Comentários sobre o gosto, a conversa e o passeio na Clínica – por Osvaldo Saidón

No país da psicose, não sou intérprete,
mas sim explorador e cartógrafo.
Polack, A íntima utopia.

O lugar do comentarista ou do palestrante costuma estar vinculado ao do prefaciador, ou ao do posfaciador. Se por um lado o prefácio é dispensável, ao mesmo tempo é tão prepotente em consequências que, com ele, muitos leitores decidem se vale a pena continuar lendo o livro, ou bem se conformam com o mero comentário. Nesse ponto, a escrita ou a retórica perdem para as artes visuais, ou para as artes plásticas. Os críticos, para a sorte de tais artistas, não pintam nem fazem música, apenas escrevem. Os poetas, os ensaístas e os literatos têm de suportar não apenas os críticos, mas também os amigos prefaciadores, discutidores e/ou apresentadores, os quais, muitas vezes, como se diz no jargão do espetáculo, roubam a cena, passeiam seu estilo e seu saber, com os louros concedidos pela trajetória. A única prejudicada, nesse jogo de vaidades, é a obra, embora haja casos – e não são poucos – em que ocorre outra coisa, absolutamente. E então o comentário vira um anseio.

Aqueles que, há muitos anos, frequentam a obra de Deleuze, sabem bem disso. Secretamente, ou nem tanto, escrevemos imaginando realizar um íntimo desejo de que o pensador nos comente, nos entregue algumas frases, confirme nossas inquietações, realce nossas perguntas. Isso porque amamos seu modo de pensar, tanto quanto seu modo de dizer esse pensamento.

Esse tipo de conversação, esse tipo de vínculo, esse “entre” que esperamos da crítica: achamos isso tão salutar que também o designamos como clínica. Uma inclinação para o lado da nossa abordagem da atividade diária se faz aproximando–a do pensamento de Deleuze e Guattari. Assim, pensamos que uma clínica consiste em encontrar um estilo, uma intervenção na qual começamos a sentir que estamos participando do lance do pensamento provocado por Deleuze e Guattari a partir d’O anti–Édipo.

E a partir dos casos que Polack traz em seu livro, andei pensando então como comentarmos entre nós essa clínica, no encontro com o autor, em São Paulo.

Mas, para principiar, um pouco de geografia da viagem. São Paulo, um gigante pela própria urbanidade de viadutos e culturas. Megalópole que não faz alarde de qualquer monumentalismo – e nem precisa. Nunca duvidou de seu poder e de seus alicerces: a sua classe operária, sua classe universitária e sua industriosa oligarquia. Apesar disso tudo, sempre se oferece para ser seduzida, conquistada, para ser ganha pelos estrangeiros que a visitam com uma insistência difícil de justificar. Acontece que os paulistanos das mais diversas origens nos hipnotizam, fazendo–nos acreditar, cada vez que pousamos em Guarulhos, que somos uma espécie de Clark Kent, já um tanto gasto, chegando à grande cidade. Tentaremos conquistá–la, sabendo que não é uma, mas milhares de aldeias citadinas em agitação permanente, com uma dinâmica mais que humana.

Nunca atendi sequer um paciente em São Paulo. As dezenas de visitas que fiz à cidade, sempre foram para falar, para compartilhar questões ligadas à clínica. A clínica de pacientes ditos psicóticos ou borderlines, a clínica dos grupos e/ou das instituições, a clínica dos direitos humanos.

Nesta ocasião, trata–se d’A íntima utopia, belo título com que Polack nos convida para pensar a clínica, que tem disparado em mim um sonho: temos uma La Borde no Brasil, com filial em Buenos Aires. Um território existencial de fronteiras imprecisas; mais fragmentado do que, por vezes, podemos suportar. Começou com grupos de estudo, mas se alastrou para propostas acadêmicas. Funcionou em instituições altamente conceituadas e atacadas; ocupou espaços na luta política e sindical. Hospitais–Dia, programas governamentais de Saúde Mental, consultórios em Higienópolis, em Ipanema e em Palermo experimentaram as mais diversas pragmáticas esquizoanalíticas, que hoje proliferam em várias publicações, tanto de especialistas quanto de críticos de arte, em ensaios e literatura. Esse território encontrou um local de expressão principalmente no teatro, e já são trupes consolidadas que trabalham na programação teatral portenha; e os atores nômades de São Paulo percorrem o mundo. Os psi, os filósofos, os artistas que formam o conjunto desse rizoma integram várias tribos e aproveitam para se encontrar quando alguém vem justamente de La Borde, do território de Guattari. E então, de fato, os sentidos se animam, e um renovado entusiasmo pela clínica surge a partir desses encontros. E surge a possibilidade do comentário, da conversação, da conferência. Saber que o que a gente procura não é a unidade, mas a diversidade. Isso exige desviar o olhar e a atitude clínica que o pensamento hegemônico pretendeu determinar: os políticos de um modo, os artistas de outro. Ali, nas sessões, nas relações que são contadas neste livro de Polack, essa diversidade não avança em sentido contrário ao diagnóstico psicopatológico, mas o inclui numa inovadora variedade.

Como aqueles poetas que, ao descreverem e pensarem um objeto qualquer, cavoucam em nós um abismo que perpassa uma novidade de sentidos, trata–se então de comprometer–se com o gosto, com o próprio, com o singular que emerge nessa relação aí descrita, no tratamento dos ditos pacientes psicóticos. Numa conferência, Francis Ponge disse, ao evocar a diversidade e a complexidade para abarcar o que ali acontece: “Estamos reunidos aqui, mas não estamos tão–só entre nós, estamos cercados de coisas, paredes, chaves nos bolsos, toalhas no banheiro. Como falar disso tudo?” A partir dessa constatação, ele indicava que o homem subjetivo não podia captar a si senão a partir da resistência que encontra, para extrair dela uma nova intensidade.

Retomamos então um entusiasmo que por vezes se dilui quando nos fazemos aquela pergunta ruim: não estaremos fora de época? (O livro que nos ocupa teve sua primeira edição lançada há mais de 20 anos, e ainda hoje nos faz pensar). Trata–se de que nossa ourivesaria clínica – a insistência em que tudo pode ser visualizado de outro modo, ao infinito, numa combinatória que não se detém – carrega sempre o desafio da época: habitar a flecha do tempo.

Chegamos. Por onde passa nossa clínica hoje? Como anda essa estranha La Borde tupiniquim? Cada grupelho que fale por si.

Arnulfo

Na sexta–feira, logo depois da primeira entrevista, ele apareceu com a cabeça raspada e uma barba de ponta que assomava no queixo. Demorei alguns minutos para reconhecê–lo, ir ao seu encontro e reconstruir a sua imagem. Naquela outra sexta–feira, no primeiro encontro, sua aparência era outra. Cabelos largos e lisos; uma barba arrumada acompanhava o rosto. Diante do meu olhar clínico atento, oferecia–me uma harmonia apenas interrompida por uma tatuagem que assomava no pescoço. Desta segunda vez, ele insistiu no mesmo, apesar de já se apresentar como outro: “Procuro uma terapia que me possibilite adentrar mais profundamente nas minhas questões, revisar a fundo o passado e, sobretudo, concentrar–me nos problemas”. Fiz pouco caso disso. Na catedral da psicanálise, sempre se desconfia das adesões exageradas aos princípios mais vulgares: a verdade, a profundidade, a escuta, a fala.

Em suas viagens, passeios e experimentações, ele fugia dos destinos e dos determinismos aos quais somos consagrados pelas grandes questões: a família, o amor, o trabalho. Na geografia, se mostra mais claro que na história. Queria retornar à floresta, onde vivera até cinco meses atrás; porém não aguentara e voltara para Buenos Aires. Fiquei comovido como esse radicalismo. Estamos acostumados com binarismos mais suaves. São Paulo ou Buenos Aires, Buenos Aires ou Madri ou Barcelona, o interior ou a capital. Neste caso, era bem mais radical: Buenos Aires ou Iquitos, o pó ou a ayahuasca, o quarto disciplinado pela tela e o software – de passagem contou que era programador de computadores – ou a aldeia, com a sexualidade derramada, onde a noite, o dia e a bebedeira se sucedem sem escândalo. A frieza do azul ou a obscenidade do verde? Como queria passar os dias, como concretizar seu gosto?

O local, onde, quando, a pressa. Porque “o tempo não anda para trás” – ele disse. Todos esses estados se transformaram em algoritmos que eu precisava decifrar com ele. Precisava voltar a experimentar as sensuais e solitárias chuvas dos trópicos; estava na hora de tomar gosto pelas modalidades que o trabalho e o amor ganham na cidade portenha.

Apressei–me; escutei aquela angústia privilegiada dentre todas as angústias: a da morte. Crença e pressa são duas más companhias na atividade clínica. Esse ensinamento inglês sobre o que chamamos de timing se figura diante de cada novo fracasso.

Fracassei de novo, fracassei melhor – com Beckett. Mas continuarei esta reflexão. Nessa segunda entrevista, ele me conquistou. Sou propenso ao fascínio quando alguém me mostra uma premissa de coerência num espaço como o de uma sessão, onde a narrativa pode acobertar a falta de ação. Mudou a fisionomia, apareceram umas orelhas grandes, que convocavam a escutar. Falou, após ter mostrado, por um instante, disposição para mudar do dia para a noite, pelo menos na imagem, o que não é pouco. Reacendeu meu interesse e me contou do acidente de carro quando, à morte da mãe, sobreviveram o motorista, que era seu pai, e ele, o próprio Arnulfo, então com cinco anos. Outra vez o tempo. Retornamos? Vamos em frente? Rememoramos? Desta vez acreditei nele. E ele insistiu; queria revisar e, além disso, começar a se apaixonar; porém, estava difícil.

Na terceira e última entrevista, esboçou–se uma conversa e, com ela, seu lado exibicionista mais insuportável: a inteligência [2]. Penso agora que talvez Arnulfo tenha feito o certo em não suportá–la. Muitas vezes, na conversa, acaba acontecendo de a inteligência representar uma ordem da qual somos excluídos, que questiona o lugar que ocupamos. Acaba assim destruindo a singularidade em nome das conclusões gerais. Assume–se superior quando nos aponta que a morte é inevitável. Que novidade! Com essa atitude, o que consegue é impor limites; margear e antecipar os imprevistos; assim é como acaba desbaratando nossos projetos!

Cabe aqui uma citação de Lapoujade – apoiando–se, por sua vez, n’As duas fontes da moral e da religião [3], de Bergson – igualmente aplicável ao papel do paciente ou do terapeuta:

[…] Sua doença é a sua própria normalidade. Seu sofrimento vem da sua inteligência e das “representações do real” que ela impõe à sua atenção. Ele só pode suportá–las se colocar nelas delírios e fabulações que restaurem seu apego à vida e reconstituam seu “equilíbrio natural”. Através disso, porém, ele permanece submisso à sua inteligência. Ele não se libera da sua submissão, somente a torna suportável. Esse equilíbrio é feito apenas de compensações, e até mesmo de consolos, que caracterizam a doença da qual ele não pode sair, sua neurose [4].

A inteligência apareceu prematuramente na sessão. Sentia–me cheio de ideias e conexões temporais. Ela começou a iluminar, com essa luz direta que danifica a percepção. Com essa clareza, depois, submeteu os corpos ao diálogo. Por fim, emergiram fabulações. Apontei para a realidade, não o deixei com as suas ficções.

– Vamos reconstruir o acidente – propus.

Surgiu no rosto dele um ricto, uma perplexidade. Mencionei que a mãe dele morreu quando ele tinha cinco anos.

Na quinta seguinte, me liga e me avisa que já não virá mais. Havia optado por uma terapia que incluísse relaxamento, ioga e meditação, na qual ele fosse conduzido por uma mestria, uma crença, uma obediência. Talvez assim ele conseguisse encarnar algo da selva no concreto urbano – pensei; mas nada disse.

A intuição criadora e a emoção buscam um lugar, mas a vez delas ainda não chegou. Acreditei nele, fui apressado; afinal, sou um terapeuta de uma Buenos Aires a la carioca, que anda inventando–se desde que voltou à Argentina. Aliás, onde ficou aquela moça tão tímida, tão sensual que, da selva brasileiro–boliviana, me visitara tantas vezes? Não lembro quando foi embora, não lembro quando eu fui…

Bergson, Beckett, Deleuze, não deveriam se misturar com Freud; menos ainda com Lacan ou Melanie Klein, diz a inteligência emergente dos primeiros combates clínicos que propôs O anti–Édipo. Guattari e seus seguidores foram depois enlameando o campo, agregando caos, misturando teorias, inventando palavras e convidando–nos a abandonar para sempre as polícias epistemológicas. Para subverter o pensamento, alegrar a prática, comprometer a ação, fomos percebendo que um bom lugar era aquele que, de algum modo, construímos a cada dia: a clínica – chame–se como se chamar. Talvez eu tenha sido psicanalítico demais com Arnulfo. Não soube habitar o “entre” que se insinuava no encontro, e exibi a inteligência da inteligência científica como defesa. Talvez isso tenha contribuído mais ainda para ele me enxergar um tanto velho para acompanhar sua aventura.

Antes de me despedir ao telefone, eu disse que ficara pendente a entrada na infância que ele propusera; talvez não fosse o tempo, ou provavelmente eu não fosse adequado, mas o mais certo é que não se trata de rememorar, mas de projetar e então… tem tempo.

Atendi Arnulfo naqueles dias em que eu me encontrava lendo os casos que Polack relata no livro, o que imediatamente me levou a refletir sobre o que designamos como institucional.

O pickup, que nos possibilitaria a fina tomada de alguns conceitos, deveria consolidar a diferença em relação a qualquer prática que ainda seja reconhecida como de estirpe psicanalítica. Essa tensão, em certas ocasiões, instala–se no pensamento que circula em torno da clínica. Quando o poder e as ideias ocupam o lugar do gosto, a luta pela hegemonia domina o comum. As águas se detêm, e aflora o senso comum, as boas condutas, a literalidade televisiva e jornalística – cedendo o terreno a um pedagogismo que transforma a clínica num manual de instruções. Como debruçar–nos sobre a clínica, como aplicar a psicoterapia individual e de grupo sem usar categorias da psicanálise e da psicopatologia? Em todo o caso, como aplicá–las, mas ao mesmo tempo, como deixar acontecer um pensamento do devir, para que um ar fresco, uma brisa espinosista perpasse a sessão, e uma narrativa sobre o dizer do paciente se torne mais interessante que compreensível? Como conversar a dois, integrando esses amigos comuns – estranha amizade que potencializa raras alianças? Deleuze, Guattari, Ulpiano, Espinosa, Beckett, Artaud. Alianças que não estavam prontas, encontros de destempos entre filosofia, biologia, arquitetura e inconsciente…

Somos tantos grupelhos como processos maquínicos, aos quais damos partida diante de cada demanda de terapia, de escrita, de vínculo.

Li o trecho de Deleuze que se segue, num livro de Arturo Carrera [5], que possibilita o funcionamento do pensamento nômade em seu próprio estilo, e longe de qualquer tentativa pedagógica:

Meu ideal, quando escrevo sobre um autor, seria nada escrever que lhe pudesse causar tristeza ou, caso esteja morto, que o fizesse chorar em sua tumba: pensar no autor sobre o qual se escreve. Nele pensar tão intensamente que ele não possa mais ser um objeto, que tampouco seja possível identificar–se com ele. Evitar a dupla ignomínia do erudito e do familiar. Reconduzir a um autor um pouco dessa alegria, dessa força, dessa vida amorosa e política que ele soube dar, inventar […] [6].

O pensamento aí não acontece a partir da relação de objeto, tampouco mediante um processo de identificação: é algo a mais, é também outra coisa. Édipo manda com clareza amar Mamãe como objeto, identificar–se com o Papai, ou um ou o outro: por um lado, identificar–te–ás; por outro, amarás – eis a lei que estrutura a sexualidade.

E se não fosse assim? E se a psicose e a neurose não fossem estruturas absolutamente diferenciadas? E se fosse um e o mesmo impulso que as atravessasse? A interpretação entra em crise. Existe outro modo de vínculo: acompanhar, devir, experimentar, inventar. A isso parece apontar Guattari na clínica da psicose, no atendimento do processo primário, no inacabamento kafkiano. Em Crítica e Clínica [7], Deleuze nos conduz por maravilhosas páginas, onde literatura e clínica inventam várias misturas, raras continuidades. Da neurose inglesa ao delírio americano, como no Bartleby, de Melville. Da neurose shakespeariana ao delírio beckettiano; de Hamlet a Godot, de Dora ao Homem dos ratos, de Lacan e seus namoricos de salão à delirante sexualidade de Foucault.

A potência da escrita de Deleuze reside nas intermináveis invenções que sua leitura promove. Está sempre retornando, como uma infinitaesteira a aproximar questões, problemas, autores e reflexões de diferentes tipos… Assim, fui me aproximando dos textos e dos casos que Polack relata. Essa leitura me propôs uma mescla de terapeutas, pacientes, pensadores, críticos, artistas, todos eternos aspirantes a exprimir seus gostos.

Os capítulos foram chegando a mim durante as últimas semanas. Estranhas coincidências entre o modo de funcionamento dos e–mails, com seus anexos, e os encontros esporádicos nas sessões. Fui conhecendo os pacientes dele: Anne, Leonor, os Monstros, Philipe, e J. C. Polack e Danielle, os autores–terapeutas, maquinando situações que trouxeram à tona minhas incertezas, misturadas às deles.

Sabemos que a linguagem não é apenas representação… E a expressão verbal nem se fala: faz muito mais do que falar – sabemos que ganha eficácia clínica quando ligada ao afeto. Os casos que o livro relata nos transportam para os afetos que emergem das sessões. Aparece um “entre”, uma poética que não cessa de ativar–nos e inventar–nos a cada vez. Por isso o inconsciente é uma escrita, não uma cadeia de representações ou significantes. Escrita múltipla [8], que inclui escritos pictográficos, intensidades e ritmos. Poderíamos também enxergar a sessão, a conversação analítica, como uma tentativa oral de tal escrita. Convocamos então Francis Ponge, que, numa conferência chamada Tentativa oral [9], propõe o balbuciar do poeta como modo de aproximação à criatividade.

Num determinado momento da fala, ele nos mostra, de diferentes maneiras, que quando a gente escreve o faz a contrapelo da palavra oral, em sentido contrário ao das insuficiências de expressão que se produzem no curso de uma conversa. E acrescenta que, para nos corrigirmos, para nos retratarmos dessas falhas, para atingir uma manifestação mais complexa, mais firme, talvez mais ambígua, chega uma hora em que nos defrontamos com o problema da expressão. E surge um conceito: “o gosto”. É o gosto assumido, prazeroso pelo que se faz; pelo que se diz e se escreve; aquilo que faz circular a sensibilidade e a sensualidade na Íntima utopia. Ponge diz então:

Assim, sem vergonha, escolher o próprio gosto, mas sendo espantosamente claro nisso. A gente sabe o que ama: há de se escolher, há de se ter a coragem do próprio gosto e não apenas das próprias opiniões – e acho que o gosto é ainda mais vital do que as ideias. A poesia estaria ao alcance de todo mundo se todo mundo tivesse a coragem dos próprios gostos, das associações de ideias. As palavras vêm, inclusive quando não se tem o talento para escrever de entrada, de achar as palavras de entrada. Basta esperar. Eis a poesia feita com todos, da qual falava Lautremont.

Os meios de expressão vêm depois, mas o afeto e o agenciamento estão aí, à sua procura. Quantas ideias se bifurcam, quando gostamos de frases pronunciadas, escritas, pensadas pelos pacientes quando nos relançam para sentimentos próprios e compartilhados. Três exemplos. Philippe fala: “Do que vamos falar?” “A minha mãe não me amava; ela me admirava.” – diz Anne. Danielle diz de Leonor: “O seu ser–mulher toma a dianteira da sua identidade proletária.”

O “entre”, a maquinação que foi se armando nestas semanas, a partir da necessidade desta fala, foi esclarecendo para mim algumas questões acerca do modo extremamente singular que esse pensamento nos propõe, alargando as ambiguidades, lançando–nos para novas incertezas, incentivando a vontade de mergulhar num caos pleno de promessas. Não são soluções, mas extensões, devires impensados que, apesar de tudo, pois, nobleza obliga [10]∗, determinam algumas conclusões em relação à clínica – essa tarefa que há tempos insiste em levar–nos a certa disciplina e perseverança. E nos mantêm sentados um bom tempo refletindo, nos afetando, ensaiando palavras e gestos, modos de expressão predominantes no dia a dia.

Nesse andar cotidiano, surgem então três ideias–força para trabalhar na clínica. A conversação, o gosto e o passeio. Três componentes que certamente estão presentes em nós neste momento, em doses singularmente diferentes. As referências a estas questões estão por toda parte, por isso nem precisam ser ditas, pois elas são a matéria do próprio evento clínico. Não o transcendem nem o organizam – elas são a sua consistência.

Acabo de ler sobre Thomas, o paciente de Polack, antes de rabiscar estas linhas. Uso bem a palavra rabiscar, porque a associação do sonho de Thomas sobre a bola de tênis em relação a seu pai me magoou um pouco e jogou luz na semiescuridão matinal. Ontem foi o Dia dos Pais – do meu; como Thomas do dele, também me afastei dias antes de ele morrer, por causa de uma viagem. Meu irmão está doente. Também o visitei ontem e aproveitei para fazer um passeio pelo bairro, coisa que havia tempos não fazia, e não sei se com esse frio de 3°C irei jogar tênis amanhã; não quero ficar doente justo antes de viajar para São Paulo. Como vocês podem ver, arrasto intermináveis associações neuroticamente portenhas. Então é bom escutar por fim os colegas–companheiros, que lidam seriamente com o processo ao qual convoca o tratamento com a psicose… Sim, não se deve recuar diante da psicose, é preciso se misturar. 

Para fechar, uma citação e um breve relato: “Tudo que não invento é falso.” (Manoel de Barros em Memórias inventadas [11]).

Pablo

Eu não o conheço – marcou após numerosas ligações. Desço para abrir a porta. Ele está desarrumado, e um pouco gordo. Suando, comenta já no elevador que um cara ficou encarando–o insistentemente no ônibus. Deve ser um pedófilo – diz com um primeiro sorriso. Respondo que ele parece ter mais de vinte anos; porém, penso que… Bom, nos dias atuais, o Vaticano entra por toda parte, ativando os alarmes diante dos desvios de toda classe, próprios e estranhos… Sim, os esquizos deliram, mas deliram com a história.

Por que você quer entrar num grupo? Pergunto, enquanto penso quão difícil vai ser ele se incorporar a um grupo de neuróticos. Sou muito tímido com as garotas, nunca fiquei com nenhuma – diz. Precisa tentar – duvido.

O tímido sou eu nisso de cuidar do grupo, no refúgio neurótico, esse teatrinho das representações. A citação retorna novamente: “Evitar a dupla ignomínia do erudito e do familiar”. Afinal, termino sustentando um grupo que seja como a gente: familiar, inteligente, boa–pinta, onde nos mostramos e nos pavoneamos com os nossos respectivos saberes, e assim transitamos uma análise sem riscos. Bom, estou indo. Ligue–me semana que vem que aí eu converso com o grupo para você entrar. 

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NOTAS

  1. Estas notas foram iniciadas como preparação para os comentários que eu realizaria na apresentação, em São Paulo, do livro de Jean–Claude Polack e Danielle Sivadon, A íntima utopia. Trabalho analítico e processos psicóticos. São Paulo: n–1Edições, 2013. [L’intime utopie: travail analytique et processus psychotiques, Paris: Presses Universitaires de France, 1991]. O encontro com o autor, e as amigas e amigos que organizaram aquelas Jornadas, acabaram me convencendo de que valia a pena relê–las, corrigi–las e compartilhá–las para alargar e perseverar nos sentimentos daqueles dias.
  2. Muitas destas observações foram suscitadas pela leitura do livro de Davis Lapoujade, Potencias del tiempo. Versiones de Bergson. Buenos Aires: Cactus, 2011. [Puissances du temps, Paris: Minuit, 2010; Potências do tempo – Powers of time, edição bilíngue português–inglês. Trad. br. Hortencia Santos Lencastre / trad. inglês Andrew Goffey. São Paulo: n–1Edições, 2013].
  3. Bergson, H. As duas fontes da moral e da religião. Trad. Nathanael Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. [Lês deux sources de la morale et de la religion. Paris: Presses Universitaires de France, 1976].
  4. Lapoujade, D. Potencias del tempo, op. cit, p. 80.[83–84, tr. br.]. A propósito do trecho destacado em negrito ver Bergson citado por Lapoujade, D. Potencias del tempo. op. cit., p. 137 [118].
  5. Carrera, A. Ensayos murmurados. Buenos Aires: Mansalva, 2009.
  6. Deleuze, G. e Parnet, C. Dialogues. Paris: Flammarion, 1977 [Diálogos. Trad. Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Escuta, 1998, p. 137].
  7. Deleuze, G. Crítica e Clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1997.
  8. Reuter, C. Clínica do esquecimento. Niterói: Ed. da UFF, 2012.
  9. Ponge, F. Tentativa oral. Córdoba: Alción, 1995.
  10. [NT: a expressão, de uso expandido em francês (noblesse oblige), foi cunhada em latim por Boécio (480–524), na obra A consolação da filosofia (c. 524). Indica que, por uma questão de status, prestígio ou honra, quem a profere se vê na obrigação de agir com retidão. Prefiro mantê–la aqui em castelhano, como de uso bastante comum na Argentina no século XX. A nobreza, nesse contexto particular, pouco tem a ver com status nobiliárquico, mas sim com generosidade ou franqueza fraterna, horizontal ou, ainda, plebeia – o que implica uma intensa transmutação na geopolítica do sentido.]
  11. Barros, M. Memórias inventadas – As Infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Planeta do Brasil, 2010, epígrafe.

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Osvaldo Saidón é psiquiatra, psicanalista e analista institucional. Foi membro do grupo Plataforma, na Argentina, e fundador do Ibrapsi, no Rio de Janeiro, onde morou por vários anos. É professor universitário, assessor da Organização Panamericana de Saúde e coordenador do grupo de teatro Partido en Dos, em Buenos Aires. Organizou várias coletâneas na área da clínica e da análise institucional.

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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFIA

n. 15 (2013). Cadernos de Subjetividade / Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos Pós–Graduados em Psicologia Clínica da PUC–SP. Tradução do espanhol de Damian Kraus.

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