NIETZSCHE, FILOSOFIA E A QUESTÃO DA VERDADE

Através dos escritos do filósofo Roberto Machado em seu livro “NIETZSCHE E A VERDADE” (ed. Graal, 1999), busco aqui, refletir e comentar sobre algumas características e implicações dos conceitos nietzschiano: vontade de verdade e vontade de potência.

O livro NIETZSCHE A VERDADE compõe-se de três partes: a primeira trata da relação entre ciência e arte. Uma exposição da noção nietzschiana de “metafísica de artista” envolvendo os dois instintos estéticos da natureza – o apolíneo e o dionisíaco, que estão na base da arte trágica. Nesse primeiro momento expõe sua intenção de explorar o que ele chamou de apologia da arte; a segunda parte trata da antinomia entre metafísica racional e metafísica do artista a partir da relação entre essência e aparência, e o momento em que o racionalismo estético socrático torna-se o marco que assinala a morte da arte trágica. A terceira parte, trata-se  da critica a verdade científica e ao seu instinto ilimitado de conhecimento pela explicação de sua gênese e pela afirmação da relatividade do conhecimento, de seu antropomorfismo e de sua força dominante de ilusão, ocupa-se também sobre a relação entre a verdade e valor e por demonstrar que toda a filosofia de Nietzsche é uma filosofia de valor.

Como Ciência pode-se entender uma reflexão ou uma investigação sobre as questões afins do conhecimento, do pensamento, do intelecto, da consciência, do conceito, da verdade. A reflexão sobre esses temas está no âmago da filosofia de Nietzsche. Há de se notar que do primeiro ao último texto, Nietzsche não conceitua o que vem a ser Ciência. As obras do filósofo situam-se em uma perspectiva tão global que, na maioria das vezes fica difícil estabelecer uma diferença essencial entre a racionalidade filosófica clássica e a racionalidade científica moderna. O que interessa a Nietzsche é realizar uma crítica radical do conhecimento racional tal como existe desde Sócrates e Platão. Nietzsche formula uma recusa de uma teoria do conhecimento, pois crê que o problema da ciência não pode ser resolvido pela própria ciência. Não acredita na possibilidade em criticar a ciência visando o estabelecimento de uma verdade cada vez mais científica. Há em sua filosofia a desconsideração da ciência e a importância da arte da Grécia arcaica.

O problema apavorante e introduzido por Nietzsche foi considerar a ciência como algo suspeito, questionável em sua época. Fundamentalmente esta crítica da ciência é uma crítica da verdade. O sentido da crítica não é de buscar estabelecer um conceito rigoroso e sistemático de verdade, ou denunciar as ilusões dessa mesma verdade. A investigação e a reflexão sobre a verdade é uma crítica da própria ideia de verdade considerada como um “valor superior”, como ideal, que vem a ser uma crítica ao próprio projeto epistemológico. Toda reflexão nietzschiana nega à ciência a possibilidade de si mesma elucidar sua questão.

Machado faz três perguntas aparentemente “simples”: O que é a arte? Que importância ela tem para a vida? Que relação ela tem com a força e a fraqueza? Nietzsche responde buscando em sua reflexão o modelo da Grécia arcaica. Nesta época os helenos tinham uma sensibilidade exacerbada para o sofrimento e uma extraordinária sensibilidade artística caracterizada pela força dos seus instintos. A arte e a religião, para os gregos são idênticas. O mesmo instinto que produz a arte, produz a religião. Os gregos criaram os deuses olímpicos ou a arte apolínea para tornar a vida possível ou desejável, dando ao mundo uma superabundância de vida. A criação da arte apolínea que tem na epopéia homérica a sua mais importante realização é a expressão de uma necessidade. A arte apolínea, nesse caso, só adquire toda sua importância quando é pensada além de suas próprias fronteiras. Ou seja, ela não pode ser considerada isoladamente e desconsiderar o outro instinto estético da natureza que é o instinto dionisíaco. Para o grego apolíneo Dionísio é um deus bárbaro, pré-apolíneo, titânico, considerado o aniquilador da vida, deus de uma religião que vem do estrangeiro e que vai pouco a pouco penetrando na Grécia, como se pode ver em “As bacantes” de Eurípides. A oposição entre os dois instintos era total. Em vez de uma delimitação, de uma calma e tranquilidade aparentes o comportamento dionisíaco é marcado por um êxtase, por um enfeitiçamento, pela extravagância de um frenesi sexual que destrói a família, por uma bestialidade natural constituída de volúpia e crueldade. Assim, os “loucos de Dionísio” sentem a verdadeira natureza. Tudo é emoção em Dionísio!

Nietzsche critica à condição da verdade como valor superior que pretende separar a arte trágica da ciência. Separar o dionisíaco do apolíneo é o mesmo que matá-los. O herói foi vencido não pelo trágico, mas pelo lógico. Desta maneira, percebe que a ciência se nutre unicamente da verdade e nada mais desclassifica a arte. A arte, por sua vez, a experiência da verdade se faz indissoluvelmente ligada à beleza, a ilusão e a aparência. Arte e “instinto de conhecimento”.

Toda crítica apresentada por Nietzsche sob a dimensão da metafísica continua válida e presente nos seus escritos. Mas Nietzsche acrescenta um novo conceito para aprofundar ainda mais a sua crítica: o “instinto do conhecimento”. Um problema tem que ser resolvido antecipadamente.

O que Nietzsche pretende então é ressaltar que o conhecimento não faz parte da natureza humana, ou melhor, não está no mesmo nível que os instintos e que não é possível dizer, por exemplo, como Aristóteles no início da Metafísica, que todos os homens desejam naturalmente conhecer. O conhecimento não é um instinto do homem, que dizer, não é da mesma natureza que os instintos. O conhecimento foi produzido, o conhecimento foi inventado (MACHADO, 1999).

Portanto, não se deve definir o homem pelo conhecimento ou tornar o conhecimento como valor principal do homem, pois os instintos são mais fundamentais que o conhecimento. Quando se refere ao instinto do conhecimento ou da verdade, Nietzsche entende que isso é um instinto de crença no conhecimento. Cabe ressaltar que não há instinto de conhecimento e de verdade,  há um instinto de crença na verdade. Em outras palavras, o conhecimento puro é privado de instinto. Para Nietzsche instinto de conhecimento ou de verdade significa decadência, baixeza, declínio, signo de que a vida envelheceu e de que os instintos fundamentais se tornaram fracos. Então, surge uma ideia central: as condições de possibilidade do conhecimento são sociais, políticas e substancialmente morais.

Ainda em relação ao valor de um conhecimento, seja ele verdadeiro ou falso, Nietzsche afirma que esse valor é estabelecido não por provas lógicas, mas pela força. As verdades são demonstradas por seus efeitos e não por provas lógicas. Os efeitos levam a admitir “verdades” não demonstradas. Deste modo é também a filosofia. O filosofar ainda está presente como obra de arte, mesmo que não possa demonstrar como construção filosófica. Lá como aqui se pensa do mesmo modo. Pode-se extrair daí uma característica essencial: uma negação do privilégio da verdade científica e uma afirmação do valor da aparência.

Nietzsche nega a existência de um desejo natural de verdade. O intelecto, que é um meio de conservação dos indivíduos mais fracos, tem originariamente por função produzir disfarces, máscara, ilusão, mentira com o objetivo de compensar a falta de força.

A perspectiva extramoral critica o desejo de verdade como sendo um esquecimento de que o homem é um artista, um criador, isto é, um criador de aparência, situando o antagonismo entre arte e ciência no próprio campo da ilusão. No fundo, dois tipos de ilusão: a ilusão socrática, ilusão metafísica, que considera a verdade superior à aparência: e a ilusão artística, consciente do valor da ilusão, que sabe que tudo é ilusão, “figuração”, “transfiguração”, criação. Utilizando o procedimento de inversão tão caro a Nietzsche, poder-se-ia dizer que enquanto a “mentira” da ciência seria querer encontrar a “verdade” da arte é acreditar na imagem como imagem, na aparência como aparência. Ou, em outros termos, enquanto “a humanidade tem no conhecimento um belo meio de perecer”, a superioridade da arte sobre a ciência é não opor verdade a ilusão, é afirmar integralmente a vida (MACHADO, 1999).

O homem não ama necessariamente a verdade. Deseja suas consequências favoráveis. O homem também não odeia a mentira; ele não suporta os prejuízos por ela causados. O que não se quer realmente são as consequências nefastas tanto da verdade quanto da mentira.

A obrigação e o dever de dizer a verdade nasce para antecipar as consequências danosas da mentira. Quando ela tem valor agradável é permitida. Desde o início percebe-se que Nietzsche não se limita ao interior da questão do conhecimento, mas o articula no nível político e social com o objetivo de mostrar que a oposição entre verdade e mentira tem uma origem moral.

Ver, enxergar e mostrar o problema da moral e fazer-lhe uma crítica radical, são as tarefas essenciais da filosofia de Nietzsche, que considera nunca ter sido feita antes. O projeto genealógico de Nietzsche é ambicioso. É uma tentativa de superação da metafísica através de uma história descontínua dos valores morais que será investigada desde o seu nascimento, quanto à valorização desses mesmos valores.

Por tudo que já foi investigado, Nietzsche já não crê mais em valores eternos e diz:

O que nos separa radicalmente do platonismo e do leibnizianismo é que não acreditamos mais em conceitos eternos, em valores eternos, em formas eternas, em almas eternas e a filosofia, na medida em que é científica e não dogmática, é para nós apenas uma maior extensão da noção de “história”. A etimologia e a história da linguagem nos ensinaram a considerar todos os conceitos como advindos e muitos deles como ainda em devir” (Nietzsche in: Fragmentos Póstumos).

Nietzsche influência a filosofia contemporânea com sua crítica a verdade fundada em príncipios metafísicos. A proposta do filósofo é uma transvaloração dos valores da cultura ocidental. Antes de Sócrates havia a tragédia e o teatro, após Sócrates surge à obsessão pela verdade. Com as palavras de Machado (1999) apoiadas em Nietzsche, sintetizamos a questão dos valores:

Os valores não têm uma existência em si, não são uma realidade ontológica; são o resultado de uma produção, de uma criação do homem: não são fatos, são interpretações introduzidas pelo homem no mundo. “Tudo o que tem algum valor no mundo atual não o tem em si, não o tem por sua natureza – a natureza é sempre sem valor – mas um dia ganhou valor, como um dom, e nós somos os doadores. Fomos nós que criamos o mundo que diz respeito ao homem!”. O mesmo acontece com os valores morais. Não existem fatos morais, fenômenos morais, mas apenas uma interpretação moral.

Para finalizar, podemos pensar sobre nossa sociedade, pois é observar observar que a busca pela vontade de verdade se acentua a cada dia mais enquanto que a aposta na vontade de potência se acentua. Estamos em um período de obsessão e alienação por uma verdade cultural? quem educa o instinto é a cultura e, em nome da cultura, valorizar a natura, a verdade da natureza (verdade de instinto).

Nietzsche não concorda com a hegemonia de Apolo em detrimento a Dionísio. Propõe o vital, a potência, a verdade de potência! Segundo esta filosofia, nossa cultura hoje é fraca e decadente, pois valoriza Apolo e se esquece de Dionísio. Vivemos num mundo de pós-socráticos que enterraram a filosofia da Grécia arcaica.

O filósofo zomba do racionalismo, considera a razão como um “brinquedo” e não como uma máxima. Propõe a tensão entre a verdade e ilusão. Nietzsche tem a ideia de metafísica artística, e Sócrates e Platão a metafísica conceitual. A Ilusão metafísica é uma ilusão “ingênua”, pois ela nos faz acreditar, supondo-se que tal coisa seja verdade, uma verdade “absoluta”, sem que seja percebível. A Ilusão artística é uma ilusão crítica, você acredita, mas sabe que tal coisa não é verdadeira. A arte é apresentada como modelo alternativo a racionalidade. Pois a arte não representa compromisso com a verdade ela se assume como fantasia, ilusão. Filosofia, ciência e religião, são ilusões, mas não se assumem como sendo ilusão. A arte valorizada por Nietzsche é a arte da Grécia arcaica. A arte trágica, a tragédia, na qual faz surgir à tensão entre Apolo e Dionísio. A tensão potencializa a verdade, a vontade de potência. A mistura de Apolo e Dionísio controla o que há de desmesurado no instinto dionisíaco. Não existe uma verdade como valor, mas sim uma valoração das verdades. Nietzsche não é contra o valor, por um simples motivo, ele próprio propõe a transvaloração dos valores.

Nossa natureza apresenta uma faculdade que é dos sentidos. Cada sensação é fenomênica e única, assim é a nossa condição corpórea e cultural na natureza. A palavra vem a ser a sensação de imagem mental. A base de tudo para Nietzsche é a questão da linguagem. A linguagem irá definir “verdades”. O pensamento é subproduto de instinto e os organismos não dependem da razão. A palavra é em si uma ilusão a uma coisa. Ilusão faz parte do conhecimento, mas é uma representação necessária. Todo conhecimento não é inato, mas sim criado a partir da cultura. O instinto explica mais a vida que a verdade. O conhecimento é produto de uma força motriz, é uma invenção do instinto, que criamos para sobrevivermos e nos relacionarmos neste mundo, ele é sim uma grande ferramenta de autoria humana.

O interesse humano pela verdade é um interesse pragmático.  Através da palavra abstrata chegamos ao conhecimento e este produz muitas coisas. A abstração da vida não é mais importante que a concretude da vida e o valor não têm uma existência em si, é apenas resultado da produção. Na natureza só há fatos, e na experiência humana não há fatos, existe apenas a interpretação dos fatos. Cada experiência sensorial é única.

A vontade de potência está com o super-homem de Nietzsche, sem a vontade de potência não se torna super-homem. A vontade de potência é a vontade de auto-superação. Ser super-homem é se superar, valorizando em si a sua potência! A vontade de potência deseja a realização do que é possível. A vontade de verdade é se contentar com pouco. Não existe a verdade abstrata. Devemos sair do asceticismo, da acomodação, e deixar também de possuir uma postura débil, sobrevivente. Através desse tipo de atitude a vida humana não se torna nada mais que uma simples vida vegetativa. O que o homem deve desejar é mais vontade de potência, de superação do que lhe é estabelecido e menos vontade de verdade. A verdade é útil, pois precisamos fazer a convenção sobre um verbete de lugar em coisa. A verdade é um subproduto de uma ilusão e possuímos a verdade ilusória apenas por ser favorecedora a sociedade. Nós devemos fazer uso da verdade, mas sem a crença nela como essência absoluta. A vontade de potência é mais importante que tomar racionalidade como grande coisa. Em síntese a vontade de verdade tem uma proposta universalista e a vontade de potência tem uma proposta perspectivista.

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