O rizoma faz o múltiplo, mais do que o anuncia. O fracasso de uma biologia que não fosse molecular, segundo Félix Guattari, em seu livro Revolução molecular, poderia encontrar na botânica os princípios de um rizomorfismo. [1] Em outras palavras, simultaneamente conexões, heterogeneidades, multiplicidades e assignificâncias, o rizoma em sua orfandade radical desenha uma literatura e uma escrita cuja alma, sempre carnal, nervura e gozo sem entraves da língua, na língua, está para além das regenerações, das reproduções das hidras e medusas. Rizoma é só produção, dança das palavras, viagem da língua na língua.
Em oposição ao modelo centralizado, coagulado, desidratado e organizado, o rizoma se define como um agenciamento de alianças, sempre pelo meio, e em perpétuo devir. Fazer rizoma é enveredar como um cavalo louco para uma escrita cujo devir é o devir-pensamento-musical da própria escrita. A escrita rizomática é órfã, inclusive, do pecado… Qual foi o castigo maior, a infâmia suprema do Divino contra o homem pecador? Ao pecar, ele nela, ela nele, ambos desaprenderam a cantar. Sem a música, sem a fascinação nela inserida, como uma sina, a escrita torna-se seca, fria, túmulo do pensamento. A escrita não perde apenas o sexo, as sexualidades, os arrepios do gozo, mas seu destino maior: o acontecimento. Ser digno daquilo que nos acontece, afora todo e qualquer axioma moral.
O corpo como pensamento melódico, o corpo como saúde, isto é, como literatura sem o aprisionamento de uma língua que a asfixia na nulidade de uma escritura que se substitui, como um câncer, ao fogo da escrita. A escrita sempre por vir. Ora, saúde, enquanto literatura, consiste em inventar um povo que falta. Cabe, pois, a função fabuladora da escrita de engendrar esse povo que falta, sob o signo de palavras parideiras. Palavras parideiras, disse eu?! Como as “Pedras Parideiras” de Frecha da Mizarela, famosas em Portugal, a escrita rizomática são pedras que parem pedras.
Não se escreve, todavia, com as lembranças; sequer com as lembranças de um povo por vir, salvo quando nossas recordações são aquelas de um povo rizomático, múltiplo, composto por imigrantes de todos os países, e não por um povo convocado para dominar o mundo. Trata-se de um povo menor, eternamente menor, tomado em um devir-revolucionário.
Compreende-se, assim, o amor de Deleuze pela literatura americana e por seus escritores que podem escrever com “suas” lembranças, a partir de um eu sempre eclodido em mil devires encarnados pela matilha: americanos de todos os planetas, inclusive aqueles ainda não “descobertos”. Escritores das estradas e da escrita líquida, da fissura, da fenda, que, pelo que tudo indica, produzem uma escrita que canta… [2]
E o devir é por definição o inumano. Pós-humano! Nestas condições, compreende-se por que a estética deleuziana pode ser denominada como estética dos fluxos ou da linha, estética órfã, rizomática. A ideia de superioridade da literatura anglo-americana sobre todas as outras literaturas está ancorada em seu saber prioritário, em sua arte de lançar tais linhas. Superioridade, pois ela se aproxima do mais alto objeto da literatura: o rizoma, as dobras, a invenção de mundos possíveis, não históricos, não arborescentes. Mas, o que são essas linhas de fuga que nutrem e se nutrem do rizoma, e que relação mantêm com a escrita? Vou tentar avaliar essa pertinência. Deleuze encontra na literatura anglo-saxônica um vitalismo ao qual não cessa de se referir e que vai guiar nossa compreensão da literatura do que é pensar, do que pensar significa.
Qual é a trama principal de Deleuze? Libertar a vida é a tarefa principal do pensamento, isso porque a vida e o pensamento estão encarcerados. Estamos encarcerados, isso é um fato. O ponto de partida da filosofia deleuziana reside, pois, na oposição maior, que nutre seu pensamento: o casal libertação/prisão, liberdade/servidão. Memória das marcas em detrimento da memória das palavras – invenção rizomática de uma memória por vir. Ao invés da nostalgia ferina do passado, a saudade do futuro.
Não nos perguntaremos qual é essa prisão na qual estamos desde o início encarcerados, visto que ela se encontra em todos os lugares. Qualquer que seja nosso estatuto, homens livres vivendo nas democracias modernas, melhor dizendo, nas oligarquias sociais, ou escravos das novas ditaduras econômicas, sobremaneira, ou totalitarismos religiosos, dominação conjugal, amorosa, estamos igualmente aprisionados.
Compreende-se, pois, que a prisão não é uma instituição precisa que releva do direito penal e da administração da pena como privação de liberdade. Ela é a metáfora real susceptível de nos dar o axioma maior do social instituído, ou descrever adequadamente a vida dos homens em seu percurso ordinário e médio, cotidiano, inclusive nos países ricos e desenvolvidos. Pois o social é o tipo de poder repressivo, opressivo, sob o qual a liberdade pode tão só se asfixiar.
Mas, de que nos libertamos? Da prisão, prisão da linguagem, inclusive daquela que enclausura o pensamento nas significações estabelecidas em detrimento dos sentidos. A língua é vista unicamente como uma cadeia de poderes opressivos. Ela não é um pensamento em ato, o poder de falar, a língua aprisiona o pensamento. A língua contém, com efeito, signos admitidos que remetem às significações relativamente fixas e registradas pelas convenções e regras tão constrangedoras para a combinação desses signos – estruturas e invariantes. A língua não é, pois, um “tesouro”, mas o inimigo do escritor, como forma que o encarcera.
Daí o trabalho inventivo do escritor (Joyce, Guimarães Rosa, Blanchot, Céline, Guyotat, Clarice Lispector, Borges, Lawrence, Kafka, Khatibi etc.), que consiste em se libertar da língua, levando-a ao movimento, aos tubos ou ondas selvagens, tornando-a itinerante, retirante, reduzindo-a, desviando-a, deformando-a, desterritorializando-a em sua própria territorialização. Uma língua bilíngue, segundo um bilinguismo que supera o próprio marasmo e retorno do mesmo da língua: dois é uma multidão. Dois são cães em matilha, em estado amoroso, conquistando cadelas em pleno cio. O bilinguismo é sempre múltiplo. Não se fala uma língua separada de suas inúmeras línguas tatuadas na própria língua.
O escritor rizomático está, pois, do lado do informal, do inacabado, da deformação que abre e liberta, instiga os conteúdos e quebra aquilo que esmaga a vida, faz passarem-se as linhas de fuga no horizonte, faz a apologia do barato abstêmio e do porre com um copo de água. É isso: ficar chapado com um copo de água! Não era esse um sonho de Henry Miller?
Neste contexto, emerge como um furacão a pergunta: “O que é escrever?”. Ante essa terrível questão, sempre retomada, mas nunca fechada, que desde Blanchot concentrou o essencial da reflexão contemporânea sobre a literatura, Deleuze não hesita um segundo. Não há mistério, seu vitalismo de origem nietzschiana lhe fornece a simplicidade de sua resposta: Por que escrever senão para “libertar a vida em todos os lugares em que ela é prisioneira”? Podemos, desde já, a partir dessa intuição organizadora de toda sua obra, afirmar que a tarefa maior do pensamento é libertar a vida, inventar novas possibilidades de vida.
Com essa expressão comum a Nietzsche, a Foucault e a Deleuze, e que caracteriza seu vitalismo, sob o signo da estética, ou seja, respectivamente: uma teoria da vontade de potência, uma teoria das forças e de sua dobra, ou, ainda, uma teoria do desejo como agenciamento ou máquina desejante, criação de modos de existência ou de novas possibilidades de vida, estilo de vida, um estilo de escrita – a escrita rizomática. Percebe-se, assim, por que a literatura está presente em toda a filosofia de Deleuze: é que ambas são indiscerníveis quanto a sua finalidade primordial. Porém, esta comunidade de objeto não deixa de dar lugar a uma especificidade própria a cada uma, que tem a ver com a substânciae as formas que essas duas atividades põem em jogo, distinguindo-as sem ambiguidades.
Escrita rizomática como variação contínua
Cabe deixar viajarem a língua e as palavras, pôr a língua em variação contínua, pois é assim que se podem esvaziar os conteúdos, desfazer as formas e deixar passar algo assignificante, informal, assubjetivo. A variação contínua é como o rizoma, não tem princípio nem fim, mas meio; não é arborescente, tão tem raiz, é órfã. É encontro. É uma espécie de bate-papo entre internautas: só se entra pelo meio. Neste sentido, a variação contínua, a escrita como puro devir, desterritorializa as dualidades, as oposições pertinentes, para, por meio da vibração das palavras e do estremecimento das regras, provocar, no sentido também de vomitar, uma cheia, uma inundação, uma libertinagem, profusões de signos úmidos, secos, irrigados e, assim, abrir alas para uma língua desviante que fia e engendra um sentido novo, inédito: uma escrita por vir.
Tal é o objeto do estilo, procedimentos próprios a cada escritor. Cabe, pois, de certo modo, fazer uma língua na língua. Tudo aquilo que subverte e a torna estrangeira é muito bom para a língua. “Falo todas as línguas, mas em iídiche” (Kafka). Donde o tema célebre que Deleuze pediu emprestado a Proust, e que abre seu livro Crítica e Clínica:
“Os belos livros são escritos em uma espécie de língua estrangeira.” Efetua-se, pois, o encadeamento das seguintes ideias: Somos prisioneiros. Como nos libertar? Pela criação de linhas de fuga. Como criar linhas de fuga? Mediante a variação contínua que é a única inventora e livre, pois escapa aos poderes e invariantes que nos encarceram. A liberdade é uma linha de fuga, é fuga ativa, engendradora de vidas e gradientes. Surge, uma vez mais, a pergunta que não quer calar: mas, o que significa fugir? A fuga significa no mínimo uma abertura, uma brecha que fende, fissura àquilo que aprisiona. Um pouco de ar fresco, uma espécie de antiutopia: a imanência.
Experimento I – Éden, Éden, Éden
O modelo evocado é aquele do cano que se fura para deixar jorrarem os fluxos, ao mesmo tempo em que se espraiam, derramam, aspergem. Ou ainda, o da máquina masturbatória de Pierre Guyotat, em seu livro Éden, Éden, Éden, cujo prefácio escrito por Roland Barthes é hoje um texto cult! [3]
Nada mais chato, mais entediado que uma sala de aula com uma professora/professor escrevendo no quadro negro, ou passando suas eternas transparências, para crianças/jovens. Plenos de vitalidade, asas, sonhos molhados, tatuados em seus corpos como uma escrita vagabunda, viajante, errante, eles molham o papel ou a tela com seu líquido gelatinoso, quente, rico em proteínas como as lágrimas, outro nome para dizer esperma. Lágrima = proteína, leite, sal são os mesmos componentes do esperma, segundo Aristóteles.
Chorar com a verga, grande olho pronto a furar o quadro ou a tela de uma pedagogia insossa, ou cano entupido, sem invenção, de uma escrita mimética, castrada, educastradora. Barthes: “(…) é preciso ‘entrar’ na linguagem de Guyotat: não para acreditar em sua linguagem, ser cúmplice de uma ilusão, participar de uma fantasia, mas escrever essa linguagem com ele, em seu lugar, assinar o livro com ele”.
A escrita de Guyotat é um sopro no qual se tem antes de tudo a impressão de que as palavras não podem ser ditas: anêmicas, falta às palavras a força da escrita/rizomática, e de súbito não podem também ser ouvidas, estão no limite do audível. Para superar o inevitável sentimento de provocação e de arrogância, induzido na visão deste Éden atroz, cabe aceitar que cada signo de pontuação advenha das inspirações, das expirações, dos soluços de um sopro que provoca a eclosão das formas, das marcas, das nódoas, dos contornos que enlameiam uma tela enorme impossível de pintar, insuportável de se olhar.
É como se, acossado pelo estado tísico da palavra esvaziada pelas representações e significações chupadoras de sangue, acopladas a um vampirismo abjeto, Guyotat apelasse para a força das pedras e delas extraísse pedras de sangue coladas como a peste na carne das palavras-sopros aspirando ao vitalismo de uma escrita contra a escritura: doxa e redundância vazia, uma espécie de lei para ser seguida, numa morte anunciada da invenção da própria escrita.
Para compreender a necessidade daquele que escreve, cabe infalivelmente reencontrar alguém que fala, que projeta em um espaço que – O delírio é superbrilhante – [4], em seus entrechoques, graças aos inúmeros signos que os pontuam, é que sua rítmica se confunde com a respiração daquele que fala. Como descrever, todavia, a escrita de Guyotat? “Aquilo” que não se poder descrever, Guyotat nos diz de soprá-lo, de ingeri-lo para poder expulsá-lo. Engolir a escrita-punheteira como se engole a hóstia: sem mastigar. Eis por que Guyotat bane o ponto de seu texto: o ponto pararia o sopro abrindo espaço para a morte da palavra. A necessidade literária de Éden, Éden, Éden torna-se uma necessidade teatral. Cabe observar que, adaptada a obra inúmeras vezes para o teatro, a apresentação em Paris, no Teatro Rond-Point, 2004, alcançou imenso sucesso e provocou um efeito bombástico no marasmo da dramaturgia francesa.
Éden, Éden, Éden é uma exploração de territórios proibidos, perigosos, censurados, é um mergulho vertiginoso nas interrogações, é também o confronto com a morte mediante a sexualidade, ou com a sexualidade mediante a morte, é contar o horror, o estupro, a tortura. É fazer escorrer o sangue, o suor, o catarro, a merda numa dança do esperma maluco; enfim, todas as matérias mais nobres às mais vergonhosas e que são, sem embargo, estatuárias de vida. Trata-se de transgredir as leis, feitas exatamente para serem transgredidas. É assim que Guyotat concebe a sexualidade como o “caroço das coisas”. Para nela chegar, ele produz uma escrita posta a serviço de uma língua de combate, numa luta contra a língua maternal, uma língua matricida. Ele quer, em todo caso, matar aquilo que de maternal existe na língua.
Em Éden, o sexo aparece em toda a sua brutalidade, sem relação com nada: nem raízes nem começo, nem gênero nem diferença, aqui a escrita rizomática atinge seu paroxismo! O “caroço das coisas”, que é o próprio sexo, numa escrita sem limite, sem direção, sem identidade-prisão em que a potência do caos é ainda a força das sexualidades, para além do sexo dirigido ou procriador: mulher, homem, animal ou planta, o sexo é, sobremaneira, uma servidão do gozo, de outrem. Abaixo, pois, o sexo privado! Abaixo a mitologia privada dos sexos catalogados pela ordem de gênero! Tristes gêneros!
Para Guyotat, amante inveterado do onanismo, a obrigação sexual é uma das tarefas mais monstruosas que o Criador impôs a sua criatura. As cenas de bordéis que habitam a quase totalidade de Éden, nas quais padecem, indiferentemente, moças e rapazes, atestam que a ferramenta sexual é o membro menos “humano” que existe na criação. Que diz o autor a respeito de Éden? Em uma entrevista, logo após a publicação e censura, em 1971, de seu livro em Paris, [5] expõe publicamente seu método:
“Em minha prática há três níveis de escrita. Primeiro, um texto ‘selvagem’ que escrevo desde a idade de catorze anos; a seguir, comecei a escrever textos ‘doutos’. Um texto inserido à masturbação, escrito durante a própria experiência sexual cuja redação periódica e sempre ligada a uma prática sexual imediata – e interdita enquanto imediata, esta observação é capital –, interrompida a cada vez pelo orgasmo (…). Há por outro lado um texto de notas, um imenso amontoado de notas; e finalmente, o texto dito “douto” ou ‘erudito’. Estes três momentos do texto formam um percurso, ao mesmo tempo histórico e simultâneo da representação: histórico é a passagem do texto selvagem ou douto, por exemplo; simultânea é a escrita de textos selvagens, notas e erudito.”
O texto original, o texto matriz, se apresenta sob a forma do “texto selvagem”: cabe ficar à escuta da ressonância arcaica, selvagem e mítica inserida como um gozo sem entraves no corpo e sexo da própria escrita, na carne sexual da escrita. Uma escrita-tesão, tão somente tesão. Esse texto selvagem, escrito em paralelo ao ato sexual, leva-me a afirmar que o ato sexual é uma perda de texto. A vontade de escrever, ligada diretamente à vontade sexual, a vontade de ejacular, é vontade de escrever. Não por caso, o título desse texto selvagem é A Outra mão bate punheta (L’Autre main branle).
O texto selvagem evacua um vocabulário bruto, economicamente prostitucional, sinteticamente retórico e linguisticamente da ordem do palavrão ou do “baixo calão”. As palavras em Guyotat se excitam, excitam, ejaculam na cara lisa do leitor inundando-o ao mesmo tempo de urina, “chuva de prata” mesclada ao líquido menstrual e ao odor forte de clitóris e vagina em movimento, abalos, agitação, impulso, oscilação, dança e sacudidas. Ora, uma só palavra em francês, usada como gíria, branle, do verbo blanler,carrega em si todos os sentidos aqui repertoriados e explica melhor o título citado: L’Autre main branle.
Experimento II – Como fazer para si uma máquina masturbatória
Pierre Guyotat inventa uma escrita-punheteira, máquina para produzir gozo orgástico, colada à escrita rizomática do gozo imediato, presente. Como fazer para si uma máquina masturbatória engendradora de uma escrita do gozo?
Receita ou Manual de autoajuda: Enquanto a professora escreve no quadro, ele amarra com um cordão a entreglande de seu pênis rígido, de garoto saindo da puberdade, cavalo selvagem extraído diretamente de Água viva, de Clarice Lispector. Como um bom aluno, com a mão direita copia a lição, e com a esquerda se masturba. Puxa delicadamente o barbante, movimentando o vergão numa cadência progressiva, o que provoca na sala tremores de terra… Emascula o branco celeste de sua bermuda dilacerada pela força de um gozo, pura escrita-punheteira, e pelo sexo enfeitiçado, contaminado pela alegria de um orgasmo, o mais solitário dos orgasmos, orgasmo roubado, virtual/real, que tem a força de transformar o tédio heideggeriano da escola em festa e olhos revitalizados do bordel!
Chamo esse acontecimento fuga ativa, ou rizomática, distinguindo-a da fuga através do sonho e do imaginário, ou da arte que faz da obra um fim em si, embora ela seja tão somente um meio de resistir, inclusive quando não resiste a nada:
“As grandes aventuras geográficas da história são linhas de fuga, ou seja, longas caminhadas, a pé, a cavalo ou de barco: a dos hebreus no deserto, a de Genserico, atravessando o Mediterrâneo, a dos nômades através da estepe, a longa caminhada dos chineses – é sempre sobre uma linha de fuga que se cria, não é, é claro, porque se imagina ou se sonha, mas, ao contrário, porque se traça algo real, e compõe-se um plano de consistência. Fugir mas, fugindo, procurar uma arma.” [7]
O rizoma é um agenciamento, o livro, agenciamento com o fora, contra o livro imagem do mundo. Como o fora não tem imagem nem significação nem subjetividade, não se trata mais de imitar, de copiar, mas agenciar. Não livro imagem do mundo, da sociedade, da época, não livro mensagem, não livro número com uma unidade de sentido camuflado e secreto. A obra literária é um agenciamento de fluxo heterogêneo, ou de signos ou linhas que valem por si, por sua potência de revolta contra as significações dominantes e libertação de sujeitos dominados.
Em síntese, cabe entrançar um plano de uma escrita-composição, escrita bailarina, que inclua os domínios heterogêneos: literatura, poesia, imagem, pintura, música, filosofia, ciência. É uma escrita que faz rizoma por meio de uma linha nômade-barroca, sob os traços de Deleuze e Guattari, segundo uma autonomia cigana capaz de esvaziar os dois autores para preenchê–los com nossos vazios plenos, nossos alfabetos criadores de uma língua na própria língua: um alfabeto e não uma gramática. Trata-se, pois, de uma composição literária escrita numa língua que gagueja. Ora, como se sabe, há gagos que cantam muito bem. Assim, a escrita rizomática abstrata, vazia, traça linhas de fuga e se atualiza por meio das leis físicas da natureza e se realiza pela sua velocidade nômade. É parado que os nômades andam mais depressa.
Eis as dobras da escrita rizomática, mergulhada numa topologia pictorial à dimensão fractal, mais que duas e menos que três dimensões, próxima do Universo amarrotado, de J. P. Luminet, da teoria das catástrofes de R. Thom e da esponja de Sierpinsky. Uma escrita que se faz com o pleno/vazio é permeável ao mundo. Lençóis do Maranhão, com suas dobras infinitas e barroco-carne, seus líquidos e sólidos em núpcias, impostos ao olhar dos mortais que os contemplam. Entre a dança dos lençóis e as dobras eróticas de santa Tereza D’Avila, a escrita rizomática é um convite, um banquete, pura superfície selvagem: a imanência, uma vida, a vitalidade radical de um campo que é dobras de seda em movimento, que nomadiza o olhar e sacode os corpos esvaecidos.
O método da dobra consiste em experimentar a vida, os sentidos ou sensualidades, em todos os nervos vivos de um pensamento e considera os personagens de um romance como conceitos; assim, o indivíduo é interpretado, reinventado, sob as dobras do mundo que o envolve ou é por ele envolvido.
A literatura rizomática não falará, pois, em seu nome ou sob a pretensão de funções imaginárias e mesmo institucionais. Se a escrita desenvolve um nome é, sobremodo, para perder a forma do “eu” e integrar a cumplicidade de um “nós” no qual o leitor poderá encontrar um lugar-comum que é, ainda, um não lugar. Não copiar, mas interpretar; não comentar, mas inventar. Em Deleuze, “nós” designa uma multiplicidade e, desde sua enunciação impessoal, nos faz encontrar o diferente, antes de tudo, evasivo, manco, desestabilizado pelo mesmo gesto nos catálogos razoáveis.
A obra, não menos que o autor, se liberta da unidade subjetiva, abre folhas soltas difíceis a enclausurar nos encadeamentos por demais artificiais do dogma. A obra implica antes a forma de uma nota, entendida como notação marginal, esboço tomado no calor do informal, no seio de uma variedade, de uma mistura um pouco especial. A escrita de Deleuze atesta a dança das palavras, sob o signo de um pensamento não arborescente, rizomático, viagem ao país do corpo, corpo que é caosmos aberto aos afectos e encontros-surpresas, desembaraçado da cognição reguladora de um saber dado de antemão. A escrita rizomática é como o devir inumana: o inumano do humano com sua constelação de devires: animais, vegetais etc.
Assim, os parágrafos nos livros de Deleuze são verdadeiras folhas andarilhas, pé na estrada, grampeadas entre as quais se entrelaçam signos vindos de todos os lugares, como imigrantes do alfabeto e da escrita, tão difíceis a ler sem se deixar agarrar ou aferrar por eles. Donde, sem dúvida, a extraordinária referência aos lobisomens ou bichos-papão, aos feiticeiros, aos animais que, explorados como linhas de fuga, são intercessores, extras-seres, não sem humor nem malícia. Há um prazer do texto que passa pela evocação/participação de devir-animal ou devires-imperceptíveis próprios ao rizoma e acontecimento.
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Notas
[1] GUATTARI, Félix. Revolução molecular. São Paulo: Brasiliense, 1987.
[2] Cf. DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34.
[3] GUYOTAT, Pierre. Éden, Éden, Éden. Paris: Gallimard, 1970.
[4] Cf. Guyotat. Vivre. Paris: Gallimard, 2003, p. 11. Explications. Paris: Léo Scheer, 2000, Littérature interdite. Paris: Gallimard, 1972, pp. 73-7.
[5] Esta censura provocou forte reação de diversos intelectuais contra a falta de liberdade de expressão na França, entre outros: Barthes, Foucault, Simone de Beauvoir, Sartre, Leiris, Duras, Derrida, Sollers e muitos outros. Jacques Lacan, plagiador conhecido de Pierre Guyotat, se recusou a assinar o manifesto… Éden, Éden, Éden foi proibido aos menores de 18 anos, de 1971 a 1981. Com a vitória de François Mitterand, a censura foi erradicada.
[6] DELEUZE, Gilles & PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998, p. 158.
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In: Revista Polichinello n. 10 ׀ Por Uma Escrita Rizomática ● ISSN: 2178-1230 – 10.