de ato livre, e partindo da hipótese de que essa não parece ser uma noção muito cômoda, parece plausível para você uma “política” a partir desta noção?

Uma política, se entendermos por política um programa preciso, a resposta é não. Mas levando em conta o fato de que o ato livre é carregado de todas as emoções reprimidas que nos constituem, ele tem uma dimensão política profunda, essencial, talvez mais decisiva que toda “política”. É que as emoções que o alimentam literalmente nos fazem nascer para a política. Muito sumariamente, uma política supõe conceber um mundo possível melhor, possibilidade segundo a qual agimos. Mas aqui, trata–se primeiro de uma potência afetiva que nos revela o mundo como belo, vil, escandaloso, injusto, sublime, afetos diretamente políticos no sentido de que nos fazem perceber e nos exprimir de outro modo. Eis que já estamos lutando contra as maneiras que nos fazem ver, falar, agir ordinariamente. Talvez seja somente sob esta condição que possamos nos reapropriar deste mundo. Como disse em meu livro, em Bergson há mais cólera do que acreditamos.

Você diz em seu livro que “para Bergson como para Nietzsche, a verdadeira doença não é estar doente, é quando os meios para sair da doença ainda pertencem à doença”. Entre esses meios se encontram as relações sociais de obrigação e obediência. Supomos, portanto, que isso inclui as relações políticas. Sendo assim, o problema da liberdade não se estabelece em torno das lutas políticas ou da resistência às obrigações, as quais nos mantêm num ciclo fechado, mas em torno da experiência de despersonalização, de perda da identidade “mística”, psicótica, esquizofrênica, você diz em seu livro. E se for assim? O problema da liberdade abandona o terreno da política e se desloca para aquele das experimentações? E se é o caso, como podemos caracterizar melhor essas experimentações? Os pensamentos enquanto experimentações partem somente de um indivíduo ou podem ser coletivos?

Não tenho certeza de que as alternativas de onde você parte sejam boas, porque tudo está ligado. Você não pode resistir politicamente se não fez a experiência de uma outra “visão” de mundo, mesmo isso só nos acontece uma vez na vida. A oposição não é mais entre a experimentação individual e a atividade política coletiva. Pois a experimentação já é coletiva por natureza. Bergson diz isso à sua maneira quando, nas Duas fontes, fala da propagação das crenças no mundo social. Há nisso uma dimensão interindividual, leia infra–individual, um processo de difusão que procede a partir de clareiras radiantes. Mas é verdade que esta comunicação é possível apenas porque ele se dirige às forças infrapessoais, donde a importância das experiências de despersonalização, no fundo tão comuns. A oposição se situaria antes neste nível, entre o infra–individual, o mais profundo para Bergson, que podemos chamar de distributivo, e o supra–individual, que temos o costume de chamar de coletivo. E sem dúvida há ali, entre os dois, tanto uma luta como um modus vivendi.


Trad. Maria Fernanda Novo.


FONTE Cadernos de Subjetividade, n. 15 (2013)

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