NIETZSCHE E D. PEDRO II: ENCONTRO, PODER E POLÍTICA

Há mais de um século a questão acerca do possível encontro entre o filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900) e o imperador do Brasil Dom Pedro II (1825-1891) atravessa nossa cultura e círculos sociais dos interessados por estas duas personalidades importantes a nossa história. Alguns negam e outros afirmam este encontro. A pergunta não que não quer calar: este encontro realmente aconteceu?

Antes de uma resposta, cabe ressaltar que em todos os tempos se faz necessário tomar cuidado com qualquer tipo de informação, principalmente aos que fazem circular falsas informações como grupos de interesses ideológicos e políticos comprometidos com imaginários reacionários e pró-monarquista! É necessário pesquisa e um embate crítico e não aleatoriamente este texto emergiu em meio a questões observadas nas redes sociais. As relações de poder não nos abandonam, as lutas de força, a guerra do verdadeiro ou falso está mais viva do que nunca.

Pois bem. Para as pessoas que vivem dizendo “Nietzsche não o encontrou, isto é Fake News OU/E Nietzsche se encontrou, isto é real”, apresento-lhes uma das referências mais fidedignas que encontrei para discutir essa questão. Em breve conversa em relação a este assunto com Ernani Chaves, filósofo e professor da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Pará (UFPA), fui direcionado aos Cadernos de Nietzsche, mais precisamente na edição do ano de 2018.

Nesta edição, o filósofo e pesquisador (membro do Grupo de Estudo Nietzsche – GEN; Centro de Estudos Nietzsche: Recepção no Brasil – CENBRA; e membro da Comissão Editorial da revista Cadernos Nietzsche*) Geraldo Dias¹ realizou a publicação do artigo intitulado “A longa história do encontro entre Nietzsche e D. Pedro II” (clique no título para acessar o artigo completo) onde discute as causas e consequências políticas dessa história. Este encontro anedoticamente difundido por Teresa Alexandra Elisabeth Förster-Nietzsche (1846-1935) e alimentado ao longo de nossa historiografia (historiadores como Oliveira Lima e José Murilo de Carvalho), pela crítica literária (seja pelo modernista Alceu Amoroso Lima e o simbolista Tristão da Cunha) e a imprensa nacional e estrangeira.

Segundo Dias (2018), no “epistolário de Nietzsche entre os anos de 1877 e 1888, encontram-se nada menos do que cinco cartas nas quais faz alusão passageira ao Brasil. Em quatro delas, discorre especificamente a respeito de D. Pedro II². Faz ainda uma menção ligeira ao Brasil, no livro Aurora”.

Especificamente sobre D. Pedro II, a primeira carta em que faz referência a ele fora escrita a 7 de agosto de 1877, de Rosenlauibad, na Suíça, onde estava de férias. Enviada a sua irmã, nela relata: “Aqui no hotel estavam também o imperador e a imperatriz do Brasil”³. Três dias depois, com mais detalhes, Nietzsche escreve outra carta, agora endereçada à mãe, na qual afirma: “Além disso, aqui no hotel estava o imperador do Brasil acompanhado por 17 pessoas4. No dia 10 de agosto de 1877, torna a escrever outra carta à irmã, nela assevera: “O imperador e a imperatriz do Brasil estiveram aqui no hotel5. A quarta e última referência a D. Pedro II data de 6 de janeiro de 1888, presente na carta enviada de Nice a Peter Gast. Nela conta ao amigo que na “quinta-feira passada fiz a minha primeira visita a Montecarlo para assistir a um concert classique (no qual também estava presente o imperador do Brasil)6.

Desta forma, nem a obra ou epistolário de Nietzsche forneceram provas de seu encontro ou conversa com D. Pedro II. De fato, não houve um encontro! Mas é possível interpretar através das cartas citadas acima que estas figuras se cruzaram à distância e de uma maneira breve.

Primeiro em Bayreuth, no ano de 18767, depois, no verão de 1877, em Rosenlauibad, na Suíça, em que pese o emprego do verbo no passado (“estava”) para se referir a presença de D. Pedro II e a dificuldade de aproximação para um encontro e diálogo estando o imperador acompanhado por 17 pessoas; por fim, estiveram num mesmo concerto de música, no dia 5 de janeiro de 1888, no teatro de Montecarlo, na Itália.

Em 1935 o historiador Sergio Buarque de Holanda, nos chamou a atenção para as falsificações de Elisabeth Förster-Nietzsche8. E, um dos pontos mais importantes do artigo produzido por Dias (2018), trata-se em compreender as motivações e consequências da falsificação deste encontro . Esta contribuição está para além da problemática em provar que a história é falsa, mas como ponto principal, mostrar que é portadora de interesses ideológicos e políticos e que somente desta forma se manteve viva por mais de um século.

Ao considerar nesta pesquisa dados das imensas versões (contraditórias) do encontro entre Nietzsche e D. Pedro que circularam e permanecem circulando no Brasil e cruzar com os dados coletados das cartas do filósofo e Diários de D. Pedro II9, foi possível concluir que este encontro e conversa entre o filósofo e o imperador do Brasil nunca aconteceu.

É importante destacar que a anedota produzida por Elisabeth não tratou-se de uma simples ingenuidade, mas sim de uma bruta falsificação da história, assim como realizou com outros de seus trabalhos, os quais foram apropriados e manipulados conforme motivações ideológicas e políticas.

Domenico Fazio (2015) publicou “A verdadeira história de Nietzsche e Dom Pedro II de Alcantâra, último imperador do Brasil”, produzindo avanços em relação a essa história mal contada até os dias atuais. Concluiu-se através de confrontos de dados com três versões da história com a obra do filósofo, sua fortuna crítica, testemunhos e os Diários do Imperador brasileiro que: um encontro e conversa entre Nietzsche e Dom Pedro II não aconteceu em 1871, num vagão de trem na Áustria, nem em Bayreuth, em 1876, “nem em Rosenlauibad, em 1877, nem sobre os Alpes tiroleses, m 1880, nem no trem entre Nice e Gênova, em 1888”10, nem no concerto de música do teatro de Montecarlo, em 1888.

Por um lado encontramos avanços na pesquisa histórico-filosófica sobre Nietzsche, por outro faltou no trabalho de Fazio distinguir as motivações e consequências ideológicas-políticas dessa batalha histórica para a recepção da filosofia nietzscheana no Brasil.

Assim, Dias (2018) emergiu nesta produção e contribuiu em seu artigo com estas questões que ficaram em aberto, pesquisando materiais importantes não analisados, textos/documentos significativos a respeito da história produzidos por autores como Maurice Prozor, Alceu Amoroso Lima, Tristão da Cunha, entre outros, os quais foram recuperados na fonte original, transcritos na íntegra e analisados em sua pesquisa.

Desta maneira, espero ter contribuído com esta dúvida, convidando-lhes a realizar a leitura deste trabalho magnífico para rompermos com a propagação de falsas histórias!


NOTAS (Clinicand e Dias)

  1. Doutor em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de São Paulo – PPGF-UNIFESP. Realizou estágio de pesquisa doutorado-sanduíche na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne, 2017-2018. Pesquisador ligado ao Diretório de grupos do CNPq como membro do Grupo de Estudo Nietzsche – GEN; também é membro do Centro de Estudos Nietzsche: Recepção no Brasil – CENBRA, ligado ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UNIFESP; membro da Comissão Editorial da revista Cadernos Nietzsche.
  2. Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe, edição em 08 volumes das cartas de Nietzsche, estabelecidas por Colli e Montinari. Berlin: Walter de Gruyter & Co., 1975/1984. Cf. também a KGWB: Digitale Kritische Gesamtausgabe Werke und Briefe, disponível em http://www.nietzschesource.org/
  3. „Dann war Kaiser und Kaiserin von Brasilien hier im Hause“. Carta a E. Förster-Nietzsche de 7 de agosto de 1877, KSB 5.270.
  4. „Dann war der Kaiser von Brasilien mit 17 Mann Gefolge hier im Hause“. Carta a Franziska Nietzsche de 10 de agosto de 1877, KSB 5.270.
  5. „Kaiser und Kaiserin von Brasilien waren hier im Hause“. Carta a E. Förster-Nietzsche de 10 de agosto de 1877, KSB 5.271.
  6. „welchem auch der Kaiser von Brasilien beiwohnte“. Carta a Peter Gast de 6 de janeiro de 188. KSB 8.227
  7. “Nietzsche e sua irmã Elisabeth avistaram efetivamente o último imperador do Brasil no teatro de Bayreuth, por ocasião da primeira edição do Ouro do Reno, em 13 de agosto de 1876”, Cf. FAZIO, op. cit., p. 269. As fontes do pesquisador italiano são as cartas de Nietzsche que confirmam sua presença nesta mesma data, os Diários de D. Pedro II e o testemunho de Cosima Wagner, deixado em seu diário: “visita surpresa do Imperador do Brasil”, Cf. WAGNER, Cosima. Die Tagebücher. Ed. por M. Gregor-Dellin e D. Mack. Munique: Piper, 1976, vol. I, p. 998.
  8. Confira em Sérgio Buarque de Holanda: “Elisabeth Foerster – Nietzsche”, in: Folha da Manhã, São Paulo, 19/12 de 1935.
  9. Cf. SCHWARCZ, Lilia Moritz e BEDIAHGA Begonha. Diário do Imperador D. Pedro II: 1840- 1891. Petrópolis: Museu Imperial, 1999. Não há referência nos arquivos do Museu Imperial, que disponibiliza, entre outros materiais, o Diário da Viagem de d. Pedro II aos Estados Unidos, 1876 (http://www.museuimperial.gov.br/).
  10. FAZIO, Domenico M. “A verdadeira história de Nietzsche e Dom Pedro II de Alcantâra, último imperador do Brasil”, in: Dogmatismo e Antidogmatismo. Filosofia crítica, vontade e liberdade. Uma homenagem a Maria Lúcia Mello e Oliveira Cacciola. Eduardo Ribeiro da Fonseca, Fernando Costa Mattos, Flamarion Caldeira Ramos. Orgs. Curitiba: Editora UFPR, 2015, p. 49-62.

Sites e Portais consultados por Dias

Portal da Hemeroteca Digital (http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital).

Portal da Biblioteca Brasiliana (https://www.bbm.usp.br/).

Portal da Biblioteca Digital da UNESP (http://bibdig.biblioteca.unesp.br/).

Portal da Gallica – Bibliothèque nationale de France (http://gallica.bnf.fr/).

Portal do Museu Imperial (http://www.museuimperial.gov.br/).

Portal do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (https://ihgb.org.br/).

Portal da Nietzsche source, o site mais seguro para consultar a obra de Nietzsche estabelecida por Giorgio Colli e Mazzino Montinari, Berlin/New York, de Gruyter 1967, integralmente digitalizada por Paolo D’Iorio (http://www.nietzschesource.org/)


FONTE 

Cad. Nietzsche vol.39 no.3 São Paulo Sept./Dec. 2018. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=2316-824220180003&lng=en&nrm=iso


* O que são os Cadernos Nietzsche? Segundo o GRUPO DE ESTUDOS NIETZSCHE – GEN: “Cadernos Nietzsche representam uma iniciativa ímpar, que só encontra similar nos Nietzsche-Studien na Alemanha e, mais recentemente, nos Estúdios Nietzsche na Espanha. Lançados sempre três vezes ao ano, integram a base SCIELO; considerados uma das melhores revistas de filosofia do país, receberam a classificação A1 por parte do Qualis-Periódicos da CAPES. Desde a sua fundação em 1996, Cadernos Nietzsche norteiam-se por duas diretrizes básicas: a de trazer ao público brasileiro as mais diferentes leituras do pensamento de Nietzsche, constituindo um espaço de conflito de interpretações, e a de acolher trabalhos de pesquisadores internacionais de renome, estudiosos brasileiros confirmados e pós-graduandos, promovendo um diálogo entre diferentes gerações.”

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