ESQUIZOANÁLISE: Trabalho analítico e processos psicóticos – por Jean–Claude Polack e Danielle Sivadon

Introdução

Neste século de todas as loucuras, por que ainda falar da psicose, esse fragmento de espelho que cada um carrega com grande esforço para que lhe sejam menos estranhas suas próprias rupturas e as das sociedades que acreditou compreender?

Viemos de infâncias paralelas, ignorantes uma da outra.

Ele, judeu. Cidades cada vez mais latinas o protegeram do nazismo. Descobriu concomitantemente os campos do exílio e as ilhas do Caribe.

Ela, filha de psiquiatra. Foi criada por “empregadas” parafrênicas, cujos delírios, já antigos, as diziam “inocentes”. Eram–lhes confiadas a cozinha, as crianças e os cães nos vastos domínios dos hospitais em que, durante a Ocupação, por trás dos fossos, agia o “extermínio suave”.

Assim, desde cedo carregamos em nós mesmos o “asilo”. Ele nos protegeu das loucuras da história. E continuamos a falar do asilo aqui, quaisquer que tenham sido, ao longo dos anos, os nomes que ele adotou.

Utopias coletivas, militâncias, psicoterapia institucional. Sempre é necessário um lugar que permita viver e encontrar o outro.

Provisoriamente, chamamos nossas construções singulares de “Quimeras” ou “Monstros”; com cada alma vagabunda, exploramos seus estratos e contornos. Tudo pode formá–los, ou melhor, deformá–los: um ataque de mau humor ou a queda do muro de Berlim. E sua combinatória nos interessa mais que sua significação.

A psicoterapia analítica das psicoses parece, a priori, uma empreitada desmedida. De Freud – que a dizia impossível pela ausência de “transferência” – a Lacan – que não quis estabelecer nada além de suas “preliminares” –, a psicanálise permanece no limiar desse domínio no qual a falha simbólica proíbe e torna perigosa a associação livre de figuras e palavras, o desenfreamento sistemático do pensamento.

Bleuler já afirmava que uma quantidade três vezes maior de pacientes saía de Burgholzli¹ depois de os médicos “terem começado a tratá–los baseando–se na compreensão freudiana profunda”. Mas Paul Federn, que promoveu a aplicação da análise ao campo das psicoses, só concebia essas terapias para casos de um transtorno considerável, e sob um aparente paradoxo:

Na neurose, o psicanalista se esforça para tornar consciente o material inconsciente recalcado. Na psicose, ele lida com um excesso de materiais inconscientes que já alcançaram a consciência. Assim, o fim terapêutico neste caso não é o levantamento do recalque, mas o re–recalque…²

As práticas terapêuticas geralmente confirmam essa linha demarcatória, uma vez que a maior parte das psicoterapias de psicóticos é realizada durante uma hospitalização – ao menos intermitente – e sob a responsabilidade de uma equipe. Nós mesmos, em nossa prática liberal, não escapamos a essa regra.

Simples contexto do tratamento ou seu instrumento essencial – quando só então merece o título de “instituição” –, o estabelecimento de cuidados sempre denuncia a ilusão de uma “relação dual” no tratamento das psicoses. Pois essas doenças tidas como graves, ainda que não ameacem o devir social dos pacientes mais do que certas neuroses, se acomodam mal às condições contratuais de uma “talking cure”. Além disso, os doentes quase nunca a pedem espontaneamente.

O quadro das psicoses, bastante impreciso, não pode fornecer nem as coordenadas de nosso trabalho nem as certezas de sua eficácia.

Tendemos a pensar que as “psicoses dissociativas” merecem um lugar particular entre as indicações de tratamento, que a elas, e apenas a elas, deveria se atribuir a reputação de síndromes refratárias; que as curas de “esquizofrênicos” talvez devam seu modesto sucesso apenas à imprecisão do diagnóstico. Esses sujeitos, cujo tratamento muitas vezes se estende por longos anos, frequentam os hospitais, algumas clínicas especializadas e os diversos equipamentos da saúde mental pública. Eles questionam uma política dividida entre as exigências de verdadeiros cuidados e as tentações ortopédicas – até mutilantes³ – de uma simples normalização social.

Preferiremos a noção de “processos psicóticos” às certezas dos quadros clínicos, dos diagnósticos devidamente tipificados e das “estruturas”.

Muito frequentemente as categorias da psicose, da neurose e da perversão têm sido cuidadosamente separadas apenas para, em seguida, melhor descrever a mistura de suas particularidades em formas híbridas, “mistas”, limites, adjacentes ou monstruosas.4 Uma vez ultrapassado o longo período dos “quadros” que a situação asilar cristalizou – a era de Kraepelin –, os psicóticos parecem demolir os quadros nosográficos mais bem estabelecidos. Sua evolução diverge de acordo com o contexto de acolhimento e de atenção, as concepções de seus médicos, as atitudes conscientes, e principalmente inconscientes, dos que deles tratam.

Os terapeutas – em particular os analistas – aceitam de bom grado a existência de composições clínicas, admitindo seu caráter instável e processual.5 Fala–se de “partes psicóticas”, de “partes neuróticas”, de “núcleos perversos”. As psicoterapias se apoiam em determinada área, determinado modo de existência, determinados sintomas aberrantes, como nas reconquistas de longa duração em que, desesperados para atingir o centro vital de um Império e especulando sobre sua fragilidade, os estrategistas se aliam às minorias dissidentes e aos poderes locais para encorajar sua progressiva emancipação.

Duas grandes orientações, antinômicas, aliás, se desenvolveram recentemente.

Na França, Jacques Lacan, o primeiro, limpou o terreno. A lógica de sua abordagem linguística e estrutural do Inconsciente situa a psicose nos fracassos metafóricos do discurso e nos desmantelamentos da sintaxe. Essa língua perturbada sinaliza a disfunção das articulações entre o Simbólico, o Imaginário e o Real. Aos mecanismos do recalque, ele prefere a noção de “foraclusão”, nó patognomônico da loucura. Abre, assim, caminho para uma psicogênese mais atenta à questão do Pai simbólico e do Falo do que às carências da função materna. Esta se situa, desde então, aquém de uma problemática edípica da castração ou dos avatares fetichistas de sua recusa

Alguns de seus colaboradores, permanentes ou pontuais, explicitam seu raciocínio e tentam deduzir daí as consequências técnicas (Françoise Dolto, Serge Leclaire, Piera Aulagnier, François Perrier…). Mas essa corrente de pesquisa dá lugar, atualmente, à inflação de exegeses clínicas. E estas privilegiam os rigores doutrinários do diagnóstico e os mecanismos de “entrada” na psicose, em detrimento de seu possível devir.

É curioso que tantos trabalhos teóricos dedicados à psicose estejam apoiados exclusivamente no texto das memórias do presidente Schreber: a interpretação de Freud, o comentário de Lacan e as exegeses de seus discípulos mais próximos.6 Essa filiação ininterrupta de controvérsias não deveria nos fazer esquecer que a reflexão de Freud não teve nem motivos nem efeitos terapêuticos, que ela nunca questionou o autor do texto original na experiência do tratamento e da transferência – crucial, entretanto, para a teoria psicanalítica.

Negligenciando os escolásticos, que tão frequentemente acompanham as práticas de cuidados asilares, certo número de pesquisadores anglo–saxões se encarregaram de “análises” de psicóticos. Suas trajetórias empíricas – acidentadas, mas tenazes – estão atentas principalmente aos avatares do terapeuta, a isto que sempre o obsta, a panóplia da contratransferência. O pragmatismo de alguns se combina com uma notável ausência de elaborações teóricas; então, algumas convicções básicas servem de referência para prescrições psicoterapêuticas unívocas. A hipótese de uma carência materna na determinação das psicoses geralmente resume o sentido dos esforços terapêuticos destinados a dar ao paciente a “mãe boa” que lhe teria faltado.7 Entretanto, a tentativa é fecunda: F. Fromm–Reichmann, Harry S. Sullivan, H. Searles, H. A. Rosenfeld, Marion Milner ou S. Resnik, para citar apenas os que tratam de adultos, testemunham tanto melhor as singularidades de cada situação na medida em que um grilhão teórico – geralmente kleiniano –não imponha sua grade de leitura sobre as peripécias do tratamento.

Todas essas pesquisas teriam precisado da estreita colaboração entre psicanálise e psiquiatria hospitalar. Mas uma excessiva impermeabilidade entre domínios e instituições preservou a pureza especulativa da primeira disciplina, abandonando a segunda a seu destino exclusivamente organicista e médico. Isso mostra o lugar decisivo que teve, para nós, o movimento prático e teórico da “Psicoterapia Institucional”. Nosso trabalho na clínica de La Borde (Jean Oury, Félix Guattari), na senda de François Tosquelles8, foi uma oportunidade para fazer tábula rasa. A atenção dos terapeutas – sua capacidade de análise – deve incidir, em primeiro lugar, sobre seus próprios instrumentos, a instituição, os dispositivos sociais, as modalidades de troca, a economia dos desejos — aí onde se elabora o acolhimento dos pacientes psicóticos. Essa questão de método, que liga as vicissitudes da alienação mental aos sintomas coletivos de alienação social – com suas especificidades de acordo com cada espaço de cuidado – continua sendo axiomática para nós.

A “sessão” é como um elemento, mais ou menos articulado, de um “tratamento”, ou seja, de um complexo agenciamento institucional, com suas múltiplas determinações, suas necessárias polissemias, suas condições singulares de enunciação. Esse agenciamento instável sofre os efeitos da história, a nossa e a de nosso tempo. Temos de reconhecer, descrever e acompanhar sua evolução; a transformação permanente da cena terapêutica importa mais do que um modelo estratégico preconcebido.

Todos aqueles que insistem na “não presença” dos sujeitos psicóticos estão preocupados, sobretudo, com a criação das condições de um “encontro”, com a instauração de coordenadas mínimas de espaço e tempo, necessárias para a emergência de um “sentido”. Os trabalhos de Gisela Pankov, os textos de Henri Maldiney, as pesquisas de Binswanger – e geralmente aquelas dos fenomenólogos – nos parecem propor um descentramento útil. Exigências ético–estéticas substituirão as hermenêuticas do discurso, os impasses da significação. Elas liberam os dados formais, as sensações e os movimentos, as imagens e as ações de sua estrita sujeição aos jogos do significante, à ordem reduzida do “gnósico”.9

Ainda que não a nomeássemos, o leitor certamente reconheceria a filigrana “esquizoanalítica”.

Michel Foucault já havia aberto uma brecha. A crítica genealógica e antropológica da loucura e das instituições que a ela se dedicam no Ocidente lançou as bases para uma abordagem complexa da psicose. A sociedade, a história, os códigos e as culturas foram incluídos na reconsideração da psiquiatria e das disciplinas a ela ligadas.

Gilles Deleuze e Félix Guattari, com O Anti–Édipo e Mil Platôs, soltaram para nós a tripla amarra do Sujeito, do Significante e da Estrutura, promovidos, por bastante tempo, ao estatuto de universais modernos. Evidenciaram as ligações múltiplas, “rizomáticas” entre o Inconsciente e a História, o Desejo e a Economia Política, a Subjetividade e os agenciamentos sociais. Não para fundir Marx com Freud, nem para invalidá–los de uma só vez, mas para abrir, às vezes de modo iconoclasta, novos espaços de liberdades: pensar melhor, juntos, os avatares da História e os impasses da Razão. Possibilitaram o relato de uma experiência, sem que precisássemos virar religiosos ou falar de nossas filiações.

Félix continuou esse trabalho com paciência, dentro e em torno do “Seminário” que ele coordena há mais de dez anos. Sempre teve a delicadeza de nos fazer sentir que encontrava em nossos escritos e dizeres questões pertinentes para as suas próprias.

Embora a interpretação nos forneça, às vezes, a oportunidade de comentários pontuais, nossos procedimentos de trabalho são, veremos, essencialmente “cartográficos”.

O próprio Freud, no fim de sua vida, opunha as “construções”, essenciais, às interpretações, de peso menor.10

O objetivo do analista é “induzir o paciente a abandonar os recalcamentos no sentido mais amplo possível”. Portanto, o paciente tem de retornar a capítulos de sua história que já não estão à disposição de sua consciência, mas que continuam sendo, mesmo na psicose, o “núcleo de verdade” de suas fantasias, alucinações ou elaborações delirantes.

Freud convida a procurar os “vestígios” desses materiais nos sonhos, nas associações livres, nos sintomas e nos comportamentos dos pacientes. Mas também em suas ações, “sejam elas importantes ou insignificantes, efetuem–se elas na situação analítica ou fora dela…”.

O tratamento desses vestígios – apesar da comparação arqueológica que centra o artigo – tem mais de construtivismo que de simples reconstituição:

Sua tarefa (do analista) consiste em reconstituir aquilo que foi esquecido a partir de vestígios que restaram dele ou, mais exatamente, em construí–lo.

A reconstrução não é, para Freud, o objetivo e o final dos trabalhos, é apenas um “trabalho preliminar”.

Isso não quer dizer que a metáfora do arquiteto possa, a partir daí, substituir a do arqueólogo. Na análise não há nem etapas nem plano ou cronologia; nada de fundações ou de andares ou etapas. Apenas uma curiosa dialética:

O analista conclui um fragmento de construção e o comunica ao sujeito para que ele seja influenciado pelo fragmento. A partir do novo material que surge daí, poderá elaborar um novo fragmento, utilizá–lo da mesma maneira e avançar pouco a pouco, alternando assim até o final.

A construção é um verdadeiro “quadro”, uma ficção biográfica “digna de confiança”. Ela não é verificável nem pelo assentimento nem pela denegação do paciente, mas sempre de maneira indireta. A produção do “novo” é relançada pelas hipóteses do analista. Às vezes, a “reação terapêutica negativa”, agravando os sintomas ou a angústia, confirma a contrário a pertinência das construções. Em todos os casos, uma “conjectura” do analista torna–se uma “convicção” do paciente.11 Nesse ponto, Freud se sente obrigado a se defender da acusação de “sugestão”; então, pleiteia exclusivamente o seu bom uso.

Trata–se de reconstituir, apesar de tudo, a história do paciente, de “completar e ampliar a construção”? O trabalho do analista deve necessariamente levar às rememorações, à expansão de uma verdade biográfica? Freud não pensa assim:

Acontece muitas vezes de não conseguirmos que o paciente rememore aquilo que foi recalcado. Entretanto, se a análise foi conduzida corretamente, induzimos nele uma convicção inquebrantável na veracidade de nossa construção, que obterá um resultado terapêutico semelhante ao da rememoração de uma lembrança. A questão de saber em quais circunstâncias isso se produz ou como é possível que isso que consideramos um substituto incompleto possa, entretanto, dar um resultado completo – tudo isso será objeto de pesquisas posteriores.

Freud esboça, então, de modo inesperado, uma reflexão sobre os processos psicóticos; como se a questão das construções e da eficácia do tratamento estivesse ligada, para ele, à extensão das indicações da psicanálise ao domínio dos delírios, das alucinações e da “loucura”.

Ele evoca a “reemergência de alguma coisa que foi vivida na infância e esquecida em seguida, alguma coisa que a criança viu ou escutou em uma época em que quase não falava…”.

Para ele uma construção de sentido enriquece um quadro que tende, assim, por toques sucessivos, à sua completa definição.

Desse modo, o texto de Freud recorre ao trabalho das hipóteses, a uma ciência conjectural.

É justamente para as reemergências e o recalque originário que, segundo nós, poderiam se orientar as “pesquisas posteriores”. A história e a verdade se compreenderiam, no sentido mais amplo, no conjunto de seus “territórios”. Tais territórios ultrapassam, e muito, os materiais neuróticos das “reminiscências” edípicas – em função de sua própria textura, sua “acuidade” sensorial, sua multiplicidade semiótica.

Será que, apesar de tudo, precisamos perseguir a miragem de uma reconstituição, de um afresco acabado da assunção do Sujeito? Podemos ainda nos contentar com retraçar, em cada tratamento, o movimento unívoco de uma maturação cujos termos e etapas conhecemos de antemão?

Preferiremos a “obra aberta”. Não completar. Mais do que concluir, abrir novas pistas. Fazer trabalhar as forças e as formas, ao invés de lhes dar uma última assinatura. Não compreender a espiral de um eterno retorno, mas produzir, ou criar. Colocar–se na origem de um movimento e não no seu final, na sua cópia ou representação.

Porém, a elaboração freudiana fica obscura em um ponto essencial. A divisão entre as tarefas do analista e as do paciente está tão claramente delimitada que evita a questão da transferência: “O analista não viveu nem recalcou nada do material em questão (aquele do paciente); sua tarefa não consistiria em rememorar qualquer coisa que fosse… mas em reconstituir aquilo que foi esquecido, a partir dos vestígios…”.

Qualquer que seja a “tarefa” do analista, ele pode estar tão facilmente isento de seu próprio inconsciente? Que dizer da “transferência do analista”, da “contratransferência”, dos “materiais e associações” do terapeuta? Quais subterfúgios poderiam afastar isso tudo do campo fechado da sessão e dos desenvolvimentos do tratamento?

Como assinala Serge Viderman:

O encontro de dois inconscientes na situação analítica, onde um pode se estruturar livremente na transferência, ao passo que ao outro são impostas limitações estritas da contratransferência, sem que se possa sequer poder pensar seriamente em eliminá–la ou ter certeza de ganhar algo caso se conseguisse fazê–lo, mostra bem a que coeficiente de incerteza está sujeita a descoberta do sentido na situação analítica – sem que se tenha condições de imaginar uma forma eficaz de evitá–lo.12

Essa forma de evitá–lo não existe, e é melhor assim. Viderman propõe fundar a ética do trabalho analítico sobre a própria incerteza – as singularidades que presidem a nossas elaborações. É uma postura pragmática, atenta àquilo que o terapeuta põe em funcionamento na “experiência” e a seus efeitos nas produções das mesmas. É um primeiro passo, decisivo para uma meta–modelização dos procedimentos analíticos; porque estes englobam, além do discurso do paciente e do inconsciente de seu analista, os agenciamentos coletivos de enunciação que sobredeterminam o dispositivo do tratamento.

Uma postura globalmente interpretativa, anamnésica, deve delimitar uma zona de “verdade”, “significantes–chave”. Uma cartografia analítica, ao contrário, só pode trabalhar num movimento expansivo, não orientado, miceliano. Não cessa de se ampliar por suas bordas, ao passo que o pseudocentro de sua partida – seu ponto de impulsão – rapidamente se torna excentrado. A proliferação do trabalho não reconhece qualquer hierarquia durável. Cada um dos momentos da cartografia pode se alçar à posição dominante ou se ver rechaçado para uma região menor. Essas posições não serão nem consolidadas nem definitivas; apenas operatórias e datadas; nenhuma delas servirá de desfiladeiro obrigatório para a história inconsciente do “sujeito”.

O “sujeito”, não mais definido por seu estatuto de indivíduo e sim pelos índices de singularidade que o afetam, é ultrapassado por uma produção de subjetividade, cujos agenciamentos, materiais e signos tentamos identificar. Nesse sentido, a interpretação figurará nessa exploração como uma ferramenta entre outras:

Os agenciamentos coletivos e/ou individuais da enunciação se tornam então objetos da investigação analítica, prioritários em relação à investigação das imagos e das estruturas pretensamente constitutivas da subjetividade.13

Na situação analítica, o terapeuta é como que um caso particular dos agenciamentos analíticos. Ele não se contenta com recolher “dados”, uma vez que não cessa, mesmo à sua revelia, de prover “dados”. Não pode, pois, pretender ocupar uma posição hermenêutica, nem garantir ou legitimar procedimentos que ele utiliza e que o utilizam. Um questionar–se permanente deve avaliar os efeitos provocados por suas ações e palavras, além de seus próprios graus de assujeitamento.

Todas essas observações convergem para a própria noção de “cartografia”. Esta, evidentemente, não pode ser uma simples atividade de representação, pois “fabrica” seu território enquanto o “avalia”.

O termo atos, em sua multiplicidade semântica, poderia definir melhor a estratégia. De fato, ele associa, não sem verdade, o artifício de uma cena e as iniciativas da ação com as inscrições minuciosas de uma ata.

Fazer, dizer, compreender e prescrever não serão, aqui, tão nitidamente separados quanto em uma prática analítica ortodoxa.

Não se espantem se virem reunidos fragmentos, monografias e digressões, casos em que nossa conduta foi certeira e outros em que fomos inoperantes. Para nós, estes últimos não são menos didáticos, nem os primeiros mais interessantes.

Uma história bem longa testemunha inflexões, desvios ou transgressões aos quais a psicoterapia dos processos psicóticos conduz inelutavelmente aqueles que a ela se dedicam; mas mostra também o que uma teoria do inconsciente pode esperar de uma pragmática para a qual, aqui, apenas esboçamos algumas direções.

O Corpo, o Mapa e o Monstro

Sessão

Élodie14 Quero te falar do meu bebê. Eu tinha te dito primeiro que era preciso que eu o pusesse numa prisão de negros muçulmanos. (…) Meu filho eu tive porque tinha comido batatas para cortar os testículos dos alemães. Isso me fez gozar, por minha vagina, e não matei os alemães, mas me inchou a barriga. Bem! Agora, pari porque meu bebê me disse para circuncidá–lo… como minha cruz. Então quando fui fazer cocô… a urina…

Polack Daí, o que aconteceu?

E. O bebê saiu de minhas regras e sempre se comunicou com minha barriga.

P. Ele ainda está na barriga?

E. Não, agora não mais.

P. Por onde ele anda?**

E. Eu não sei. Não entendo, é uma outra maneira de parir que eu não entendo. 

P. Ele se comunica com você falando? 

E. Sim, dentro da minha barriga.

P. E qual língua ele fala? 

E. Francês. 

P. Podemos falar ao mesmo tempo?

E. Vocês falam mas eu não falo, fico silenciosa.

P. Você nos escuta?

E. Não, eu escuto vocês brigando; é como um rádio.

P. O que eu digo a ele?

E. Você lhe diz que tinha me dado receitas, que não queria fazê–lo, que tinha me dado os medicamentos sem compreender, que deixou ele achar que você era idiota, porque sabe que como é seu filho, ele não te engana, ora!

P. Ele é apenas meu filho ou é meu filho e de mais alguém?

E. De você e de mais alguém.

P. . Quem é esse mais alguém?

E. Um de meus namorados, Ahmed.

P. O que ele deu para fazer essa criança?

E. O esperma.

P. E eu dei o quê?

E. A carta branca e o esperma branco das cartas brancas. Você não me fez nada, me deu os medicamentos, mas uma hora depois se tornou a carta branca.

P. Então passou*** pelos medicamentos?

E. Isso. Você me dá medicamentos para minhas regras.15

P. Como você acha que esse bebê é? 

E. Parecido com você; tem os olhos azuis.16

P. É um menino?

E. Sim, chama–se Franck.

P. Foi você que lhe deu esse nome? 

E. Não, foi ele que escolheu, e eu concordei. Franck quer dizer “moisi”***em alemão. 

P. Tem certeza? Quem é que te disse isso? 

E. Ninguém. Mas eu sei disso, quer dizer Moshe, Moisés em alemão. 

P. Moisés é como “moisi”?****

E. É isso. O cocô! 

P. É uma criança ou é um cocô? É uma criança ou é merda? 

E. Não sei… Ele fala comigo, isso foi feito pela merda.

P. E cresceu no reto? 

E. É isso, por minhas regras, pela magnitude, pela força de minhas regras. 

P. Mas quando ele fala com você, você o escuta com o que do corpo? 

E. Minha orelha se comunica com minha barriga.

P. Então você o escuta com a orelha e com a barriga? 

E. Isso.

P. E você lhe fala com o quê? 

E. C–c–com a voz, com o coração. 

P. Ele escuta?

E. Sim. 

P. E quando eu falo, você me escuta com o quê?

E. Não é do mesmo modo: é com a orelha. 

P. Somente com a orelha? 

E. Não, é da barriga, vem da barriga, mas minha barriga não se comunica com minha orelha. Os medicamentos fazem a barriga se comunicar…, a orelha pela barriga, não são perceptíveis.

P. Mas acho que, afinal, esse bebê se parece bastante comigo, não? 

E. Ele tem tua voz. É loiro.

P. Mas eu não sou loiro! 

E. É como os olhos: vejo com meus olhos azuis, a cor dos olhos muda com os medicamentos, por isso eles são castanhos.

P. Você está vendo as coisas de outra forma neste momento? 

E. Digamos que vejo menos bem… a luz… Antes eu era bem míope. 

P. Você também tinha esperma? 

E. Não, masturbei–me com esperma de vela, o esperma da vela. Um esperma verde. A cor verde. 

P. E daí?

E. Tenho medo… porque o vinho, há um tipo de vinho que me deixa efervescente, que me faz “pasmar”! ***** 

P. Que te excita sexualmente, quer dizer?

E. É isso; apesar de mim… Posso fazer amor com meu namorado, ele tem a minha idade, tem 35 anos, eu tenho 37; ele também (…) é estéril! É, digamos, o esperma dele, ele tem o esperma que não é mais jovem como antes, branco. Ele ficou doente. Não foi trabalhar, imagino… desde minha bolinação. 

P. Que doença ele teve?

E. Do sexo e do ventre. Por minha causa, por minhas regras. Enfim, penso que é por minha causa.

P. Porque você tinha… 

E. …emagrecido. Não tenho mais minhas regras como antes. E isso mostra que ele não pode mais ter a mesma vida de antes. Então, veja, ele espirra, sua saliva é purulenta por causa de seu esperma, subiu até a saliva, é um muçulmano. Seu… grupo sanguíneo quando a gente é examinado por um médico, positivo ou negativo, ele cospe muito por causa de seu esperma.

P. O que ele faz com a saliva?

E. Ele cospe, eu te disse!

P. O que nasce do chão quando ele cospe? 

E. Não, nada…

Imagens do Corpo

Na aparente desordem de seu mundo, Élodie parece querer construir uma forma. No umbigo de seu delírio, um corpo agarra partes, pedaços, destroços, órgãos e os junta formando um monstro bizarro. É para esse trabalho que sou convidado, já tomado nos materiais de sua construção, engolido por suas máquinas, utilizado. Então, preciso de figuras, de traços, de limites, algumas ferramentas. No país da psicose, não sou intérprete, mas explorador e cartógrafo.

Devo notar inicialmente a importância dos diversos “fluxos” (alimentos, matérias fecais, urina, esperma, medicamentos etc.) nessa economia generalizada, confusa e transitivista. Constatar que qualquer coisa pode fazer o outro se comunicar com a pessoa. A voz, por exemplo. Como para Wolfson, as palavras transferem a violência, o afeto ou a energia de um corpo para outro. Mas o outro está mal definido na sua estranheza em relação ao corpo “próprio”; também a língua circula no interior de uma anatomia imaginária. Aliás, nenhuma “explicação”, nenhum traçado de limites pode modificar esses percursos hiperdialéticos do “corpo sem órgãos”, atravessado, mas transformado pelas matérias que o impregnam ou o irrigam.

Algumas hipóteses poderiam “localizar–me” nesse espaço corporal. Uma delas me situa como criança na barriga de Élodie, sem que seja muito precisa minha locação, se digestiva ou genital. O bebê é, entre outros, fruto de nossa cópula; mas se trata, bem se vê, de uma gravidez coletiva onde intervêm o esperma de outro paciente, minha receita e “meus” medicamentos; e, sem dúvida, uma fecundação original (Ho Chi Minh…).

Os fluxos ligam zonas ou “personagens” múltiplos e contraditórios. A lógica do “e… e” prima sobre a do “ou… ou”. É dito que a criança se parece comigo, dando como prova imediata disso um traço diferencial: a cor dos olhos. “Minha orelha se comunica com minha barriga”, mas “minha barriga não se comunica com minha orelha”. Élodie utiliza o “não” mais como escansão do que como negação. Mesmo quando aprova minhas hipóteses, o “não” lhe serve de demarcação e ruptura em uma sequência descontínua de palavras, como se precisasse esculpir uma proposição num magma sem sujeitos por meio de uma pontuação precária e peremptória. Quando as palavras não extraem seu valor da função metafórica, encontram–no na sua qualidade de elementos materiais para a construção espacial de um conjunto vivo. São os tijolos metonímicos de uma “linguagem–espaço”, cujas coordenadas formais devem ser circunscritas e repertoriadas; e, no projeto psicoterapêutico, “habitadas”.

Sob o nome de “imagem do corpo”, de “corpo fantasiado”, de “corpo vivido”, a questão do corpo efetivamente ocupa, na cena estratégica do tratamento da psicose, um lugar geralmente privilegiado. As palavras enganam: a imagem do corpo é mais que uma imagem, é um modo de representação possível, uma formulação figurativa precária não necessariamente ligada a matérias icônicas ou a signos visuais.17

Segundo Freud, a história da escrita reproduz o destino filogenético do significante. Os primeiros modelos de escrita, pictográficos, hieroglíficos, são reproduções desenhadas ou traçadas, grafismos que conservam boa parte do aspecto sensorial, essencialmente visual, do objeto. O inconsciente “profundo” estaria mergulhado nesse modo particular de representação.

Outra hipótese, complementar à anterior, é que o núcleo da língua é apenas uma “inscrição” verbalizável de representações–coisa, ou seja, de uma escrita virtual. A palavra sobrecodificaria traços corporais: expressões mímicas, gestos, posturas, aproximações do corpo da mãe.

A esses traços e pontos de referência, essencialmente espaciais, seria preciso juntar os sons e barulhos do corpo e, principalmente, a voz – como estrato fonético assignificante (vocalizações, lalações, murmúrios). Assim, “a noção de imagem” se estenderia a todo o campo perceptivo–sensorial (imagens acústicas, táteis, sinestésicas etc.).18

Portanto, o termo “imagem” não deve nos conduzir apenas ao continente do visual, do escópico, ou à problemática isolada do olhar; da mesma maneira que o espelho, em seus diversos agenciamentos, “estádios” ou vicissitudes, tampouco pode resumir as aventuras ideais do Sujeito, os impasses e as fraturas da identificação.

Mapas

Embora já coloque na imagem do corpo os acontecimentos constitutivos de uma história, Gisela Pankow propõe ver nessa imagem apenas uma organização puramente espacial, uma dialética entre as partes e o todo, uma ligação dinâmica cuja ausência é característica da dissociação.19

Pankow explora uma simbólica de trocas elementares em que as categorias do “dentro” e do “fora” não podem ser validadas, porque suporiam resolvida a questão de um limite. Para ela, trata–se de encontrar um ponto de referência, um enxerto, uma máquina simbiótica limitada, e fazê–la funcionar como “dobradiça” na dialética do espaço.

Do corpo à terra, da imagem motora às marcas de terreno, as ligações podem ser ecológicas, às vezes tênues, sempre indispensáveis.20

Em seu trabalho sobre os aborígenes, Barbara Glowczewski mostra as articulações pragmáticas entre os sonhos tratados coletivamente, as trajetórias nômades e os usos do corpo. Os desenhos sobre a pele, essencialmente nas mulheres, aplicam no próprio corpo uma cartografia dos mitos, uma estratégia das decisões políticas. As cenas oníricas, os movimentos de migração, os gestos e as decorações do corpo, os lugares na família são decifráveis conjuntamente, em um recorte comum do espaço e do tempo a ser lido como um mapa, com suas profundidades, direções, extrapolações, proposições criativas.21

Em sua monografia sobre Leon, o trabalho de Françoise Dolto começa efetivamente com a modelagem de uma cadeira vazia. Leon é uma criança “retardada”, muito musical, praticamente incapaz de andar ou de ficar em pé sem apoio. Estamos em 1941. Ele é filho de um alfaiate judeu polonês não praticante e de uma bretã cristã. É batizado, não circuncidado, “francês”. É uma espécie de “monstro”, sem costas, sem pernas, sem marcha, sem ereção global do corpo, mas extremamente dotado com as mãos no piano. Sua existência rastejante e torva se prolonga até o dia em que, em uma sessão, consegue fazer reconhecer sua precariedade ao ser reificado diante do objeto antropomórfico. A analista obtém sua primeira resposta quando interroga Leon não mais sobre seu desejo, mas sobre o da cadeira que o espera, canibalística, prestes a devorar seu “assento” e suas “costas”.22

Quando o diálogo finalmente acontece, Dolto lhe mostra em um único gesto a anatomia sexual, os ritos e pertencimentos judaicos, a situação política, a geografia, os territórios.

Rapidamente, esboço um mapa da França para lhe explicar o que significa zona ocupada, zona livre, linha de demarcação, todas estas palavras que utilizamos o tempo todo ao nosso redor nos dias de hoje.

Mais tarde, ela acredita poder explicar os sintomas por uma contenção traumática da primeira infância: enquanto trabalhavam, os pais afivelavam o menino sobre sua cadeira sanitária, interditando–lhe toda motricidade além da distal, das mãos, dos dedos. Contudo, chamam a atenção no tratamento os percursos (solidários) cruzados da imagem do corpo sexuado, das referências genealógicas, das leis que ordenam a organização dos lugares e territórios, das situações administrativas e da geografia política.

Escrevi inicialmente os percursos “solidários”, mas prefiro falar de cruzamentos e encruzilhadas. Porque gostaria de evitar dar a entender (como às vezes Dolto parece inclinada a fazer) que esses estratos semióticos se articulam o tempo todo em uma estrutura significante nuclear, que o “intérprete” decifra e atualiza. A observadora de Leon põe em funcionamento dois tipos de “causas”. Uma privilegia a questão da identidade e do nome. A outra desvenda um acontecimento traumático particular, a contenção da criança sobre sua cadeira. A preocupação em reunir todas as situações em uma única trama desemboca necessariamente na hipótese de uma estrutura significante sobredeterminada, cuja falha deve fazer desabar todo o edifício. Cada um pode nomear essa falha como quiser. E embora Dolto não utilize a foraclusão do Nome–do–Pai, sua prática revela que ela liga todos os elementos “patogênicos” da biografia da criança numa situação global de erros ou de mentiras, parasitando todas as articulações simbólicas necessárias para o acesso da criança à sua fala.

Entretanto, parece–nos que a força essencial da intervenção de Dolto é justamente essa migração, constante em seu trabalho, de um estrato semiótico a outro. Ela procura o espaço no qual uma transferência seja possível; uma cena onde a fantasia, por mais fracionada que seja, possa aparecer numa brincadeira. Distinguiremos, por um lado, interpretações totalizantes (sobre a identidade do pai, a clandestinidade, a circuncisão, a ameaça de morte, a divisão da França em dois, as vicissitudes da situação edípica etc.); e, por outro, os assinalamentos estéticos, formais, mais ou menos lastreados no teatro kleiniano de objetos bons e maus, de coisas do “dentro” e do “fora” ou das sucessivas peripécias das diversas “castrações”. Estas últimas são pertinentes, sobretudo, pela apreensão, instantânea, intuitiva, de uma configuração dramática do corpo da criança na sua relação com os objetos, animados ou inanimados, de seu entorno imediato. Tudo isso, evidentemente, na presença de sua terapeuta, parte significativa desse traçado.

Os fracassos da simbolização são “falhas da linguagem dirigida à criança”; mas são, em primeiro lugar, os acidentes de um espaço não vetorizado habitado por formas esparsas, truncadas e sem ligações.23

A imagem do corpo larga, como se fosse estranho à sua problemática, o “esquema corporal”, neurológico e funcional. Crianças paralíticas ou cegas podem ter uma “imagem do corpo” perfeita. Inversamente, há pacientes com esquema corporal integrado e que possuem uma “imagem do corpo” perturbada. Mais que uma imagem, ou uma representação, é uma instalação, um conjunto de traços, de memórias, de figuras, de percepções, de signos, de agenciamentos maquínicos, de intensidades. Os desenhos, as modelagens, são representações figuradas dessa “imagem”.

Monstruosidades.

Monstros

Alain Cazans e Marc Hermant pedem diretamente “um monstro” a alguns de seus pacientes, e o saco da lareira de seus consultórios fica coberto de amontoados teratológicos multicoloridos onde, às vezes, se entrevê o humano. Essas figuras não são a imagem do corpo, mas entre elas e essa imagem há uma relação de denotação, de ilustração, de redução, de decupagem, de abstração. São pedaços, mas deixam supor o resto, os restos. E estes são brechas nos conjuntos caóticos e móveis, o corpo vivido, erógeno ou sofredor.

O “monstro” é um canteiro de partes vivas e inertes, um agregado de objetos, de territórios, de signos, desafiando, como no delírio, “a realidade natural”, as leis das ordens e das espécies, as lógicas de pertencimento, a fortiori as lógicas do discurso. Chamaremos de “monstro” tudo aquilo que, a pretexto de fazer corpo, coloca em relação inorgânica coisas que não pertencem aos mesmos conjuntos categoriais. O disparate. Os personagens dos jardins de Bomarzo, ao norte de Roma, são duplamente monstruosos. Por um lado, porque figuram monstros míticos, saídos da lenda, exacerbados por suas proporções gigantescas. Mas também porque, talhados diretamente na rocha que aflora no campo, criam a ilusão de uma metamorfose natural em que os limites da pedra e da carne, do vegetal e do animal, do natural e do construído, estão insolentemente embaralhados.

Uma fantasia psicótica é, ao mesmo tempo, um breve acontecimento e uma configuração, um monstro, uma quimera…

Objetos de desejo, objetos materiais, mitos, continentes, qualidades abstratas vêm se avizinhar. Ou melhor, entram em composição num plano de consistência particular, cujo código – a referência, a legenda cartográfica – é justamente o corpo. Portanto, nessa perspectiva, o monstro seria o trabalho do mapa sobre o corpo, uma diagramatização do corpo desejante. Capta um momento do lugar “transferencial” no tratamento. Um pedaço de corpo do paciente faz alguma coisa com um pedaço do meu corpo em

um determinado tipo de contexto – territorial, mítico, institucional, econômico e, certamente, simbólico. Para o monstro, o tempo não está dado de maneira homogênea. Determinado pedaço do corpo de Élodie (seu ventre, sua uretra, sua orelha), determinada produção (o sangue, a urina, o cocô) se relaciona com alguns de meus objetos, algumas de minhas zonas erógenas, de minhas palavras ou de minhas ações, a receita, os medicamentos. E tudo isso se passa no Egito, na Bretanha ou em Tours, há vinte anos ou no século passado. As articulações, os planos de consistência, os componentes de passagem ora são históricos, ora territoriais, às vezes somente fonemáticos ou tecnológicos. As mídias, por exemplo o rádio, e sobretudo a televisão, inserem–se em agenciamentos complexos com a sexualidade, o trabalho e a vida doméstica. O canal de televisão funciona como embreante e relê. Da realidade ao delírio, o movimento recíproco passa pela pequena tela que o filtra, torce, amplifica, enriquece, difrata. A reportagem ora é ao vivo, ora gravada. O monstro é um canteiro, uma maquete de montar cujas peças teriam se perdido, enquanto as peças perdidas de outra construção vieram se misturar às primeiras. Buster Keaton compra uma casa pré–fabricada para si; monta–a numa ordem qualquer: a porta está no terceiro andar e quando ele sai do quarto, cai no vazio. A chaminé joga água na calçada. A fumaça sai pelas janelas. Buster anda pelo teto.

O bebê de Élodie surge como terceiro termo na sessão, bússola no espaço cartográfico de suas identidades esfaceladas. Ele é homem e judeu, réplica miniaturizada de seu terapeuta. Embora sefardita, ela faz sua parte nas lutas contra os alemães. Não os mata, mas faz uma criança ao abrigo de uma “prisão de negros muçulmanos”.

Como a Virgem, Élodie é a sede de uma reencarnação. Talvez o bebê tenha nascido de uma absorção oral, talvez de uma masturbação anal. Em todo caso, no seu corpo a cloaca fetal – uretra, vagina e ânus confundidos – continua fazendo seu trabalho em uma indiferenciação monstruosa. A encruzilhada digestivo–genito–urinária articula os sistemas e os redistribui. Situa–se no ponto de encontro dos personagens importantes da vida de Élodie, os genitores masculinos, Ahmed e eu. É acumuladora e redistribuidora de fluxo; pilha e transformador. É principalmente nesse espaço que os jogos de palavras permitem a passagem contínua dos objetos às palavras, e depois dessas palavras a outros objetos, num deslizamento de sentido incessante que o corpo de Élodie tenta dominar.

A carta [carte] branca é a receita que lhe faço e que ela vigia com a maior atenção, a ordem dos medicamentos, seu nome, a quantidade, escrita em letras ou números, minha maneira de assinar… É também “carta branca”, liberdade concedida, “assinatura em branco”, direito de fazer uma criança com os comprimidos brancos de minha receita branca, esperma branco sensível à escrita. “Uma hora depois” de tê–los tomado, esses medicamentos voltam a ser a outra coisa que a fecunda completamente.

As passagens fecais, o fluxo urinário, os fluxos de palavras, correntes de esperma se entrecruzam em um espaço preciso, que Élodie sinalizará mais tarde como “a pele sobre o quadril”, ponto de concentração desses diversos metabolismos, entroncamentos e transformações. No tratamento, trabalhamos somente essas trocas, dons e raptos pelos quais o corpo de Élodie e o meu pensam se comunicar num espaço caótico, anistórico, “anacrônico” e confuso. A ambição continua sendo modesta: mostrar mais uma vez aqui que o delírio está investido por um mapa [carte]. E que este se deixa construir no tratamento, pedaço por pedaço – em uma progressiva articulação fundadora e antecipadora de um “sentido”.

(…)

A Obra

O monstro é um agregado de fantasias cambiantes. A fala do psicótico, na falta de representações plásticas ou gráficas, dá dele uma figura virtual, em que as palavras e as coisas não são claramente distintas. Quando Élodie me diz pela trigésima vez, “eu tenho uma pequena pele aí (peau là), no quadril”, isso faz imagem e começo a ver uma membrana, sua forma, sua ligadura, sua disposição. Entretanto, ela talvez esteja parcialmente prisioneira de assonâncias fonéticas (peau là/Polack) ou de um jogo metáforo–metonímico que evoca o “pote” (pot), o penico (pot de chambre), sua merda, colada ao seu quadril, não separada, fecundante. Significantes e significados são conceitos muito pobres. Numa terminologia mais hjemsleviana, diríamos que o monstro reúne modalidades múltiplas de ligação entre matérias, substâncias e formas; que ele não privilegia nenhuma. Nesse canteiro multissemiótico, o espaço da sessão e da relação dual seleciona, reduz, abstrai. A dominante textual, carregada de imagens ou não, induz uma decifração, uma leitura, uma interpretação, que as passagens ao ato perturbam por princípio.

Ao contrário, a cartografia monstruosa é uma “obra aberta”24, proporcional ao delírio, e suscetível de um “tratamento”. É uma massa móvel de informações ou de signos, interpretáveis segundo registros variados e probabilidades múltiplas.

Paradoxalmente, é a “improbabilidade” no interior de um sistema de referências definido que melhor nos afasta das redundâncias e das convenções, esboçando assim processos de singularização possíveis.

Tomemos o termo “carta branca” do enunciado de Élodie. Não me ponho a distinguir, e depois a escolher um valor exato da palavra em um dado contexto. Receita, permissão concedida, cartografia virgem onde tudo pode se inscrever são três “interpretações” não exaustivas, definindo, juntas, uma territorialidade particular. O uso polissêmico da língua e de metáforas autoriza não apenas o acolhimento de sucessivas versões de expressão, mas sua reapropriação simultânea.

Nos confins do delírio, do sonho e da obra de arte, um mesmo projeto ético–estético comanda as rupturas da ordem, procede por enriquecimentos e extensões de “saber”.

A própria linguagem de Élodie parece organizada. As redundâncias, as probabilidades específicas fazem com que ela recorte ao menos um “subconjunto” regrado; e isto, a partir de um máximo de “imprevisibilidade” (“o esperma de vela…”), ou seja, de informações e, portanto, de desordem. Entretanto, um território se instala nessa desordem e, aparentemente, a chave disto, o referencial, é o corpo. A construção involuntária do corpo é uma “obra”, com seus maquinismos proposicionais, suas transformações, seus retoques e metamorfoses.

A disposição de elementos, figuras e intensidades não tem como finalidade encontrar uma ordem ou uma hierarquia perdida, que presidiriam desde sempre – desde a infância alienada – as relações e distribuições entre eles. É uma cartografia de descobertas e explorações que se pretende provisória. Fornece as coordenadas temporárias dos percursos possíveis. Joyce fala de disentangle and re–embody.25 Primeiro, é preciso descobrir formas e traços no amorfo e no inapreensível, localizar os limites virtuais e mudos que o desenham no trabalho compartilhado do tratamento; e depois tentar, pedaço por pedaço, tomar posse de um espaço. O dismorfismo do mundo monstruoso e delirante é a condição mesma para uma entrada no mundo da forma.

O cuidado de uma “presença” se torna, então, prioritário em relação à busca de uma significação; prepara sua eventualidade formal e existencial.

Os marcos do prazer, da tensão, da crise e de sua resolução tem, portanto, um valor particular. A busca hermenêutica de um significante perdido é substituída por uma poética coletiva – mais “dual” na sessão, mais “institucional” no estabelecimento de cuidados. Essa criatividade não descobre a ordem de um desenvolvimento psíquico regular, nem a desordem de suas falhas, acidentes e interrupções. Provém de uma estratégia da “epifania” uma vez que não retorna a um estado de normas e equilíbrio anteriores, mas organiza uma matéria sensível e inteligível, uma nova visão de mundo, que o delírio chama como resultado seu.

Talvez o monstro seja o figurável do monólogo interior, da mais livre das associações ou do delírio. Entretanto, ele só pode existir, ficar vivo, opondo à desterritorialização intensa um esboço arbitrário de reterritorialização. Umberto Eco nota que os dezoito capítulos do Ulisses, cada um referido a uma parte do corpo humano, compõem em definitivo a imagem total de um corpo, que simboliza, no plano cósmico, o vasto universo joyceano. Na sessão, o trabalho analítico não se “refere” a esse corpo, mas o “enxerta” como modelo e modo de usar. No texto de Joyce, outras grades, procedimentos ou referências funcionam lado a lado com a imago corporal. No delírio de Élodie, outras “escolhas”, outras chaves são possíveis. O fato de que estas dependam do estilo de cada psicoterapeuta nos remete imediatamente à questão da transferência.

Canteiros de Obras

Um dos méritos da psicoterapia institucional foi ter ampliado os limites do canteiro de obras, os modos de expressão, os registros, os regimes de signos. E ter, concomitantemente, fornecido ao trabalho do cartógrafo, componentes, objetos, interesses heteróclitos.

O clube de La Borde estabeleceu parceria com uma cidadezinha da Costa do Marfim graças à passagem de um estagiário africano, aprendiz de cozinheiro. Foram organizados intercâmbios, uma viagem, contratos. Pacientes tidos como autistas acordam, delírio e deriva de continentes, chamado das diferenças e do longínquo, proximidade de sociedades precárias, ligadas aos elementos, à terra, às necessidades, talvez à alma das coisas, à magia das palavras.

Em La Chesnaie, alguns vagões ferroviários, montados sobre pilotis de cimento e tijolo, brotam das paisagens, magníficos e incongruentes. “Que”, “quando” e “como” são questões inúteis. Toda uma rede de fantasias, de loucuras e de cumplicidades funda a arquitetura.

Deligny trabalha diretamente sobre o terreno com linhas de errância [lignes d’erre], pontos de passagem e de encontro. Ele começa anotando no mapa os percursos “espontâneos” da criança autista, os hábitos, os circuitos. Depois marca o terreno com materiais, signos, cores, sons. Todos estes elementos são referenciáveis a passagens, a presenças, de outras crianças mais “socializadas”, de educadores, dele mesmo. Ele se ocupa dos elementos: a pedra, a madeira, a água que corre. Dispõe armadilhas vivas: uma ação iniciada que é preciso prosseguir, um trapo secando e que pode ser despregado; uma pedra plana sobre a qual se bate com seixos; uma frigideira. A criança às voltas com as matérias, as formas, as percepções do outro, se desloca por um canteiro habitado. O espaço anárquico se constrói; um “monstro” o ocupa, nele se desenvolve, escutando aquilo que vive, aqueles que falam, sua própria fala. Deligny traça, colore, apaga, retoma. Trabalha sobre a terra, representa sobre o papel: dupla inscrição.

Os mapas mais antigos desenhavam somente os contornos das terras; ou o limite dos mares, os portulanos. Agora, as inovações técnicas e o fracionamento dos saberes permitem colocar no mapa muitos outros parâmetros além das fronteiras nacionais, o traçado dos litorais e dos rios. O interesse recairá, alternadamente, no subsolo, no relevo, nas produções, na demografia, na incidência de uma doença, na densidade das práticas religiosas; ou nas escolhas políticas, nas instituições sociais, nos tipos de consumo alimentar; ou então na frequentação dos cinemas, na frequência da interrupção voluntária da gravidez, na fauna, na flora. De tudo isso será até possível dar uma representação móvel fazendo diagramas das mudanças, evoluções e sucessivos estados, traçando as tendências e os vetores. Uma recomposição espaço–temporal do conjunto desses dados supõe um holograma móvel e monstruoso em que o geógrafo, em busca de pontos de referência, traça a estratégia, os projetos, os avanços dos poderes.

Do mapa ao terreno, o trabalho do geógrafo se alterna. Não há progresso no espaço físico da investigação que não deva seu ritmo à precisão do modo de representação. Américo Vespúcio descobriu a América bem antes de Cristóvão Colombo ter posto os pés em La Española. As projeções e os projetos antecedem a aventura, dão–lhe sua consistência diagramática. Os mapas são instrumentos ambíguos, estabelecidos e impostos. Como bem mostram os pesquisadores da revista Hérodote, o processo cartográfico contém, desde o princípio, o empreendimento de poder que o demanda. Longe de ser um instrumento neutro, um modo de figuração inocente, é um suporte logístico, uma arma sofisticada, cujas medidas, signos, códigos, escalas e pontos de vista quase sempre preparam uma conquista, um assalto, uma guerra, uma ocupação.

O esfacelamento ou a dissociação do corpo na psicose propõe aos terapeutas e aos pacientes uma ação de reconquista, uma aliança necessária e duradoura. Tratar–se–á de um corpo a recuperar, sobre os corpos e os incorporais do monstro. Em seguida, de uma história. Mas isso é outra história…

__________________________________________________

NOTAS

* O título original do texto é A Íntima Utopia: Trabalho analítico e processos psicóticos. Foi extraído do livro L´intime utopie: travail analytique et processus psychotiques, publicado na França, em 1991. Os autores, próximos a Guattari, trabalharam por anos na clínica de La Borde. Dessa cumplicidade clínica, institucional e teórica nasceu o presente trabalho, incompreensivelmente ainda inédito no Brasil. Traduzido de maneira caseira por iniciativa do psicanalista Mauricio Porto, há anos, o texto foi aqui cuidadosamente revisado e aprimorado pela psicanalista e tradutora Cláudia Berliner.

[1] Clínica de Bleuler, na Suíça, no início dos anos vinte.

[2] cf. Federn, P. Psychanalyse des psychoses. In: ____. La psychologie du moi et les psychoses. Paris: PUF, 1979.

[3] Se tal termo pode nos parecer chocante, basta pensar no que foi, por exemplo, a psiquiatria oficial na URSS após a Segunda Guerra Mundial; ou, atualmente, a larga prática de lobotomias nos Estados Unidos

[4] Kernberg deu uma recente ilustração disso ao mostrar a dificuldade de isolar o domínio dos borderlines (ou dos “distúrbios graves da personalidade”), levando–se em conta a fragilidade e a heterogeneidade dos critérios diferenciais. cf. Kernberg, O. F. Transtornos graves de personalidade: estratégias terapêuticas. Trad. Rita de Cássia Sobreira Lopes. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.

[5] Não se deixará de ver nisso, mesmo naqueles que não se referem explicitamente a seus trabalhos, a influência de Szondi e de sua análise das pulsões

[6] Schreber, D.–P. Memórias de um doente dos nervos. Tradução e notas de M. Carone. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

[7] Para John Rosen, o dispositivo “transferencial” está dado de antemão. O médico, substituto de uma mãe excessivamente narcísica, deve fazer de conta que concorda com as convicções delirantes do doente para, ao mesmo tempo, através de vários estratagemas, levá–lo a reconhecer–se como “louco”. Rosen, J. L’analyse directe”. Paris: PUF, 1960.

Para Sechehaye, o papel das falhas semânticas é essencial. A ação proposta é menos compensatória e as reparações – a “Realização” – são, sobretudo, simbólicas. cf. Sechehaye, M.–A. Memórias de uma esquizofrênica. Tradução e prefácio de Carlos Lacerda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1950 (Introduction à une psychothérapie des schizophrènes. Paris: PUF, 1954.)

[8] Em 1940, em Saint–Alban, Lozère, François Tosquelles lançou concretamente as bases de uma terapêutica psicanalítica das psicoses no hospital psiquiátrico.

[9] Nesse domínio, consultar principalmente Tatossian, A. Phénoménologie des psychoses. Paris: Masson, 1979. Intervenção na 77ª sessão do Congresso de Psiquiatria e Neurologia em Língua francesa, junho de 1979.

[10] Freud, S. Constructions en analyse (1937). [Constructions in Analysis. In: Strachey, J. (ed). The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, v. XXIII (1937–1939). London: Hogarth Press, 1963.] Traduzido do inglês e cotejado com o texto alemão por A. de Guinzbourg. As passagens foram sublinhadas por nós.

[11] Sarah Kofman assinala, com precisão literal, a ética desse gênero de intervenção: “Seu valor reside em sua eficácia: provoca efeitos inconscientes que se traduzem pelo afluxo de novos sonhos, de novas associações etc.–. Kofman, S. Un métier impossible. Paris: Galilée, 1983.

[12] Viderman, S. A construção do espaço analítico. Trad. Sérgio Joaquim de Almeida. São Paulo: Escuta, 1990.

[13] Guattari, F. Cartographies schizoanalytiques. Paris: Galilée, 1989.

[14] Já falamos de Élodie em La Borde ou le droit à la folie (D. Sabourin e J.–C. Polack). Sua psicose, quase imutável após uma dezena de anos, se estabilizou, não sem dificuldade, na cotidianidade protegida de um “Centro de Adaptação para o trabalho— em um “setor — psiquiátrico da periferia parisiense. O registro da sessão, com o consentimento de Élodie, data de 1984. Faz três anos que ela não vem me ver. Fui visitá–la uma vez em seu local de trabalho.

** A tradução literal da expressão francesa Où est–ce qu’il serait passé? seria: por onde é que ele passa? [N do R]

***Vide nota anterior. [N do R]

[15] Efetivamente, prescrevo–lhe um contraceptivo oral.

[16] Meus olhos são castanhos.

**** Moisi significa mofado, tanto no sentido literal quanto figurado, de ficar largado, esquecido ou de permanecer por muito tempo num mesmo lugar. A palavra em francês também contém o pronome “moi” = eu ou mim. A pronúncia de Moïse (Moisés) em francês é bem próxima de moisi. [N do R]

***** Pâmoiser, neologismo já incorporado à língua francesa, usado no sentido tanto de pasmar, extasiar– se, desfalecer quanto de excitar–se, gozar. Chama a atenção nessa palavra a mesma presença do pronome “moi” e até de moisi. Pâmoiser também pode ser escutado como pas + moi + ser, que poderia ser traduzido por “nãoeuzar”. [N do R]

[17] Num trabalho recente, Nicolaïdis tentou pôr ordem nas relações existentes entre noções cruciais como “processo primário –, representação “primária” e “secundária”, representação–“palavra” ou representação– “coisa”, “representante representativo”. cf. Nicolaïdis, N. A Representação – Ensaio psicanalítico. Tradução Claudia Berliner. São Paulo: Escuta, 1989

[18] A “imagem do corpo – , de Dolto, em oposição ao esquema corporal, é uma “memória” de traços relacionais e libidinais, um registro das relações de desejo com o outro, os outros e os objetos. É um corpo vivo, o traço estruturante da história emocional de um ser humano, destilado de um processo intuitivo de fantasias, relações afetivas e eróticas pré–genitais. Dolto afirma que as fantasias, aqui, significam: “memorização afetiva, auditiva, gustativa, visual, tátil, barestésica e cinestésica de percepções sutis, fracas ou intensas, sentidas como linguagem de desejo do sujeito em relação a um outro…”. Dolto, F. A imagem inconsciente do corpo. Tradução de Noemi Moritz Kon e Marise Levy. São Paulo: Perspectiva, 2002.

[19] Daí sua abordagem puramente “formal” dos desenhos, representações e modelagens que servem de matéria–prima para o trabalho do tratamento: “Considero o corpo como modelo de uma estrutura espacial, estrutura que me interessa sobretudo em seu aspecto dialético”. Pankow, G. L’être–là du schizophrène. Paris: Aubier, 1981.

[20] Gregory Bateson assinala: “Os balineses são muito dependentes da orientação no espaço. Para executar um comportamento qualquer, precisam primeiro situar os pontos cardeais; quando um balinês viaja de carro através de estradas sinuosas e perde seus pontos de referência, pode ficar seriamente desorientado e incapaz de agir; um dançarino, por exemplo, não conseguirá mais dançar; para se recuperar, precisará reencontrar algum ponto de referência importante, como, por exemplo, a montanha central da ilha, em relação ao qual possa restituir os pontos cardeais”. Bateson, G. Steps to an ecology of mind. Chicago: University of Chicago Press, 2000.

[21] Glowczewski, B. Les Warlpiri du désert central australien. Chimères, n. 1, 1987.

[22] Mac Laren, cineasta de desenhos animados canadense, já pressentira essa intuição boschiana de um objeto sádico com sua “Cadeira”, menos exigente que a de Leon, mas mais caprichosa. Um homem tentava sentar em uma cadeira que se esquivava sem parar, recuava, balançava e tombava, numa recusa absolutamente sistemática. Até que o homem acabava compreendendo: agachado, mas ereto, oferecia seus joelhos e seu peito para a cadeira; prelúdio de um amor feliz e recíproco.

[23] Mais geóloga que geógrafa, Pankov tem outras metáforas para sua descrição de terreno e para suas intervenções: “… o universo da psicose aparece como um universo esfacelado onde cada parcela está mais ou menos distante das outras. As distâncias podem se modificar pelo surgimento de uma lacuna imprevista. Por quê? Não sei. Apenas constato. Podemos ganhar terreno, podemos preencher buracos…”, “… o que importa é o seguinte: às vezes, em ‘entulhos de um terreno’, percebemos um ‘estrato geológico’ parecido com outro observado em outros entulhos. Então, tento ‘aproximar’, tento reunir estratos idênticos em terrenos diferentes. Chamo de estruturação dinâmica esse processo que consiste em reconstituir a unidade aparentemente perdida de esferas psíquicas esparsas (…). O primeiro terreno que é preciso estruturar – ainda que parcialmente – é o conjunto das camadas psíquicas a partir das quais o reconhecimento da imagem do corpo se torna possível”. Gisela Pankow, op. cit.

[24] Aqui, emprestamos bastante de Umberto Eco e sua leitura de Finnegan’s Wake. cf. Eco, U. Obra Aberta. Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 1991.

[25] Algo como “desemaranhar e re–encarnar”.

_______________

AUTORES

* Jean–Claude Polack é psiquiatra e psicanalista em Paris. Trabalhou por anos na clínica de La Borde, ao lado de Jean Oury e de Félix Guattari. Participou da fundação da revista Chimères, da qual é editor. Escreveu, entre outros livros, Épreuves de la folie, L´obscur objet du cinéma, e com Danielle Sivadon realizou um documentário sobre François Tosquelles.

* Danielle Sivadon é psiquiatra e psicanalista. Trabalhou junto a Jean Oury e Félix Guattari na clínica de La Borde. Ajudou a fundar e animou, por vários, anos a revista Chimères, da qual foi editora. Escreveu com Jean–Claude Polack La Borde ou le droit à la folie e também com ele realizou um documentário sobre François Tosquelles, L´intime utopie.

____________________________

FONTE

A Íntima Utopia: Trabalho analítico e processos psicóticos. n. 13 (2011). Cadernos de Subjetividade.

____________

LIVRO

Em 2013 foi publicado pela editora N-1 o livro intitulado “A íntima utopia (Clique aqui e saiba mais no site da editora) de Jean-Claude Polack e Danielle Sivadon.  (…) “uma obra destinada a todos aqueles que não querem renunciar ao acompanhamento da loucura, “esse fragmento de espelho que cada um carrega com grande esforço para que lhe sejam menos estranhas suas próprias rupturas”. A partir do relato de oito experiências clínicas singulares, os psiquiatras e psicanalistas Jean-Claude Polack e Danielle Sivadon, em parte inspirados por Guattari e a esquizoanálise, procuram estimular novas abordagens sobre o tema, estabelecendo conexões entre a clínica, a literatura, as artes plásticas e a música. Trata-se de uma obra instigante, escrita de maneira acessível, que discute o trabalho clínico ao mesmo tempo em que mostra a dimensão humana da psicose.”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima