Vittorio Marchetti: O Anti-Édipo tem como subtítulo Capitalismo e esquizofrenia. Qual é a razão disso? Vocês partiram de quais ideias fundamentais?
Gilles Deleuze: A ideia fundamental talvez seja a seguinte: o inconsciente “produz”. Dizer que ele produz significa que é preciso parar de tratá-lo, como se fez até então, como uma espécie de teatro onde se representaria um drama privilegiado, o drama de Édipo. Nós pensamos que o inconsciente não é um teatro, mas antes uma usina. Artaud disse algo belíssimo sobre isso. Ele disse que o corpo, e acima de tudo o corpo doente, é como uma usina superaquecida. Não um teatro, portanto. Dizer que o inconsciente “produz”, significa dizer que ele é uma espécie de mecanismo que produz outros mecanismos. Para nós, isso quer dizer que o inconsciente nada tem que ver com uma representação teatral, mas com algo que poderíamos chamar de “máquinas desejantes”. É preciso que nos entendamos sobre o termo “mecanismo”. Como teoria biológica, o mecanicismo nunca soube compreender o desejo. Ele o ignora, fundamentalmente, porque não consegue integrá-lo em seus modelos. Quando falamos de máquinas desejantes, do inconsciente como um mecanismo de desejo, queremos dizer algo bem diferente. Desejar consiste no seguinte: fazer cortes, deixar correr alguns fluxos, antecipá-los, cortar as cadeias nas quais eles se enlaçam. Todo esse sistema do inconsciente ou do desejo que corre, que corta, que deixa correr, esse sistema absolutamente literal do inconsciente, ao contrário do que pensa a psicanálise tradicional, esse sistema nada significa. Não há aí nenhum sentido, nenhuma interpretação a ser dada, isso não quer dizer nada. O problema é saber como funciona o inconsciente. É um problema de uso das máquinas, de funcionamento das “máquinas desejantes”.
Guattari e eu partimos da ideia de que o desejo só poderia ser compreendido a partir da categoria de “produção”. Isto é, era preciso introduzir a produção no próprio desejo. O desejo não depende de uma falta, desejar não é ter falta de alguma coisa, o desejo não remete à Lei alguma, ele produz. É, portanto, o contrário de um teatro. Uma ideia como a de Édipo, da representação teatral de Édipo, desfigura o inconsciente, nada exprime do desejo. Édipo é o efeito da repressão social sobre a produção desejante. Mesmo no nível da criança, o desejo não é edipiano, ele funciona como um mecanismo, produz pequenas máquinas, estabelece ligações entre as coisas. Tudo isso, em outros termos, significa talvez que o desejo seja revolucionário. O que não significa que ele queira a revolução. Melhor que isso, ele é revolucionário por natureza porque constrói máquinas que, inserindo-se no campo social, são capazes de fazer saltar algo, de deslocar o tecido social. A psicanálise tradicional, ao contrário, transformou tudo numa espécie de teatro. Exatamente como traduziríamos numa representação tipo Comédia Francesa algo que pertence ao homem, à usina, à produção. O ponto de partida de nosso trabalho, por outro lado, foi o inconsciente como produtor de pequenas máquinas de desejo, máquinas desejantes.
Marchetti: Por que então Capitalismo e esquizofrenia?
Félix Guattari: Para sublinhar os extremos. Tudo na existência humana é reconduzido às categorias as mais abstratas. O capital e, na outra extremidade, ou antes, no outro pólo de não senso, a loucura, e, na loucura, precisamente a esquizofrenia. Pareceu-nos que esses dois pólos na sua tangente comum de não senso possuíam uma relação. Não apenas uma relação contingente em função da qual é possível afirmar que a sociedade moderna torna as pessoas loucas. Mas muito mais do que isso: que, para dar conta da alienação, da repressão que o indivíduo sofre quando é envolvido no sistema capitalista, mas também para entender a verdadeira significação da política de apropriação da mais valia, devemos convocar conceitos que são os mesmos que aqueles aos quais deveríamos recorrer para interpretar a esquizofrenia. Levamos em conta esses dois pólos extremos, mas é claro que todos os outros termos intermediários também devem ser examinados, quer se trate da maneira de combater as neuroses ou de estudar a infância ou as sociedades primitivas. Todos os temas tratados pelas ciências humanas estão evidentemente em questão. Mas em vez de estabelecer uma espécie de coexistência de todas as ciências humanas, uma em relação à outra, colocamos em relação o capitalismo e a esquizofrenia. Isso, para tentar abarcar o conjunto dos campos e não nos limitarmos a uma série de passagens de um campo a outro.
Marchetti: De quais experiências concretas suas pesquisas partiram e em quais domínios e de que modo vocês imaginam seu desenvolvimento prático?
Guattari: Inicialmente, da prática psiquiátrica, da psicanálise e, mais particularmente, do estudo da psicose. Nossa impressão é que os encadeamentos, as descrições, a teoria freudiana e a psiquiatria são relativamente inadequados para dar conta do que se passa verdadeiramente na doença mental. Pudemos constatá-lo desde que, recentemente, tornou-se possível ter um certo tipo de escuta da doença mental.
Mesmo Freud, pelo menos no início, desenvolveu seus conceitos num quadro de um certo gênero de acesso que ele teve às neuroses, e mais particularmente à histeria. O próprio Freud reclamava no fim de sua vida de não ter podido dispor de um outro campo, de não ter tido outra maneira de se aproximar da psicose. Ele só pôde abordar os psicóticos por mero acidente e do exterior. É preciso acrescentar que, no quadro dos sistemas repressivos de hospitalização, não se tem acesso à esquizofrenia. Tem-se acesso a loucos que se encontram no interior de um sistema tal que os impede de exprimir a própria essência da loucura. Eles só exprimem uma reação à repressão da qual são objeto e que são obrigados a sofrer. O resultado é que a psicanálise é praticamente impossível no caso das psicoses. E isso prosseguirá assim enquanto os psicóticos continuarem encerrados no sistema repressivo de um hospital. Ora, mais do que transpor os encadeamentos descritivos da neurose para aplicá-los à psicose, nós tentamos fazer o inverso. Tentamos reexaminar os conceitos de descrição da neurose à luz das indicações que recebíamos no contato com a psicose.
Deleuze: Nós partimos da impressão, e eu digo realmente impressão, e de um saber: que algo não ia bem na psicanálise, que isso se tornava uma história interminável que girava sobre si mesma. Tomemos, por exemplo, a cura psicanalítica. Pois bem, a cura se tornou um processo interminável onde tanto o paciente quanto o médico giravam num círculo que, no final das contas, quaisquer que fossem as modificações trazidas, restava ainda um círculo edipiano, como que dizendo “vamos, fale…”, como se se tratasse sempre, então, do pai e da mãe. A referência permanecia sempre sobre um eixo edipiano. Claro que dizem que não se trata de um pai e de uma mãe reais, que se trata talvez de uma estrutura superior, de uma ordem simbólica, que isso não deve ser tomado no nível do imaginário. Apesar de tudo, esse é ainda um discurso em que o paciente está lá para falar de pai e de mãe e o analista o escuta em termos de pai e de mãe. Esses eram os problemas que Freud se colocava de modo angustiante no final de sua vida: alguma coisa não vai bem na psicanálise, alguma coisa está bloqueada. Isso está em vias de se tornar, pensava Freud, uma história interminável, uma cura interminável, que não conduz a nada. E Lacan foi o primeiro a indicar a que ponto as coisas deveriam ser postas em questão. Ele pensou resolver o problema no sentido de um retorno muito profundo a Freud. Nós partimos, ao contrário, da impressão de que a psicanálise girava sobre ela mesma num círculo, por assim dizer familista, representado por Édipo. E aí se produziu algo de muito inquietante. Mesmo que a psicanálise tenha mudado seus métodos, ela acabou mesmo assim se reencontrando na linha da psiquiatria mais clássica. Michel Foucault mostrou isso de forma admirável. Foi no século XIX que a psiquiatria ligou de modo fundamental a loucura à família. A psicanálise reinterpretou esse liame, mas o que surpreende é que a ligação permanece. E mesmo a antipsiquiatria, que apresenta direções tão revolucionárias e novas, guarda essa referência loucura-família. Fala-se de psicoterapia familiar. Isso significa que se continua a procurar a referência fundamental do desarranjo mental em determinações familiares do tipo pai-mãe; e mesmo se essas determinações são interpretadas de modo simbólico, como função simbólica pai, função simbólica mãe, isso não muda muita coisa na discussão.
Ora, imagino que todos conhecem o texto admirável de um louco, como se diz, o presidente Schreber. As memórias do presidente Schreber, um paranoico ou um esquizofrênico, pouco importa, apresentam uma espécie de delírio racial, racista, histórico. Schreber delira os continentes, as culturas, as raças. Trata-se de um delírio surpreendente com um conteúdo político, histórico, cultural. Lemos o comentário de Freud e todo esse aspecto do delírio desaparece, ele é esmagado pela referência a um pai do qual Schreber nunca fala. Os psicanalistas nos dizem que, justamente porque ele nunca fala disso, é que isso é importante. Bem, nós respondemos que nunca vimos um delírio esquizofrênico que não seja acima de tudo racial, racista, político, que não se lance a todos os cantos da história, que não invista as culturas, que não fale de continentes, de reinos etc. Nós dizemos que o problema do delírio não é familiar, que ele só diz respeito ao pai e a mãe de uma forma muito secundária, e isso supondo que ele lhes diga mesmo respeito. O verdadeiro problema do delírio está nas transições extraordinárias entre um pólo, digamos reacionário ou mesmo fascista do tipo “eu sou de raça superior” – o que aparece em todos os delírios paranoicos – e um pólo revolucionário: Rimbaud, que afirma “eu sou de raça inferior de toda a eternidade”¹. Não há delírios que não invistam a História, mais do que investir uma espécie de papai-mamãe ridículos. E então, mesmo no nível da cura, da terapia – supondo que se tratasse de uma doença mental – se não levamos em conta [328] as referências históricas do delírio, se nos contentamos em girar em círculos entre um pai simbólico e um pai imaginário, praticamos apenas um familismo e permanecemos no quadro da psiquiatria a mais tradicional.
Marchetti: Será que os estudos de linguística podem servir a uma interpretação da linguagem esquizofrênica?
Guattari: A linguística é uma ciência em pleno desenvolvimento, que ainda está muito à procura de si mesma. Há talvez um uso abusivo, um pouco prematuro de conceitos que estão ainda em vias de formação. Há, mais particularmente, uma noção sobre a qual fomos conduzidos a refletir, que é aquela de significante. Parece-nos que esta noção suscita vários problemas às diferentes linguísticas. Aos psicanalistas ela talvez suscite menos, mas acreditamos, quanto a nós, que um certo amadurecimento é ainda necessário. Diante dos problemas da sociedade atual, é preciso se posicionar numa situação que coloque em questão a cultura tradicional partilhada, digamos, entre as ciências humanas, a ciência, o cientificismo – uma palavra que está na moda há alguns anos – e a responsabilidade política. Sobretudo após Maio de 68, uma revisão dessa separação é importante e necessária. Desse ponto de vista, até hoje nós nos contentamos com uma espécie de autonomismo, digamos, das diversas disciplinas. Os psicanalistas têm seus utensílios de cozinha, os políticos os seus e assim por diante. A necessidade de rever essa divisão não nasce de uma preocupação de ecletismo e não conduz necessariamente a um tipo de confusionismo. Do mesmo modo que não é por confusão que um esquizofrênico passa de um registro a outro. É a realidade com a qual ele se vê confrontado que o conduz a isso. O esquizofrênico segue, sem garantia epistemológica, digamos, essa realidade e é essa realidade que o leva a se deslocar de um plano a outro, de um questionamento da semântica e da sintaxe até a revisão de uma temática que diz respeito à história, às raças etc. Pois bem, num certo sentido, aqueles que se encontram no registro das ciências humanas e no domínio político deveriam, desse ponto de vista, se “esquizofrenizar”. E isso não para reencontrar a imagem ilusória que nos apresenta a esquizofrenia tomada na repressão, segundo a qual ele seria “autista”, dobrado sobre si mesmo, e assim por diante. Mas, ao contrário, para ter essa mesma capacidade de abraçar o conjunto dos domínios. Muito precisamente, após Maio de 68, a questão se coloca nos termos seguintes: ou buscaremos unificar a compreensão de fenômenos como, digamos, a burocratização nas organizações políticas, no quadro do capitalismo de Estado, com aquelas de fenômenos muito díspares e distantes como, por exemplo, a obsessão, as descrições que são dadas pelo automatismo de repetição; ou então, se nos atemos à ideia de que as coisas são separadas, de que cada um é um especialista e deve fazer avançar seus estudos permanecendo em seu canto, verificaremos no mundo explosões que escaparão completamente à compreensão tanto dos politicólogos quanto das descrições antropológicas. Nesse sentido, pôr em causa a divisão dos domínios e um pouco também a autossatisfação dos psicanalistas, linguistas, etnólogos, pedagogos não tem como objetivo a dissolução de suas ciências, mas se propõe aprofundá-las para que estejam à altura de seus objetos. Toda uma série de pesquisas conduzidas antes de Maio de 68 por pequenos grupos privilegiados foi posta em discussão e colocada na ordem do dia com a revolução institucional daquela primavera. Os psicanalistas são cada vez mais “interpolados”, eles devem cada vez mais ampliar seu domínio, da mesma forma que os psiquiatras. É um fenômeno inteiramente novo. O que isso significa? Trata-se de uma moda ou, como afirmam algumas correntes políticas, de uma maneira de desviar os militantes revolucionários de seus objetivos? Ou se trata antes de tudo de um apelo, ainda que confuso, a favor de uma revisão profunda da conceituação tal como ela é produzida hoje em dia?
Marchetti: A psiquiatria poderia desempenhar esse papel, por assim dizer, da nova ciência do homem, da ciência do homem por excelência?
Guattari: Mais do que a psiquiatria, por que não os esquizofrênicos, os próprios loucos? Não me parece, ao menos neste momento, que os que trabalham no domínio psiquiátrico se encontrem exatamente na vanguarda!
Deleuze: Por outro lado, não há nenhuma razão para que a psiquiatria, mais do que qualquer outra coisa, torne-se a ciência do homem [330] por excelência. A noção de “ciência do homem por excelência” não é boa. A ciência do homem por excelência poderia ser a bibliofilia, por que não, a ciência dos textos. O fato é que muitas ciências gostariam de desempenhar esse papel. O problema não é o de saber qual será a ciência do homem por excelência. O problema é saber de que maneira “máquinas” dotadas de uma possibilidade revolucionária vão se reagrupar. Por exemplo, a máquina literária, a máquina psicanalítica, as máquina políticas. Ou bem elas encontrarão um ponto de ligação, como já fizeram até agora num certo sistema de adaptação aos regimes capitalistas; ou então elas encontrarão uma unidade quebradiça numa utilização revolucionária. Não se deve colocar o problema em termos de primazia, mas em termos de uso, de utilização. Então, qual utilização? A psiquiatria recobriu até agora com seu familismo, com sua perspectiva familiar, uma certa utilização que nos parece forçosamente reacionária, por mais revolucionárias que sejam as pessoas que trabalham no domínio psiquiátrico.
Marchetti: Enquanto o pensamento filosófico ou científico procede avançando e opondo conceitos, o pensamento mítico procede graças a imagens tiradas do mundo sensível. São palavras de Lévi-Strauss. Em seu livro, Interpretação da Esquizofrenia, Arieti afirma que os doentes mentais recorrem a uma lógica inteligível, a um “sistema lógico coerente”, mesmo qu este nada tenha com a lógica fundada nos conceitos. Arieti fala de “paleológico” e diz que de fato esse “sistema lógico coerente” lembra o pensamento mítico, o pensamento das sociedades ditas primitivas, que ele procede como tal, por “associação de qualidades sensíveis”. Como explicar esse fenômeno? A esquizofrenia seria uma estratégia de defesa conduzida até a recusa de nosso sistema lógico? E se isso é verdade, a análise da linguagem esquizofrênica não ofereceria um instrumento de um valor incomparável para as ciências humanas, para o estudo de nossa sociedade?
Deleuze: Compreendo bem essa questão, ela é bem técnica. Gostaria de saber o que Guattari pensa sobre isso.
Guattari: Não gosto muito da palavra “paleológico” porque ela tem ressonância com “mentalidade pré-lógica” e outras definições desse gênero que representaram uma abertura rumo à segregação ao pé da letra, tanto da infância quanto das doenças mentais. Então, não sei de que forma deve-se entender uma “paleologia”.
Deleuze: Além disso, “lógica” não é de forma alguma um conceito que nos interesse. É um termo tão vago, tudo é lógica e nada o é. Mas no que diz respeito à questão, sobre o que eu chamaria seu aspecto técnico, eu me pergunto se na esquizofrenia, nos primitivos ou nas crianças trata-se realmente de uma lógica das qualidades sensíveis.
Em relação ao que estamos tentando encontrar, a questão não é essa. O que surpreende é que esquecemos que a lógica das qualidades sensíveis já é uma fórmula muito teórica. Negligenciamos algo que é o “puro vivido”. Trata-se, talvez, do vivido da criança, do primitivo, do esquizofrênico. Mas o vivido não quer dizer as qualidades sensíveis, mas o “intensivo”. Eu sinto que… “Eu sinto que” quer dizer que algo está em vias de se passar em mim, que vivo em intensidade, e a intensidade não é a mesma coisa que as qualidades sensíveis, ela é mesmo totalmente diferente. Com os esquizofrênicos isso acontece continuamente. Um esquizofrênico diz: “sinto que devenho mulher”, ou então, “sinto que devenho Deus”. As qualidades sensíveis não têm nada que ver aqui. Tenho a impressão que Arieti permanece efetivamente no nível de uma lógica das qualidades sensíveis, mas isso não corresponde de forma alguma ao que diz um esquizofrênico. Quando um esquizofrênico diz “sinto que devenho mulher”, “sinto que devenho Deus”, “sinto que devenho Joana D’Arc”, o que ele quer dizer realmente? A esquizofrenia é uma experiência involuntária e surpreendente, e extremamente aguda, de intensidade e passagens de intensidade. Quando um esquizofrênico diz “sinto que devenho mulher, sinto que devenho Deus”, é como se seu corpo transpusesse um limiar de intensidade. Os biólogos falam do ovo e o corpo esquizofrênico é uma espécie de ovo; há esse corpo catatônico que não é mais do que um ovo. Então, quando o esquizofrênico diz “devenho Deus, devenho uma mulher”, é como se ele transpusesse o que os biólogos chamam de gradiente, ele atravessa um limiar de intensidade, ele ainda passa por aí, eleva-se acima, além etc. É de tudo isso que a análise tradicional não dá conta. E é por isso que as pesquisas experimentais farmacológicas, relativas à esquizofrenia – tão mal-utilizadas hoje em dia – poderiam ser muito ricas. Isso porque os estudos farmacológicos, as pesquisas sobre as drogas, levantam o problema em termos de variação de intensidade do metabolismo. O “sinto que…” deve ser visto através das sensações de passagem, dos graus de intensidade. Então, a diferença entre nossa concepção e aquela de Arieti, com todo o respeito que podemos ter por seus trabalhos, reside no fato de que interpretamos a esquizofrenia em termos de experiência intensiva.
Marchetti: Mas o que quer dizer “inteligibilidade” do discurso esquizofrênico?
Guattari: Trata-se de saber se a coerência vem de uma ordem, digamos, de expressão racional ou semântica, ou se ela vem de uma ordem, por assim dizer, maquínica. No final das contas, no nível da representação a gente se arranja como pode, todo mundo se arranja como pode. Tanto o cientista que procura reconstituir alguma coisa na ordem da expressão, quanto o esquizofrênico. Mas este último não possui diante dele a possibilidade de tornar inteligível o que ele tenta reconstituir com os meios à mão, com aquilo de que dispõe. Nesse sentido, pode-se dizer que as descrições que nos são dadas no quadro da psicanálise, que chamaremos de edipianas, para simplificar, constituem uma representação repressiva. Mesmo autores importantes, entre aqueles que foram mais longe na exploração das psicoses ou da infância, entre aqueles que até mesmo localizaram esse problema de passagens às quantidades intensivas, acabaram finalmente, em última análise, por descrever novamente as coisas de maneira edipiana. Alguém, e falo de alguém muito importante, falou de micro-edipianismo e o fez, se bem que ele tenha constatado no nível do funcionamento, num caso de psicose, digamos no nível das pulsões parciais, que havia uma paisagem estilo Bosch, composta por uma infinidade de fragmentos, de pedaços, onde não havia nenhuma ideia do pai, da mãe e da santíssima trindade. O que faz com que, nesse nível, a representação seja tomada literalmente a partir de uma única ideologia dominante.
Marchetti: Há alterações típicas na linguagem esquizofrênica. Haveria casos idênticos numa linguagem própria a certas categorias sociais, por exemplo, militares, políticos etc.?
Guattari: Certamente. Pode-se mesmo falar de uma espécie de parafrenização da linguagem militar, ou então, nesse momento, da linguagem dos militantes políticos. Mas seria preciso generalizar. Categorias como aquelas dos psiquiatras, dos psicanalistas, dos pesquisadores, recorrem a uma linguagem de fechamento da representação. A tal ponto que tudo o que escapa à produção das máquinas desejantes é sempre reconduzido a sínteses limitativas, exclusivas, com um retorno constante a categorias dualistas, com uma separação constante de planos. É um fenômeno que uma reforma epistemológica não bastará para resolver. Tudo isso, com efeito, põe em jogo o conjunto dos equilíbrios das forças no nível da luta de classes. Isso quer dizer que deveríamos chamar a atenção de uma parte dos psicanalistas, ou de tal ou qual pesquisador! Justamente por não estar em jogo uma ordem separada, como seria o caso, digamos, de uma ordem pulsional; dado que é o próprio conjunto do funcionamento dos mecanismos sociais, tanto na ordem do desejo quanto naquela da luta revolucionária, ou das ciências e da indústria; uma vez que tudo isso é que está em jogo, o sistema em seu conjunto terá necessidade de secretar novamente seus modelos, suas castas, certas expressões estereotipadas. Podemos nos perguntar se as expressões dos militares, dos políticos, dos cientistas não são em realidade, muito exatamente, uma espécie de antiprodução, uma espécie de trabalho de repressão no nível da expressão cujo objetivo é parar o trabalho de questionamento, trabalho incessante, transbordante, que se perde simplesmente no movimento real das coisas.
Marchetti: Nietzsche, Artaud, Van Gogh, Roussel, Campana: o que significa nesses casos a doença mental?
Deleuze: Ela significa muitas coisas. Jaspers e, hoje, Laing disseram coisas muito fortes sobre isso, mesmo se até agora eles não foram muito bem compreendidos. Eles disseram, em resumo, que naquilo que é chamado, grosso modo, loucura, há duas coisas: há um furo, um rasgo, como uma luz repentina, um muro que é atravessado; e há, em seguida, uma dimensão muito diferente, que poderíamos chamar um desabamento. Um furo e um desabamento. Lembro-me de uma carta de Van Gogh. “Devemos – escrevia ele – minar o muro”. Salvo que romper o muro é dificílimo e se o fazemos de forma muito bruta nos machucamos, caímos, desabamos. Van Gogh acrescentava ainda que “devemos atravessá-lo com uma lima, lentamente e com paciência”. Temos então o furo e depois esse desabamento possível. Jaspers, quando fala do processo esquizofrênico, ressalta a coexistência de dois elementos: uma espécie de intrusão, a chegada de algo que não tem nem mesmo expressão, algo de formidável e que o é, a tal ponto que é difícil dizê-lo, tão reprimido em nossas sociedades que corre o risco de coincidir – e eis o segundo elemento – com o desabamento. Reencontramos aí o esquizofrênico autista, aquele que não se mexe mais, que pode permanecer imóvel durante anos. No caso de Nietzsche, de Van Gogh, de Artaud, de Roussel, de Campana etc., há sem dúvida coexistência desses dois elementos: um furo fantástico, um buraco no muro. Van Gogh, Nerval – e quantos outros poderíamos citar! – quebraram o muro do significante, o muro do Papai-Mamãe, eles estão bem além, e nos falam com uma voz que é aquela de nosso futuro. Mas o segundo elemento permanece de qualquer modo presente nesse processo, e é o perigo do desabamento. Que o furo, o rasgo possam coincidir ou deslizar numa espécie de desabamento é algo que ninguém tem o direito de tratar de forma leviana. É preciso considerar esse perigo como fundamental. As duas coisas estão ligadas. Não há sentido em dizer que Artaud não era esquizofrênico. Pior que isso, é vergonhoso, cretino. Artaud era, evidentemente, esquizofrênico. Ele realizou o “furo genial”, ele rompeu o muro, mas a que preço? O preço é aquele de um desabamento que deve ser qualificado de esquizofrênico. O furo e o desabamento são dois momentos diferentes. Mas seria irresponsável ignorar o perigo do desabamento em tentativas como essa. Salvo que isso vale a pena.
Marchetti: Num hospital psiquiátrico, os internos, desafiando o veto do diretor da clínica, têm o hábito de jogar cartas no quarto de um doente que há anos está num estado de profunda catatonia: um objeto. Nenhuma palavra, nenhum gesto, nenhum movimento. Um dia, enquanto os internos jogavam, o doente, que tinha sido voltado em direção à janela pelo enfermeiro, fala inesperadamente: “Olha lá o diretor!”. Ele recai em seu silêncio e morre alguns anos mais tarde sem jamais ter voltado a falar. Eis então sua mensagem para o mundo: “Olha lá o diretor!”.
Deleuze: É uma belíssima história. No sentido da instauração de uma esquizoanálise – e é isso que desejamos – não deveríamos nos perguntar tanto sobre o que quer dizer a frase “olha lá o diretor”, mas o que se passou para que esse doente autista, dobrado sobre seu corpo, tenha constituído, com a chegada do diretor, uma pequena máquina que lhe serviu, mesmo por um tempo tão curto.
Guattari: Parece-me que, na história, não é evidente que o doente tenha visto efetivamente o diretor. Para a graça da história, seria mesmo melhor que ele não o tenha visto. O simples fato de que tenha havido uma modificação, uma mudança de hábitos devido à presença dos jovens internos, a transgressão da lei do diretor por causa do jogo, poderia ter levado o doente a fazer emergir novamente a figura hierárquica do diretor, a enunciar simplesmente uma interpretação analítica da situação. Nesse episódio, isso representa uma bela ilustração de transferência, uma translação da função analítica. Não é um psicanalista, um psico-sociólogo que está interpretando a estrutura da situação. É literalmente um grito, uma espécie de lapsus linguae que interpreta o sentido de alienação na qual se encontram, não ele, o esquizofrênico, mas as pessoas para as quais é todo um trabalho conseguir simplesmente jogar cartas na presença de doentes.
Marchetti: Sim, mas o doente está bem presente a si mesmo quando lança seu grito, mesmo se ele não viu de forma alguma o diretor…
Guattari: Presente a si mesmo! Não estou de forma alguma certo disso. Ele poderia ter visto passar um gato ou outra coisa. É normal, numa prática de psicoterapia institucional, que o esquizofrênico o mais perdido nele mesmo libere inesperadamente as histórias mais inacreditáveis sobre a vida privada de alguém, coisas que se poderia acreditar que ninguém as soubesse, e que ele diz para você do modo o mais cru verdades que você acreditava serem secretas. Não é um mistério. O esquizofrênico tem acesso a isso de uma única vez, ele está por assim dizer ligado diretamente aos enganches que constituem o grupo em sua unidade subjetiva. Ele se encontra em situação de “vidência”, lá onde os indivíduos cristalizados na sua lógica, na sua sintaxe, nos seus interesses estão absolutamente cegos.
NOTA
- Rimbaud, Une saison en enfer, “Mauvais sang”, in Oeuvres completes, Paris, Gallimard, 1972, Coll. “Bibliothèque de la Pléiade”, p. 95
Publicado originalmente em “Capitalismo e schizophrenia”, entrevista com Vittorio Marchetti, Tempi modernli, nº 12, 1972, pp. 47-64. Traduzido por Rogério da Costa Santos e publicado em português no livro Gilles Deleuze: A Ilha Deserta e outros textos [Textos e entrevistas: 1953-1974], edição preparada por David Lapoujade.