Peter Pál Pelbart e La Deleuziana: Conversa sobre Esquizoanálise

La Deleuziana: Gostaria de saber em que medida você se reconhece na esquizoanálise, qual lugar ela ocupa e, portanto, o que é a esquizoanálise para você? Quando você fala de esquizoanálise, você se refere normalmente à sua participação no teatro Ueinzz, mas você fala raramente do lugar que ela ocupa em seus livros.

Peter Pál Pelbart: Meu primeiro contato com o campo esquizoanalítico foi quando Félix Guattari veio ao Brasil em 1985. Na época eu conhecia os livros de Deleuze-Guattari, tinha frequentado as aulas de Deleuze em Paris entre 1980-83, porém não tinha um interesse específico pela esquizoanálise enquanto tal, nem mesmo sabia o que era. Depois de Paris, tive o desejo de estudar a relação entre pensamento e loucura no campo da filosofia. Foucault, mas também Deleuze, Blanchot, Bataille, formavam uma constelação de autores que podia ajudar a pensar a dimensão louca da filosofia e uma dimensão filosófica da loucura. Comecei então a trabalhar num projeto de mestrado em filosofia e senti necessidade de me aproximar dos loucos concretos. Foi nesse momento que consegui a indicação de um hospital-dia psiquiátrico suficientemente aberto para me acolher, e isso coincidiu com a presença do Félix no Brasil. Fiz uma entrevista nessa clínica e me aceitaram imediatamente. Mas me foi dito que eu não podia ser um mero espectador, eu teria que trabalhar, embora não tivesse nenhuma prática. Achei isso muito corajoso, acolhedor e estimulante, pois reconheceram na minha bagagem, na minha vida e pessoa elementos que poderiam servir no trabalho deles, mesmo não tendo nenhum diploma. No momento em que fui aceito, Félix estava aqui e eles me convidaram para traduzir uma supervisão da equipe com ele. Portanto, entrei nessa clínica como o “tradutor” de Guattari. Isso deixou uma marca guattariana em mim e na minha presença naquele espaço.

É preciso dizer que eu nunca tinha me encontrado com Félix antes. Eu tinha feito o curso de Deleuze em Saint-Denis mas nunca tinha ousado falar com ele! No final dessa viagem de Félix no Brasil, ele tinha proposto à Suely e a outros que ele conhecia aqui criar uma Associação de Esquizoanálise no Brasil. Na ocasião ele me convidou, assim do nada, sendo que eu nem mesmo sabia o que era a esquizoanálise! O que eu podia responder a não ser “a gente teria que ver o que é isso!”? Mas Félix retrucou: “A gente não precisa ver
o que é, a gente tem que inventar!” Claro, que banal! Mais tarde, quando comecei a trabalhar com os loucos na clínica, a experiência de Félix com a loucura me interessou muito, suas definições, as noções que ele inventou para trabalhar com os loucos, aquilo que ele compreendia como clínica, aquilo que era La Borde para ele. Portanto, a partir daí, e aprofundando os estudos sobre as relações entre loucura e filosofia, em paralelo com esse trabalho mais concreto com os loucos, entendi que tinha uma ferramenta ali. A esquizoanálise não era uma pequena derivação teórica, mas realmente uma ferramente original.

A certa altura do trabalho no hospital-dia vimos nascer um projeto de teatro, graças à proposta de um paciente. Foi então toda uma aventura que começou de modo bastante inesperado e muito surpreendente para mim, porque aconteceu sem planejamento, sem um projeto, como uma espécie de irrupção coletiva e estética. A invenção de um dispositivo com essas pessoas não é algo óbvio, e a partir daí todo um universo veio à tona, cresceu e me fez pensar muitas coisas. Foi uma linha nova que se abriu, o teatro com a clínica paralelamente aos meus estudos de filosofia na universidade, em São Paulo. Foi uma bifurcação, mas ainda assim eram dois mundos paralelos que para mim coexistiam com uma necessidade real. Eu tinha o cuidado de mantê-los separados, queria preservar a singularidade de cada campo. São independentes. Não quis misturá-los. Sobretudo, não sobredeterminar a experiência com esquemas vindos da filosofia. Na minha pesquisa em filosofia, queria manter certa linha que havia aprendido com Deleuze quando frequentei seus cursos, ou seja, ter confiança numa certa autonomia do pensamento, sabendo que tal autonomia, quanto mais ela é ativa, mais tem chance de percutir em outros campos, incluindo campos concretos como a política ou a clínica. O pensamento não precisava submeter-se a um outro campo, daí uma certa autorreferencialidade do conceito que eu queria preservar. Havia portanto a experimentação de uma certa prática totalmente autônoma e a experimentação de uma prática de pensamento também autônoma. Claro que ambas as linhas se cruzavam em um lugar que não sou capaz de definir, mas tenho certeza de que essa bifurcação teve um efeito muito potente nos dois campos: mantê-los separados e ver até onde podiam ir nessa divergência.

Essa é uma primeira abordagem. Estou consciente de que depois de um tempo, quando tive vontade de escrever sobre essa experiência de teatro, porque gosto muito de descrever situações, cenas, e apreender, num estilo mais narrativo, que tipo de ruptura essa prática produz nos sentidos, nos discursos, na lógica das relações, foi aí que percebi que estava começando a utilizar noções esquizoanalíticas. Eis um exemplo que contei várias vezes¹: no primeiro ensaio que fizemos, ainda em 1996, um dos atores emitiu um som, Ueinzz. O que me interessava é como um som que, no final das contas, não queria dizer nada e não tinha nenhum sentido, que não era nem mesmo ouvido em meio aos sons
emitidos por um coletivo louco, como essa pequena partícula sonora ganhava autonomia e se desgarrava do fundo… eis uma “ruptura assignificante”, em torno da qual todo um mundo pôde se cristalizar. E foi esse o nome da peça, e também o nome da trupe… Então, o que é isso? Todo um agenciamento teatral, constituído por elementos bastante heterogêneos, se funda finalmente numa ruptura assignificante minúscula, um buraco de sentido, um afundamento ou desfundamento da linguagem. Eis aqui todo um mundo que não está assentado num fundamento, mas justamente num afundamento, abrindo várias linhas possíveis. Tratava-se de ver como nesse caos, e aqui sigo Félix, não se tratava propriamente de confusão. Num coletivo de loucos, existe uma irrupção permanente de afetos, colapsos, velocidades, lentidões, desfalecimentos, euforias. Esse caos aparente equivale a uma complexidade enorme! Na verdade, Félix entende o caos como complexidade infinita, da qual irrompem linhas que dão origem a múltiplos universos de referência, territórios existenciais. Portanto, o mergulho nesse caos complexo caósmico não resulta numa indiferenciação, mas, pelo contrário, é aí que podemos detectar e seguir linhas em estado nascente. Esse é o pequeno exemplo Ueinzz, mas existiriam milhões, como um pequeno detalhe se desgarra e ganha uma autonomia, gerando em torno dele um agenciamento autônomo que se torna uma peça de teatro, que se torna uma viagem de turnê, que se torna uma relação com a Finlândia, que se torna barco, encadeamentos bastante inauditos. Numa perspectiva transversal, desterritorializações singulares inventam novos territórios. Isso quer dizer que cavalgávamos linhas desterritorializadas que, por sua vez, nos conduziam a novos mundos, outros modos de existência, subjetivações, etc. 

A partir daí, várias noções me vieram de Félix, como autopoiése e núcleo autopoiético, protosubjetivação, a ideia do inconsciente como um tempo por vir, não indexado a um passado, mas como um campo de possível, de possibilidade, de possibilidades infinitas. Isso quer dizer que você mergulha num universo em princípio finito e dali promove uma infinitização que se multiplica em direções bastante diversas. Mas como isso funciona? Aqui também Félix me ajudou bastante porque essa ideia de von Weizsäcker, de um domínio do pático, é muito importante. Isso quer dizer que a relação não é mediatizada por um esquema de interpretação prévio, pois trata-se de uma relação imediata com os afetos que nos tiram das coordenadas tradicionais do espaço, do tempo, da causalidade e que possibilita um outro acesso, a quê? Diria que a essa caosmose. Portanto, a noção de território existencial é totalmente preciosa para mim, isso porque aquilo que a gente criou nesse teatro-projeto-peça-dispositivo é tudo isso, mas na verdade trata-se de um território existencial que criamos juntos e que possibilitou uma multiplicação em direções bastante diversas. Isso é a esquizoanálise, uma desterritorialização do desejo – essa é uma definição guattariana, mas eu a vejo em ato nos 23 anos de existência desse projeto. Não é algo óbvio, um coletivo que se mantém vivo há 23 anos! 

Várias vezes quando escrevo a respeito, e sempre que leio Félix isso me ocorre, certos conceitos pulam da página e se conectam imediatamente com cenas, situações, personagens, etc. Claro, várias questões surgem o tempo todo numa experiência dessas: o que é essa dessubjetivação, o que é esse campo a-subjetivo? Para mim, tudo isso se tornou finalmente um laboratório, eu o chamo de laboratório biopolítico porque é mais fácil, mas poderíamos dizer laboratório esquizoanalítico também. Por fim, uma clínica esquizoanalítica é, em poucas palavras, conectar essa matéria de opção a um agenciamento outro que não necessariamente o do divã.

Deleuziana: Então trata-se de inventar a esquizoanálise, de ousar o mergulho caósmico e experimentar outras conexões? Quais são as novas ferramentas que essas experimentações lhe permitiram inventar? Aliás, você diz biopolítica ou esquizoanálise, por quê? Em que consiste esse deslocamento e por que você faz questão dele?

Peter: Eu fui tomado pela questão da vitalidade nos loucos. Se você tiver um olhar muito exterior, dirá que há uma impotência, uma tal fragilidade, uma vulnerabilidade, etc. O que me interessou a certa altura foi definir o que era essa vitalidade sob a forma de uma grande precariedade psíquica, de uma grande fragilidade. Por outro lado, tento ver como mecanismos de controle da vida contemporânea esmagam vitalidades por toda parte. Existem mecanismos de assistência que são mecanismos de repressão, e acho que o teatro era um contra-dispositivo em que a vida geralmente mortificada mostra seu brilho, seu esplendor, sua potência de agenciamento de universos bastante diferentes dos quais não somos mais capazes porque somos prisioneiros de categorias segmentadas. Portanto, contra essa biopolítica, falávamos de uma biopotência, podíamos encontrar numa experimentação minúscula como o teatro uma potência totalmente outra que não seria possível num agenciamento manicomial. Foi por isso, portanto, que mencionei a biopolítica e a biopotência, mas, sabe como é, as palavras podem mudar… talvez haja um pudor em dizer que sou esquizoanalista.

Deleuziana: É nessa contra biopolítica que você está pensando quando você fala de uma era pós-psicanalítica?

Peter: Nós podemos trabalhar de mil maneiras diferentes com os loucos. Existem psicanalistas que atendem os loucos com seu peso, seus ritos, seu fervor e sua suposta eficácia, porém, existem outros meios. O que adoro em Félix é seu lado não doutrinário, ele pode utilizar o pequeno a ou os objetos parciais para tratar das pulsões, mas depois ele parte em direção a seus functores – em suma, um ecletismo que é bastante simpático para mim, e acredito efetivamente que há algo de pós-psicanalítico no Guattari. João Perci Schiavon, que dá aula na PUC e conhece bem tanto Lacan quanto Guattari, faz a ponte, não para retornar a Lacan, ele guattariza Lacan e lacaniza Guattari. Vamos publicar sua tese O pragmatismo pulsional², onde ele faz uma comparação que retomei no meu penúltimo livro³: a esquizoanálise ainda é psicanálise do mesmo modo que a física quântica permanece física.

Deleuziana: Em diversos lugares Guattari insiste, o que ele queria era revitalizar a psicanálise, torná-la novamente dinâmica, tirá-la de seus dogmas, ele não deseja realmente abolir a psicanálise, mas sem dúvida uma certa concepção do inconsciente.

Peter: Mesmo aqui no Brasil, quando o apresentavam como psicanalista, eu ficava surpreso. Eu lhe perguntei porque ele aceitava isso e ele me respondeu que era para encher o saco! Que certamente ele não ia deixar a psicanálise para os psicanalistas! Ele habitava a psicanálise com sua dinamite, com estratégia.

Deleuziana: Você disse que a questão da loucura é importante para você. Trata-se de uma problemática que você estuda desde o início de sua trajetória. Que papel a loucura desempenha hoje, quais são as passagens ou rupturas com a biopolítica?

Peter: O que encontrei em minhas primeiras pesquisas gira em torno da noção de Dehors. Tem uma linha de fuga que vem de Blanchot, atravessa Foucault e Deleuze e, na minha opinião, é uma chave para compreender algo da loucura. Geralmente se interpreta a loucura como um enclausuramento. Há algo disso, sem dúvida. Mas também o avesso disso, uma exposição quase total a um Fora e a suas velocidades, vertigens, etc. A noção de Fora me permitia sair das dicotomias interioridade/exterioridade, subjetivo/objetivo, indivíduo/coletivo. É uma região a partir do qual tudo se redesenhava. Quando pego um texto do Deleuze como “O pensamento nômade”, trata-se de uma pensamento do Fora. O que me interessa é a diferença que o contato com a loucura produz, a loucura ajuda a liberar-se da pirâmide ego-sujeito-eu do indivíduo. Quando você entra nesse campo, ocorre uma liberação em relação à hegemonia do plano pessoal. Ao mesmo tempo um direito à expansão e uma espécie de morte, desconectar-se de tudo, uma desconexão que só é possível, porém, através de uma outra espécie de conexão. Essa experiência meio pessoal me permitiu pensar se, e isso também é Félix, se o problema é a loucura ou a normopatia. E se o  problema fosse não sermos suficientemente loucos? Não nos permitirmos dissolver-nos, separar-nos de nós mesmos, derivar a partir daquilo que éramos, diferir-se de si? Tudo o que vemos no campo da loucura, aquilo que os psiquiatras consideram como traços patológicos, será que parte disso não é o remédio que precisaríamos produzir socialmente, ou seja, esquizofrenizar as instituições, os discursos, o casal? Será que todos os modos de existência não mereceriam esse choque de esquizofrenização para que pudéssemos respirar? Existe algo perigoso no político tal como o concebem Deleuze e Guattari. A prática política em geral é o risco de assujeitamento ao discurso mais duro, às palavras de ordem, etc. Se não houver um grão de loucura na prática política, com certeza desembocaremos no Estado em suas múltiplas concreções, os partidos, os sindicatos, etc. Félix sempre insistia para que seus conhecidos ou amigos, fossem eles militantes, antropólogos, artistas, passassem um tempo em La Borde. Uma passagem caósmica que podia abrir-lhes outros campos, provocar rupturas. Existe uma dimensão da loucura que, se não se faz presente em nossa vida, não é somente o tédio, mas a morte. Existe um aspecto vital na loucura que extrapola o campo psi e é isso a esquizofrenização, a desterritorialização. La Borde é toda uma experiência! Isso quer dizer que se você não é um psiquiatra com um discurso bem pré-definido, existem evidências um pouco elementares que entram em colapso. Acredito que é para essa relação com uma dimensão de desconhecido, de ruptura, que ele convidava seus amigos… e não sei se Deleuze não era um dos únicos que não suportava os loucos!

Deleuziana: Essa vitalidade atestada pela loucura permite abordar o problema da normopatia, a gente evita tanto esse tipo de experimentação, de deriva e ruptura em nossas sociedades que alguns acabam recusando toda relação com uma dimensão de desconhecido e isso a ponto de afundar-se no microfascismo. Você menciona a importância de esquizofrenizar as instituições, mas como? Hoje, no Brasil, diante do microfascismo e a normopatia, o que a esquizoanálise tem a nos oferecer?

Peter: Isso é difícil porque você coloca essa questão num momento em que vemos tudo ruir e temos vontade de dizer: não é necessário antes de tudo preservar um pouco de instituição?

Deleuziana: Nesse ponto existe uma diferença entre Deleuze e Guattari. Estou pensando no Abecedário, na letra “E de esquerda”, Deleuze diz que os direitos humanos são uma palhaçada, mas Guattari defende, por sua vez, que os direitos humanos podem ser úteis em vários lugares, que podem salvar pessoas, que é preciso promovê-los onde for necessário. Então o problema é reinventar as instituições, não é isso esquizofrenizá-las? Não se trata de inventar cenas, o que você chama de dispositivos teatrais?

Peter: A meu ver, esquizofrenizar, bom, eu o digo assim, de modo um pouco brutal, poderíamos dizer caotizar, desconstruir. Se você pegar um livro como o de Tosquelles A vivência do fim do mundo na loucura, um belíssimo livro, formidável, existe nele uma percepção tão bela do que é viver o afundamento, o que é a vivência do afundamento, o pressentimento do fim do mundo e ao mesmo tempo o sentimento de iminência da redenção de todas as possibilidades! É difícil entender, é bastante paradoxal, mas é preciso manter as duas linhas ao mesmo tempo. Freud diz que o delírio é um esforço para reconstruir um tecido de sentido arrebentado, e Tosquelles o amplia, para partir de situações de desastre, catástrofes subjetivas, individuais ou coletivas, onde advém a necessidade imperativa de reinventar as coordenadas de vida. A meu ver, essas duas dimensões são inseparáveis. Consideremos uma instituição como a universidade, que é bastante rígida, mas nela existem várias virtualidades a serem desenvolvidas, atualizadas, mas é preciso dissolver algo para que essas linhas virtuais apareçam. A esquizofrenização pode engendrar algo, a partir das desterritorializações, novos territórios podem surgir. Para Deleuze e Guattari, não existe desterritorialização pura, tratam-se de linhas que abrem as portas à criação de uma outra terra, outros territórios. Portanto, não vejo isso como uma operação negativa. Essa dicotomia negativo/positivo já é uma armadilha. Então, se tentarmos projetar isso numa escala mais ampla, com certeza existem coisas que temos que defender, que temos que tentar preservar de um ponto de vista tático. Por exemplo: num momento desses é absolutamente necessário denunciar as apropriações e manipulações políticas vindas do judiciário, não sei muito bem em nome de quê, de uma legitimidade mínima? Ao mesmo tempo, é óbvio que é preciso destruir completamente essa lógica punitiva para inventar outra coisa… mas taticamente não vamos dizer que não estamos nem aí para a justiça, pois é preciso pensar que temos que reinventar tudo a médio ou longo prazo.

Deleuziana: Recentemente, no prefácio de Why Guattari?, Genosko menciona que quando questionamos a atualidade da esquizoanálise, após ter enfatizado seguindo os passos de Jean-Claude Pollack que não existe esquizoanalista na França, ele enfatiza que a sua teoria e prática exemplar com a trupe Ueinzz constitui provavelmente uma parte da resposta.4 Em que pé anda a sua colaboração com a trupe? Trata-se ainda de um espaço de experimentação, invenção ou um certo lengalenga se instalou?

Peter: Eu diria que essa prática no teatro, nunca a defendi com uma bandeira esquizoanalítica. O que acontece é que há 4 anos tive que assumir a coordenação da pós-graduação em filosofia na PUC-SP, de modo que às quartas de tarde, horário tradicional dos ensaios, estou ocupado com tarefas administrativas na universidade, o que me impediu de participar do grupo por um tempo. Ocorre que há 2 meses fui ver o novo espetáculo da trupe, e foi a primeira vez na minha vida que não colaborei na montagem de uma peça e não participei da apresentação – assim, pude assisti-la como espectador. Fiquei tão deslumbrado, todas as camadas que vivi há 20 anos voltaram do nada, num extravasamento. Tem vários atores novos. Fiquei tão tomado por tudo que entendi novamente porque não consigo mais ir ao teatro, não suporto a teatralidade, a declamação, a separação do corpo, tudo isso que é da ordem da representação – todo o contrário que se vê no Ueinzz. Frente à nova peça da trupe, fiquei surpreso com a sensação de novidade que se desencadeava em mim. Eu lhe diria que essa máquina de inventar mundos continua com outras pessoas, mas ela está aí. Várias vezes acreditei que ela ia morrer, todo mundo no grupo viveu isso em um momento, mas sempre o vemos renascer com uma nova força. O aspecto de experimentação do dispositivo está preservado, sempre dando frutos diferentes. O que me faz dizer a mim mesmo que faço parte desse mundo e que assim que puder, voltarei a esse mundo com meu jeito e minha idade…

Nunca tive o sentimento de que éramos um exemplo da esquizoanálise, mas que tínhamos a liberdade de atravessar, mostrar outros modos de lidar com a loucura. Quando tive que interromper meus ensaios, isso coincidiu um pouco com a expansão da editora n-1, que multiplicou suas publicações. De fato, senti cada vez mais necessidade de fazer livros como se faz pequenas máquinas capazes de desencadear acontecimentos, encontros5. Fico me perguntando se certos instrumentos que experimentei lá, no Ueinzz, não os contrabandiei para a n-1. Acredito que ali aprendi uma certa coragem de defender a liberdade de invenção.

Deleuziana: Guattari ainda é muito pouco discutido na França, por outro lado, seu pensamento é bastante presente no Brasil, aliás no Japão também, onde ele também adquiriu consistência. Existe uma vivacidade bastante estimulante dos estudos guattarianos nesses dois países.

Peter: Eu encontro muitos interlocutores aqui, não necessariamente no plano teórico, mas no plano da sensibilidade, da abertura, de uma disposição para uma certa esquizofrenização. Acho que existem instrumentos, ferramentas na esquizoanálise que não formam necessariamente um sistema, mas que alimentam um campo de práticas. Conheço antigos alunos em diferentes áreas que se alimentam disso.

Deleuziana: Por que Guattari adquiriu tanta consistência aqui? Por que o Brasil?

Peter: Existem hipóteses, uma relação com a antropofagia… Acho que se tiver que dar uma resposta, ela seria via Eduardo Viveiros de Castro. Acredito que ele, em seu campo da antropologia, construiu suas ferramentas, algo que ele nomeia perspectivismo ameríndio, ele construiu algo tão próximo de Deleuze e Guattari! Ele viu um devir outro do pensamento que ele encontrou nos Ameríndios e de certo modo, quando ele diz que somos todos índios, exceto aqueles que não o são, penso que poderíamos arriscar algo parecido, somos todos esquizos menos os que não somos.. rs.. existe toda uma camada indígena da sociedade brasileira que foi sufocada e que volta, mas talvez não seja uma boa resposta, seria preciso desenvolvê-la…

Não acredito que poderia ter feito o que fiz aqui em outro país, bom, em La Borde talvez, mas não acredito que em outros lugares teria sido acolhido num hospital-dia psiquiátrico sem qualificação profissional e toda a deriva que se segue disso. Gostaria de responder sua questão, é uma boa questão, acho que é um pouco aquilo que todo mundo que trabalha com Deleuze e Guattari se pergunta, por que aqui?

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NOTAS

[1] cf. Peter Pál Pelbart. 2008. “L’inconscient déterritorialisé” in Multitude 34 “L’effet Guattari”, p.106. Peter Pál Pelbart. 2018. Ueinzz Theatre Company : cosmopolitical delay. Amsterdam: If I Can’t Dance, I Don’t Want To Be Part of Your Revolution.

[2] Peter Pál Pelbart é co-editor da n-1 edições, que ele ajudou a fundar em São Paulo, em 2011. A publicação de Pragmatismo pulsional está prevista para 2019.

[3] Peter Pál Pelbart. 2016. O avesso do niilismo: Cartografias do esgotamento, 2ª edição São Paulo: n-1, p.97n.

[4] Genosko, Gary. 2019. « Foreword » in Why Guattari? A Liberation of Cartographies, Ecologies and Politics. (ed.) T. Jellis, J. Gerlach, JD Dewsbury. Londre, New York: Routledge, pp.xvi-xx.

[5] Por exemplo: Máquina Kafka de Guattari, publicado pela n-1, necessita literalmente que desparafusemos uma porca para abrir o livro.

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FONTE

LA DELEUZIANA – REVUE EN LIGNE DE PHILOSOPHIE – ISSN 2421-3098. N. 9 / 2019 – CLINIQUE SCHIZOANALYTIQUE.  Acesse o site: https://www.ladeleuziana.org/

* O texto original tem como título “O teatro e a loucura para esquizofrenizar a vida“. Entrevista com PETER PAL PELBART realizada por Larissa Drigo Agostinho e Jean-Sebastien Laberge. Tradução por Felipe Shimabukuro.

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