O ser humano contemporâneo é fundamentalmente desterritorializado. Com isso quero dizer que seus territórios etológicos originários – corpo, clã, aldeia, culto, corporação – não estão mais dispostos em um ponto preciso da terra, mas se incrustam, no essencial, em universos incorporais. A subjetividade entrou no reino de um nomadismo generalizado. Os jovens que perambulam no boulevards, com um walkman colado no ouvido, estão ligados a ritornelos que foram produzidos longe, muito longe de suas terras natais. Aliais, o que poderia significar “suas terras natais”? Certamente não o lugar onde repousam seus ancestrais,, onde eles nasceram e onde terão que morrer! Não têm mais ancestrais; surgiram sem saber por que e desaparecerão do mesmo modo! Possuem alguns números informatizados que a eles se fixam e que os mantêm em “prisão-domiciliar” numa trajetória sócio-profissional predeterminada, quer seja em uma posição de explorado, de assistido pelo Estado ou de privilegiado.
Mas enfatizemos imediatamente o paradoxo. Tudo circula: as músicas, os slogans publicitários, os turistas, os chips da informática, as filiais industriais e, ao mesmo tempo, tudo parece petrificar-se, permanecer no lugar, tanto as diferenças se esbatem entre as coisas, entre os homens e os estados de coisas. No seio de espaços padronizados tudo se tornou intercambiável, equivalente. Os turistas, por exemplo, fazem viagens quase imóveis, sendo depositados nos mesmos tipos de cabine de avião, de pullman, de quartos de hotel e vendo desfilar diante de seus olhos paisagens que se encontraram cem vezes em suas telas de televisão, ou em prospectos turísticos. Assim a subjetividade se encontra ameaçada de paralisia. Poderiam os homens restabelecer relações com suas terras natais? Evidentemente isso é impossível! As terras natais estão definitivamente perdidas. Mas o que podem esperar é reconstruir uma relação particular com o cosmo e com a vida, é se “recompor” em sua singularidade individual e coletiva. A vida de cada um é única. O nascimento, a morte, o desejo, o amor, a relação com o tempo, com os elementos, com as formas vivas e com as formas inanimadas são, para um olhar depurado, novos, inesperados, miraculosos.
Essa subjetividade em estado nascente – o que o psicanalista americano Daniel Stern denomina ö si mesmo emergente”-, cabe a nós reengendrá-la constantemente. Não se trata mais aqui de uma “Jerusalém celeste”, como a do Apocalipse, mas da restauração de uma “Cidade subjetiva” que engaja tanto os níveis mais singulares da pessoa quanto os níveis coletivos. De fato, trata-se de todo o porvir do planeta e da biosfera. Re-singularizar as finalidades da atividade humana, fazê-la reconquistar o nomadismo existencial tão intenso quanto o dos índios da América pré-colombiana! Destacar-se então de um falso nomadismo que na realidade nos deixa no mesmo lugar, no vazio de uma modernidade exangue, para aceder às verdadeiras errâncias do desejo, às quais as desterritorializações técnico-científicas, urbanas, maquínicas de todas as formas, nos incitam.
Como infletir o destino coletivo em um sentido menos serial, para retomar um termo caro a Jean-Paul Sartre? Tudo dependerá da re-finalização coletiva das atividades humanas e, sem dúvida, em primeiro lugar, de seus espaços construídos. Mas o que serão as mentalidades urbanas do futuro? Levantar essa questão já é um pleonasmo, na medida em que o porvir da humanidade parece inseparável do devir urbano.
Os prospectivistas predizem-nos, com efeito, que nos decênios futuros cerca de 80% da população mundial viverão em aglomerados urbanos. E, devido a isso convém acrescentar que os 20% restantes da população mundial, mesmo que “escapem” do habitat da cidade, dela serão entretanto tributários, através de vários liames técnicos e de civilização. Em outros termos, é a distinção mesma entre a cidade e a natureza que tenderá a se esmaecer, dependendo os territórios “naturais” subsistentes, em grande parte, de programação com o fim de organizar espaço de lazer, de esporte, de turismo, de reserva ecológica…
Essa mundialização da divisão das forças produtivas e dos poderes capitalísticos não é absolutamente sinônimo de uma homogeneização do mercado, muito pelo contrário. Suas diferenças desiguais não se localizam mais entre um centro e uma periferia, mas entre malhas urbanas superequipadas tecnologicamente, e sobretudo informaticamente, e imensas zonas de habitat de classes médias e de habitat subdesenvolvido. É muito característico, por exemplo em Nova Iorque, ver um dos grandes centros da finança internacional, no ponto extremo de Manhanttan, coexistir com verdadeiras zonas de subdesenvolvimento, no Harlem e no South Bronx, sem falar das ruas e dos parques públicos invadidos por mais de 300 mil homeles e cerca de um milhão de pessoas amontoadas em lugares superpovoados.
Doravante não existe mais, com efeito, uma capital que domine a economia mundial, mas um “arquipélago de cidades” ou mesmo, mais exatamente, subconjuntos de grandes cidades, ligados por meios telemáticos e por uma grande diversidade de meios de comunicação. Pode-se dizer que a cidade-mundo do capitalismo contemporâneo se desteritorializou, que seus diversos constituintes se espargiram sobre toda a superfície de um rizoma multipolar urbana que envolve o planeta. Homoteticamente encontrar-se-ão nas cidades muito pobres do Terceiro Mundo, onde se amontoam milhões de pessoas em imensas favelas, focos urbanos altamente desenvolvidos, espécies de campos fortificados das formações dominantes de poder, ligados por mil laços ao que se poderia denominar as intelligenstia capitalista internacional.
As cidades são imensas máquinas – megamáquinas, para retomar uma expressão de Lewis Munford – produtoras de subjetividade individual e coletiva. O que conta, com as cidades de hoje, é menos os seus aspectos de infraestrutura, de comunicação e de serviço do que o fato de engendrarem, por meio de equipamentos materiais e imateriais, a existência humana sob todos os aspectos em que se queira considera-las. Daí a imensa importância de uma colaboração, de uma transdiciplinaridade entre os urbanistas, os arquitetos e todas as outras disciplinas das ciências sociais, das ciências humanas, das ciências ecológicas etc…
O drama urbanístico que se esboça no horizonte deste fim de milênio é apenas um aspecto de uma crise muito mais fundamental que envolve o próprio futuro da espécie humana neste planeta. Sem uma reorientação radical dos meios e sobretudo das finalidades da produção, mais geralmente, com toda forma de vida animal e vegetal. Essa reorientação implica, com urgência, uma inflexão da industrialização, particularmente a química e a energética, uma limitação da circulação de automóveis ou a invenção de meios de transportes não-poluentes, o fim dos grandes desflorestamentos… Na verdade, é todo um espírito de competição econômica entre as empresas e as nações que deverá ser novamente posto em questão. Existe aí um tipo de corrida de velocidade entre a consciência coletiva humana, o instinto de sobrevivência da humanidade e um horizonte de catástrofe e de fim do mundo humano dentro de alguns decênios! Perspectiva que torna nossa época ao mesmo tempo aterrorizada e apaixonante, já que os fatores ético-políticos adquirem aí uma relevância que, ao longo da história, anteriormente jamais tiveram.
Não seria exagero enfatizar que a tomada de consciência ecológica futura não deverá se contentar com a preocupação com fatores ambientais, mas deverá também ter como objetivo devastações ecológicas no campo social e no domínio mental. Sem transformação das mentalidades e dos hábitos coletivos haverá apenas medidas ilusórias relativas ao meio material.
Desta forma, os urbanistas não poderão mais se contentar em definir a cidade em termos de espacialidade. Esse fenômeno urbano mudou de natureza. Não é mais um problema dentre outros; é o problema número um, o problema-cruzamento das questões econômicas, sociais e culturais. A cidade produz o destino da humanidade: suas promoções, assim como suas segregações a formação de suas elites, o futura da inovação social, da criação em todos os domínios. Constata-se muito frequentemente um desconhecimento desse aspecto global das problemáticas da subjetividade.
Enfatizemos, a esse respeito, que experiências interessantes estão atualmente em curso na URSS, no contexto de uma situação que foi por muito tempo bloqueada pelas burocracias e no quadro da política chama “perestroika”. Grupos de autogestão se constituem com o objetivo de se contrapor ao imobilismo dos Soviets locais, muito particularmente no domínio da arquitetura, do urbanismo e da defesa do meio ambiente. Essas experiências são coordenadas por um Centro de pesquisas regionais criado pela Academia da Ciências, sob a direção de Victor Tischenko. A atividade desses grupos conduziu à instalação de coorporativas que construíram em Moscou, em Leningrado e em outras cidades, apartamentos em melhores condições do que as das construções do Estado. Em 1987, a pedido do deputado Boris Ieltsin, ocorreu um grande encontro sobre o tema do devir social da cidade de Moscou; dele participaram 150 pessoas de todos os níveis da hierarquia social, para definir uma nova metodologia em matéria de urbanismo. O objetivo de tais “jogos de papéis” é igualmente fazer compreender, ao conjunto dos participantes, que o poder pode ser uma articulação de múltiplos parceiros procedendo por aliança e negociação e não de uma relação de dominação entre instâncias hierárquicas das quais ninguém pode escapar. Assim, é toda uma cultura política que está sendo reconstruída. Ainda que as democracias ocidentais e a América do Sul se encontrem em situações diferentes da URSS, penso que, sob outras formas, segundo outras modalidades, é igualmente necessário inventar uma democracia nesses domínios; que usuários tomem a palavra, muito especialmente no que concerne aos programas de urbanismo e às questões ecológicas.
Na verdade, os meios de mudar a vida e de criar um novo estilo de atividade, de novos valores sociais, estão ao alcance das mãos. Falta apenas o desejo e a vontade política de assumir tais transformações. É verdadeiramente indispensável que u trabalho coletivo de ecologia social e de ecologia mental seja realizado em grande escala. Essa tarefa concerne `s modalidades de utilização do tempo liberado pelo maquinismo moderno, novas formas de conceber as relações com a infância, com a condição feminina, com as pessoas idosas, as relações transculturais… A condição para tais mudanças reside na tomada de consciência de que é possível e necessário o estado de coisas atual e de que isso é de grande urgência. É apenas em um clima de liberdade e de emulação que poderão ser experimentadas as vias novas do habitat e não através de leis e de circulares tecnocráticas. Correlativamente, uma tal remodelação da vida urbana implica que transformações profundas sejam operadas na divisão planetária do trabalho e que, em particular, vários países do Terceiro Mundo não sejam mais tratados como guetos assistidos pelo Estado. É igualmente necessário que os antigos antagonismos internacionais se atenuem e que se siga uma politica geral de desarmamento que permitirá, em particular, transferir créditos consideráveis para a experimentação de um novo urbanismo.
Deveremos esperar transformações políticas globais antes de empreender tais “revoluções moleculares” que devem contribuir para mudar as mentalidades? Encontramo-nos aqui diante de um círculo de dupla direção: de um ado a sociedade, a política, a economia não podem mudar sem uma mutação das mentalidades; mas, de um outro lado, as mentalidades só podem verdadeiramente evoluir se a sociedade global seguir um movimento de transformação. A experimentação social em grande escala que preconizamos constituirá um dos meios de sair dessa “contradição”. Apenas uma experiência bem-sucedida de novo habitat individual e coletivo traria consequências imensas para estimular uma vontade geral de mudança. (Foi o que se viu, por exemplo, na França, no campo da pedagogia com a experiência inicia e “iniciática” de Celestin Freinet, que reinventou totalmente o espaço de sala de aula). Em essência, o objeto urbano é de uma complexidade muito grande exige ser abordado com as metodologias apropriadas à complexidade. A experimentação social visa espécies particulares de “atratores estranhos”, comparáveis aos da física dos processos caóticos. Uma ordem objetiva “mutante” pode nascer do caos atual de nossas cidades e também uma nova poesia, uma nova arte de viver. Essa “logica do caos” pede que se examinem bem as situações e sua singularidade. Trata-se de entrar em processos de re-singularização e de irreversibilização do tempo. Além disso, trata-se de construir não apenas no real mas também no possível, em função das bifurcações que ele pode incitar; construir dando chances às mutações virtuais que levarão as gerações futuras a viver, sentir e pensar diferentemente de hoje em dia, tendo em vista as imensas modificações, em particular de ordem tecnológica, que nossa época conhece. O ideal seria modificar a programação dos espaços construídos, em razão das transformações institucionais e funcionais que o futuro lhes reserva. A invenção de novos matérias deveria permitir uma tal multiplicação das dimensões do design.
O objetivo modernista era o de um habitat padrão, estabelecido a partir de supostas “necessidades fundamentais” determinadas de uma vez por todas. Penso aqui no dogma que constituiu o que se chamou a “Carta de Atenas” em 1933, representando a síntese do trabalhos do CIAM (Congresso Internacional de Arquitetura Moderna), da qual Le Corbusier nos daria uma visão comentada, dez anos mais tarde, e que foi o credo teórico de várias gerações de urbanistas. Essa perspectiva de modernismo universalista terminou. É apaixonante ver hoje em dia quantos jovens arquitetos se lançam, não na via decadente do “pós-modernismo”, mas na que denominaria a via de re-singularização. Um certo retorno da perspectiva estética, indo de encontro à funcionalidade, parece certamente salutar.
Os coeficientes de liberdade criadora que o projeto possui são chamados a representar um papel essencial nos trabalhos do arquiteto e do urbanista. Mas não se trata, sob pretexto de estética, de naufragar num ecletismo que renunciaria a toda visão social! É o socius, em toda sua complexidade, que exige ser re-singularizado, re-trabalhado, re-experimentado.
O artista polissêmico, polifônico, que o arquiteto e o urbanista devem se tornar, trabalha com uma matéria humana que não é universal, com projetos individuais e coletivos que evoluem cada vez mais rápido e cuja singularidade – inclusive estética – seve ser atualizada através de uma verdadeira maiêutica, implicando, em particular, procedimentos de análise institucional e de exploração das formações coletivas do inconsciente. Nessas condições, o projeto deve ser considerado em seu movimento, em sua dialética. Ele é chamado a se tornar uma cartografia multidimensional da produção subjetiva, cujos operadores serão o arquiteto e o urbanista. As mentalidades coletivas mudam e mudarão amanhã cada vez mais rápido. É preciso que a qualidade da produção dessa subjetividade se torne a finalidade primeira das atividades humanas e, por essa razão, ela exige que tecnologias apropriadas sejam postas a seu serviço. Um tal recentramento não é apenas tarefa de especialistas mas requer uma mobilização de todos os componentes da “cidade subjetiva”.
O nomadismo selvagem da desterritorialização contemporânea demanda então, a meu ver, uma apreensão “transversalista”da subjetividade. Quero dizer com isso uma apreensão que se esforçará para articular pontos de singularidade (por exemplo, uma configuração particular do território ou do meio ambiente), dimensões existenciais específicas (por exemplo, o espaço visto pelas crianças ou deficientes físicos ou doentes mentais), transformações funcionais virtuais (por exemplo, mudança de programa e inovações pedagógicas), afirmando ao mesmo tempo um estilo, uma inspiração que fará reconhecer, à primeira vista, a assinatura de um criador. A complexidade arquitetural e urbanística encontrará sua expressão dialética em uma tecnologia do projeto – doravante auxiliada por computador – que não se fechará sobre si mesma, mas que se articulará com o conjunto do Agenciamento de enunciação que é o alvo.
A construção e a cidade constituem tipos de objeto que, de fato, trazem igualmente uma função subjetiva. São “objetividades” ou, se se prefere, “subjetividades” parciais. Essas funções de subjetivação parcial, que nos presentifica o espaço urbano, não poderiam ser abandonadas ao sabor do mercado imobiliário, das programações tecnocráticas e ao gosto médio dos consumidores. Todos esses fatores devem ser levados em consideração, mas devem permanecer relativos. Exigem, através das intervenções do arquiteto e do urbanista, ser elaborados e interpretados”- no sentido em que um maestro faz viver de forma constantemente inovadora os phylum musicais.
Tais pontos de ruptura, tais focos de singularização, não podem ser assumidos através de simples procedimentos consensuais e democráticos. Trata-se, em suma, de uma transferência de singularidade do artista criador de espaço para a subjetividade coletiva. Assim o arquiteto e o urbanista se encontram imprensados, de um lado, entre o nomadismo caótico da urbanização descontrolada ou unicamente regulada por instâncias tecnocráticas e, por outro lado, entre seu próprio nomadismo mental se manifestando através de sua projetualidade diagramática.
Essa interação entre a criatividade individual e as múltiplas coações materiais e sociais conhece, entretanto, uma sanção de veracidade: existe, de fato, uma transposição de limiar a partir da qual o objeto arquitetural e o objeto urbanístico adquire sua própria consistência de enunciador subjetivo. Isso funciona ou isso não funciona; isso ganha vida ou permanece morto! A complexidade da posição do arquiteto e do urbanista é extrema mais apaixonante, desde que eles levem em conta suas responsabilidades éticas, estéticas e politicas. Imersos no seio do consenso da Cidade democrática, cabe-lhes pilotar, por seu projeto (dessin) e sua intenção (dessein), decisivas bifurcações do destino da cidade subjetiva. Ou a humanidade, através deles, reinventará seu devir urbano, ou será condenada a perecer sob o peso de seu próprio imobilismo, que ameaça atualmente torna-la impotente face aos extraordinários desafios com os quais a história a confronta.
*Escritura originalmente publicada em: GUATTARI, Félix. Caosmose: Um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 1992. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão.