Maquinando Lacan: uma análise dos usos que Deleuze e Guattari fazem do ensino lacaniano em O Anti-Édipo
- por Wagner Honorato Dutra e Luís Flávio Silva Couto
RITMOS DE UMA ESCRITA RIZOFORME¹
A primeira referência a Lacan aparece na seção I.4.3 intitulada O real e a produção desejante: sínteses passivas. Deleuze e Guattari identificam no ensino lacaniano – lido por Leclaire (1965/1998) – uma “admirável teoria do desejo” que:
[…] conta com dois polos: um em relação ao “objeto pequeno-a” como máquina desejante, que define o desejo em termos de uma produção real, ultrapassando qualquer ideia de necessidade ou de fantasma; e outro em relação ao “grande Outro” como significante, que reintroduz uma certa ideia de falta (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p.43).
Esse decalque oferece uma visão inicial de como os autores fazem uso das ideias de Lacan. Não há, em princípio, diferenças absolutas que tornem ambas as perspectivas teóricas excludentes entre si. Aliás, podemos dizer que a ideia de polo contida nesse enunciado – tão recorrente nos textos esquizoanalíticos – não implica nem mesmo em dualidade. As conexões antiedipianas produzidas com o ensino de Lacan são complexas e não se deixam capturar por fórmulas maniqueístas. De fato, há vários momentos no texto nos quais termos como esquizofrenia e paranoia, máquina e estrutura, imanente e transcendente, idealismo e materialismo, entre tantos outros, são pareados de modo a sugerir as ideias de dualidade e de contraposição. Entretanto, não é a esse tipo de oposição nominal que nos referimos, mas ao oposicionismo reativo e ressentido que a genealogia nietzschiana imputa à rebelião escrava da moral (Nietzsche, 1887/2012).
Assim, quando Deleuze e Guattari diferenciam dois polos na teoria lacaniana de desejo, eles não fazem isso para priorizar um (objeto a) em detrimento do outro (falta, significante). As coisas não são tão prosaicas assim. A concepção do inconsciente estruturado como uma linguagem – detalharemos isso mais adiante – não é simplesmente descartada, mas analisada em suas nuances, destacada de seu conjunto e conectada à problemática do inconsciente-máquina (o mesmo vale para o conceito de objeto a).
O pensamento de Deleuze e Guattari é um ato positivo e de ruptura. Ele nos força a pensar a partir de outro ponto de vista de modo a compreender qual e como um problema é colocado. Com esses autores, a crítica adquire o estatuto preciso de criação e de implicação de novos conceitos da coisa criticada. Isso não deve ser interpretado como falta de compromisso com a verdade, mas como um gesto que conecta o pensamento com o fora, com as múltiplas concepções do verdadeiro. Criticar assume, então, um valor determinado pelo uso e permite “[…] constatar que um conceito se esvanece, perde seus componentes ou adquire outros novos que o transformam, quando é mergulhado em um novo meio” (Deleuze & Guattari, 1991/2016, p. 37).
Em relação ao objeto analisado neste artigo, temos que lidar com um segundo complicador, a saber, o estilo textual. O Anti-Édipo é um livro máquina, cuja superfície funciona como um corpo sem órgãos onde temas, argumentos, figuras e conceitos são registrados (síntese disjuntiva inclusiva) para compor arranjos provisórios (sínteses conjuntivas). Nesse processo de escrita, trechos são retomados, ampliados, reformulados em diferentes contextos. Eles obedecem à lógica dos agenciamentos dos fluxos, das intensidades e, por que não, dos ritmos. Por conseguinte, os temas trabalhados não possuem sentidos intrínsecos, mas valores definidos pelas formas como são usados.
As referências ao ensino lacaniano exemplificam isso. Elas são recorrentes e tendem a gerar no leitor impressões, às vezes, negativas. Roudinesco (1988), por exemplo, qualifica as teses antiedipianas como eminentemente simplistas. A historiadora da psicanálise as vê como um amontoado organizado em torno de um postulado único e sem fundamento, a saber, “[…] o capitalismo, a tirania ou o despotismo encontrariam seus limites nas máquinas desejantes de uma esquizofrenia ‘bem-sucedida’[…]” (Roudinesco, 1988, p. 533).
No entanto, se atentarmos para a definição de repetição proposta por Deleuze (1968/2015), aprendemos que ela não é sinônimo de generalidade ou redundância. A repetição, como conduta e ponto de vista, é uma maneira de comporta-se em relação a algo singular, insubstituível. Ela é “[…] o eco de uma vibração mais secreta, de uma repetição interior e mais profunda no singular que a anima” (Deleuze, 1968/2015, p. 11).
Essa conceituação se aplica perfeitamente às críticas que Deleuze e Guattari dirigem à psicanálise lacaniana em O Anti-Édipo. As “partes lacanianas” são como peças ou “[…] totalidades fragmentárias que não se ajustam umas às outras […]” (Deleuze & Guattari, 1991/2016, p.45), mas participam de um mesmo empreendimento esquizoanalítico infinitamente variado. Elas aparecem sob a forma de citações diretas e indiretas – com e sem indicação de referência bibliográfica – e remetem aos diferentes períodos do ensino de Lacan (do ano de 1938 – A família – ao seminário dos anos de 1969 e 1970).
Ademais, as referências à psicanálise lacaniana servem para uma variedade de fins – embasar argumentos, justificar teorias, refutar ideias ou interpretações, criar conceitos – e abarcam os textos de seu fundador e as versões elaboradas por seus interpretes e discípulos. Também nesse caso, as interlocuções de Deleuze e Guattari são diversificadas, servem aos vários usos e finalidades e não podem ser qualificadas restritivamente em termos de oposição. Os alvos dos ataques são os “belos livros” escritos por psicanalistas, etnólogos e antropólogos que nas décadas de 1950, 60 e início de 70 gozavam de prestígio entre os intelectuais franceses. Essas obras articulam a psicanálise com os campos clínico, social e institucional-psiquiátrico e têm em comum o apreço por aspectos setoriais do ensino lacaniano. Elas testemunham como “[…] a ordem simbólica de Lacan foi desviada, utilizada para apoiar um Édipo de estrutura aplicável à psicose, e para estender as coordenadas familistas para fora do seu domínio real e mesmo imaginário” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 477).
Posto isso, não temos a ambição de resolver esse problema definitivamente ou abarca-lo em sua integralidade, mas apenas esboçar seus contornos e expor algumas das suas facetas. Na obra, as alusões a Lacan e aos seus intérpretes estão imbrincadas umas nas outras. Nossa análise incide sobre as seções nas quais identificamos referências explicitas ao texto lacaniano.
MAQUINANDO LACAN
As críticas dirigidas ao ensino lacaniano giram em torno da concepção de desejo e das suas articulações com as disciplinas inspiradas no estruturalismo (antropologia e linguística, principalmente). Em relação à articulação da psicanálise com a linguística, os questionamentos dirigem-se – não restritivamente – ao conjunto de pressupostos que dão sustentação à concepção do inconsciente estruturado como uma linguagem.
Em Os dois sentidos do fluxo-esquiza: capitalismo e esquizofrenia, item 10.2 do capítulo III, Deleuze e Guattari (1972/2010) sintetizam e comparam a teoria de Saussure – tal como eles julgam ser apropriada, senão por Lacan, certamente por seus discípulos – com a do dinamarquês Louis Hjelmslev. As tensões entre as duas concepções de linguagem servem de pretexto para a problematização dos modelos estrutural e maquínico do inconsciente. Em um polo os autores situam a abordagem estruturalista de influência saussuriana/jakobsoniana e no outro a linguística dos fluxos imputada ao dinamarquês Hjelmslev. Eles asseveram “[…] que a linguística de Louis Hjelmslev se opõe profundamente ao empreendimento saussuriano e pós-saussuriano” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 321).
Diante dessa alegação, fica difícil não tomar as duas concepções linguísticas como sistemas opostos. Movidos por essa impressão, poderíamos dar um passo adiante e tratar a racionalidade dicotômica implícita nesse enquadramento como o protótipo das leituras deleuzo-guattarianas da psicanálise lacaniana. Embora essa decisão não seja totalmente infundada, julgamos mais apropriado adotar outra postura. Não negamos que as oposições estejam presentes, apenas recuamos diante do ímpeto de transformá-las em analisador exclusivo de tudo aquilo que se passa entre os autores. Na verdade, as coisas estão longe disso! O que Deleuze e Guattari qualificam como polos não são entes puros. Há sempre invasões recíprocas entre sistemas, territórios que se desterritorializam, fluxos que se precipitam. Assim, mesmo o inconsciente linguístico-estrutural comporta suas linhas de fuga. Operaremos a seguir um recorte sobre o texto antiedipiano com o intuito de demonstrar essa tese. Tentaremos mostrar como Deleuze e Guattari trabalham com as noções de “objeto a” e do “grande-Outro” na teoria lacaniana do desejo. Em nosso esquema, eles recebem os nomes de polo molecular e polo molar-estrutural respectivamente.
POLO MOLECULAR
As referências a Lacan estão difundidas por toda a obra antiedipiana. Apesar disso, conseguimos, com algum esforço, agrupá-las conforme tipos temáticos. Nesta seção, elas são trabalhadas em três subunidades: extrações lotéricas, inconsciente… rupturas e máquina infernal.
Extrações lotéricas
Na seção I.5.3, Segundo modo: cadeia ou código, e desligamento, Lacan é evocado em uma espécie de reverência por ter descoberto “[…] o rico domínio de um código do inconsciente envolvendo a ou as cadeias significantes […]”; e de ter, com isso, “[…] transformado a análise” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 57). Rotulamos de “espécie de reverência” porque o reconhecimento aqui – e também quando os autores falam da “admirável teoria do desejo” na nota de rodapé 23 (páginas 43 e 44) – é investido de humor e ironia. Assim, mal falam do “rico domínio de um código do inconsciente” e já confrontam a lógica significante com uma concepção linguística na qual “[…] não se pode continuar falando de uma cadeia ou mesmo de um código desejante” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 57); e que os signos que compõem as cadeias “[…] não são propriamente significantes” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 57).
Eles argumentam que as cadeias do inconsciente maquínico são formações abertas, plurívocas, construídas por signos de naturezas variadas trabalhando em todos os níveis e em todas as conexões. Cada signo “[…] fala sua própria língua, e estabelece sínteses com outros, que são tanto mais diretas em transversal quanto mais indiretas elas são na dimensão dos elementos” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 58). Logo, isso se torna um agenciamento das sínteses disjuntivas inclusivas que “[…] não implicam exclusão alguma, sendo que as exclusões surgem devido apenas a um jogo de inibidores e de repressores que determinam o suporte e fixam o sujeito específico e pessoal” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 58).
Considerando a argumentação até esse ponto, temos a impressão de que ela se sustenta num mais radical antagonismo. No entanto, os autores nos surpreendem ao sugerirem, em nota de rodapé, que o conteúdo um tanto quanto enigmático da última citação literal condiz com a seguinte alegação de Lacan em “Observação sobre o relatório de Daniel Lagache”:
[…] uma exclusão proveniente destes signos enquanto tais pode ocorrer apenas como condição de consistência numa cadeia a ser constituída; acrescentemos que a dimensão na qual se controla essa condição é unicamente a tradução da qual é capaz uma tal cadeia. […] Demoremo-nos ainda um instante neste jogo. Isto para considerar que é a inorganização real pela qual estes elementos são misturados, no ordinal, ao acaso, que na ocasião da sua saída nos faz tirar à sorte… (Lacan, 1960a/1998, citado por Deleuze, & Guattari, 1972/2010, p. 58).
Não sugeriremos uma hipótese para explicar essa referência antes de contextualizá-la. No texto, Lacan (1960a/1998) contrapõe o modelo proposto por Daniel Lagache – energético-econômico – ao seu modelo estrutural do inconsciente inspirado em Lévi-Strauss. Ele tenta demonstrar que o inconsciente comporta algo que remete, mas não se reduz, à lógica do significante. Sua concepção de estrutura engloba três “ditos” freudianos aparentemente discordantes entre si: o isso é não organizado; o inconsciente e a pulsão não abrangem a negação; as pulsões de morte fariam imperar o silêncio no isso.
Lacan (1960a/1998) julga que uma resposta à altura do desafio de construir uma teoria capaz de articular esses três enunciados não pode prescindir da função do significante, qualquer que seja a forma em que esse termo é considerado (materialidade irredutível/letra ou loteria). Em ambas as perspectivas:
[…] evidencia-se que no mundo somente o significante tem o poder de suportar uma coexistência – constituída pela desordem (na sincronia) – de elementos em que subsiste a ordem mais indestrutível que se manifesta (na diacronia), fundamentando-se esse rigor associativo de que ele é capaz, na segunda dimensão, na própria comutatividade que ele exibe, por ser intercambiável na primeira (Lacan, 1960a/1998, p. 665).
Para explicar o funcionamento do significante, Lacan (1960a/1998) recorre à teoria dos conjuntos, especialmente aos conceitos matemáticos de cardinal e ordinal. É justamente nesse ponto da argumentação que o recorte deleuze-guattariano é efetuado. O excerto lacaniano é citado em nota de rodapé para corroborar o postulado de que as disjunções inconscientes são notadamente inclusivas. A priori, o inconsciente maquínico não conhece contradição entre os signos. A inscrição dos signos numa lógica exclusiva, própria da cadeia significante, ocorre somente a posteriori e em condições especiais. Como em um jogo de loteria, a ordem em que cada bolinha é extraída do globo giratório não coincide, necessariamente, com o número que está desenhado nela. No decorrer do sorteio, constatamos que não somente a sequência na qual as bolas são retiradas é aleatória – ex: a primeira bolinha retirada é a nº 9; a segunda é a nº 30 e assim por diante –, como também que só podemos afirmar que faltam algumas delas no globo porque as bolas que são extraídas são colocadas e organizadas em um anteparo. Por conseguinte, não consigo, só olhando para o globo, fazer uma estimativa exata de quantas bolas estão ali misturadas. Ora, é justamente essa inorganização inicial que permite a Deleuze e a Guattari sugerirem que os signos do desejo:
[…] compõem uma cadeia significante mas que em si mesmos não são significantes, que respondem, não às regras de um jogo de xadrez linguístico, mas às extrações de um jogo de loto, das quais sai ora uma palavra, ora um desenho, ora uma coisa ou um pedaço de coisa, só dependendo uns dos outros pela ordem das extrações ao acaso, só se mantendo em conjunto pela ausência de liame (ligações não localizáveis), e cujo único estatuto é o de serem elementos dispersos de máquinas desejantes também dispersadas (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 408).
As cadeias moleculares são heterogêneas e se assemelham mais a “[…] um desfile de letras de alfabetos diferentes, e no qual surgiria subitamente um ideograma, um pictograma, a pequena imagem de um elefante que passa ou de um sol que se levanta” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 58). A cadeia mistura morfemas e fonemas e “[…] captura fragmentos de outras cadeias das quais extrai uma mais-valia, como o código da orquídea ‘extrai’ a figura de uma vespa […]” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 58).
Consequentemente, só devemos falar de uma escrita inconsciente se pudermos, com essa expressão, remeter a algo que se efetua no próprio Real. Afinal, a produção desejante maquina em todos os sentidos, compondo arranjos ou cadeias heterogêneas que: “[…] procedem por segmentos destacáveis, estoques móveis, como blocos ou tijolos voadores […]” compostos por “[…] signos de alfabetos diferentes, mas também figuras, uma ou várias miudezas, talvez mesmo um cadáver” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 59).
O conceito de cadeia, ao qual se referem Deleuze e Guattari, equivale ao de síntese disjuntivo-inclusiva, cuja função é distribuir, apropriar, assentar os objetos parciais sobre o corpo sem órgãos. “[…] essa rede faz com que as conexões produtivas passem para o próprio corpo sem órgãos e, com isso, canaliza ou ‘codifica’ os fluxos” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 433). Nota-se que a palavra “codifica” é colocada entre aspas para enfatizar e relativizar o seu uso na frase, já que, a rigor, não podemos falar de código no âmbito da cadeia molecular, mas de fluxos descodificados. Nesse nível, o corpo sem órgãos funciona como suporte não especificado que marca o limite molecular dos conjuntos molares e a cadeia tem apenas a função de “[…] desterritorializar os fluxos e fazê-los passar o muro do significante” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 434).
Em Lacan, diferentemente, a passagem do cardinal ao ordinal consiste no processo que inaugura a série indefinida dos números naturais de onde se articula toda a cadeia significante e se instaura a temporalidade. A função do traço unário do cardinal – condição de emergência do sujeito – só se torna efetiva e operatória em sua atualização no ordinal (Sauval, 1962).
Ora, enquanto em O Anti-Édipo a inorganização é um princípio efetuador a priori, em Lacan, por sua vez, ela só se torna efetiva post hoc. Ademais, nem mesmo o sentido em que o termo cadeia é empregado em cada contexto é o mesmo. A cadeia em Deleuze e Guattari é constituída de códigos que em si não são significantes. Esse é um caso concreto que exemplifica como as conexões dos autores com o pensamento de Lacan – e de tantos outros – são complexas e resultam de uma atitude construtivista. Eles fragmentam conceitos e modelos teóricos tratando seus componentes como objetos parciais que gozam de autonomia relativa.
Com efeito, se o processo finalizasse nesse ponto, todo o empreendimento não passaria de oposição destrutiva, confrontação que fala de si mesma por meio de generalidades vazias (Deleuze & Guattari, 1991/2016). Todavia, a crítica antiedipiana dirigida às ideias de Lacan não se detém nisso. Os fragmentos conceituais são agenciados de tal modo que a adesão à totalidade do sistema original, agora desconstruída, devém supérflua. Deleuze e Guattari selecionam os elementos que julgam pertinentes e com eles montam arranjos originais, constroem conceitos e extraem novas implicações e consequências da teoria criticada.
Neste tópico, onde analisamos a estrutura do inconsciente a partir das “extrações lotéricas”, fica patente a intenção de Deleuze e Guattari de implicar o polo da produção do real na teoria lacaniana do desejo. Demoremo-nos um pouco mais nesse procedimento tomando como exemplo outro contexto de aplicação.
Inconsciente… rupturas
As conversações com Lacan ocorrem, também, na seção I.5.4, Terceiro modo: sujeito e resíduo. Como podemos deduzir do título, o item é dedicado à caracterização do terceiro momento do ciclo produtivo do inconsciente. Nessa etapa não sequencial do ciclo produtivo chamada de consumo – ou de síntese conjuntiva – o sujeito é tratado como resíduo, isto é, como peça adjacente à máquina. Esse sujeito é impessoal, sendo, portanto, “[…] uma parte ao lado da máquina, mas uma parte já partilhada, à qual dizem respeito partes correspondentes aos desligamentos da cadeia e às extrações de fluxos operados pela máquina” (Deleuze, & Guattari, 1972/2010, p. 60). Dito de outra forma, o sujeito é um resíduo metamorfo que consome os estados pelos quais passa – no corpo sem órgãos –, nascendo deles sempre como uma parte feita de partes.
Sob os olhares dos autores, a lógica desse processo aproxima-se da teoria lacaniana sobre a segunda operação concernente à causação do sujeito desenvolvida em “Posição do inconsciente no Congresso de Bonneval” (Lacan, 1964/1998). Nesse texto, a análise do sonho do licorne, apresentada por Leclaire e Laplanche no VI colóquio de Bonneval, serve para Lacan de contraponto para explanar sobre a natureza do inconsciente e sobre a teoria da causação do sujeito.
De acordo com Lacan (1964/1998), a causação do sujeito comporta duas operações fundamentais: a alienação e a separação. O sujeito se constitui no campo do Outro sendo um efeito da ação da linguagem. Isso implica em um paradoxo, pois a produção do “[…] significante no lugar do Outro ainda não discernido, […] faz surgir ali o sujeito do ser que ainda não possui a fala […]” (Lacan, 1964/1998, p. 854). A alienação não decorre do fato de essa operação se iniciar no Outro, mas em razão de este último ser para o sujeito o lugar de sua causa significante. Consequentemente, nenhum sujeito pode ser causa de si mesmo, sendo, por isso, o efeito deslizante em uma cadeia na qual um significante representa um sujeito para outro significante. A alienação tem a estrutura lógica de um vel, razão pela qual o sujeito é impelido a fazer uma escolha forçada – mas, frustrada – pelo sentido.
O significante produzido no lugar do Outro coloca o sujeito numa situação extemporânea, pois ali onde “[…] havia de pronto para falar […] lá estava e não está mais” e “[…] por pouco mais lá estava por ter podido lá estar –, o que lá havia desaparece, por não ser mais que um significante” (Lacan, 1964/1998, p. 854).
Pela via da separação, por sua vez, “[…] o sujeito se realiza na perda em que surgiu como inconsciente mediante a falta que produz no Outro […]” (Lacan, 1964/1998, p. 855). Lacan explica essa operação por meio da análise dos verbos separare (separar) e parere (gerar a sim mesmo). Essa parte do texto de Lacan é evocada na 4ª seção da quinta parte do capítulo I intitulada Terceiro modo: sujeito e resíduo. Deleuze e Guattari conectam as palavras de Lacan às suas próprias noções de processo e de intensidade maquínica. Eles atribuem à formulação de sujeito do inconsciente lacaniano uma função processual compatível com a afirmação de que: “[…] o sujeito consome os estados pelos quais passa, e nasce destes estados, sempre concluído destes estados como uma parte feita de partes, cada uma das quais ocupa, por um momento” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 60). É a potência cambiante do inconsciente entrevista no hiato entre significantes que, na avaliação dos autores, permite ao psicanalista francês desenvolver um jogo mais maquínico do que etimológico dos verbos parere, separare e se parere. Eles atribuem a essa análise um caráter intensivo, especialmente quando Lacan (1964/1998) diz que a pars nada tem a ver com o todo e
[…] desempenha sozinha sua parte. Aqui, é da sua partição que o sujeito procede à sua parturição… razão pela qual ele pode conseguir o que lhe concerne, um estado que qualificaríamos de civil. Nada na vida de alguém desencadeia tanto furor para ser alcançado. Sacrificaria uma grande parte dos seus interesses para ser pars […] (Lacan, 1964/1998, citado por Deleuze, & Guattari, 1972/2010, p. 60-61).
Riaviz (1998) esclarece que a separação possibilita ao sujeito situar a falta no Outro e, ao mesmo tempo, gozar de certa margem de liberdade que Lacan qualifica de estado civil. Isso possibilita ao sujeito jogar sua partida sozinho no intervalo que se repete na “[…] estrutura mais radical da cadeia significante […]”, “[…] lugar assombrado pela metonímia, […] do desejo” (Lacan, 1964/1998, p. 858). Algo, portanto, que contesta os esforços de Laplanche e Leclaire de identificar a cadeia de significantes Lili-plage-soif-sable-peau-pied-corne – condensada na fórmula da Li-corne – ao inconsciente.
Logo, ao menos nesse aspecto, as ideias de Deleuze, Guattari e Lacan se conectam. Tanto as máquinas desejantes quanto o inconsciente lacaniano funcionam “[…] nos hiatos e rupturas, nas avarias e falhas, nas intermitências e curtos-circuitos, nas distâncias e fragmentações, numa soma que nunca reúne suas partes num todo” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 61-62). Novamente, a admirável teoria do desejo de Lacan é cotejada naquilo que funciona como índice do real ou, para sermos mais precisos, recebe o nome de objeto a.
Máquina infernal
No item II.4.5, intitulado Será que a fronteira passa entre o simbólico e o imaginário?, defrontamo-nos com a surpreendente afirmação: “O objeto a irrompe no seio do equilíbrio estrutural à maneira de uma máquina infernal, a máquina desejante” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 116). Os autores estabelecem a relação entre os termos com base em um critério pragmático-funcional, também empregado na leitura do artigo “La réalité du désir”, publicado por Leclaire em 1965. Sob o ponto de vista antiedipiano, o objeto a funciona como operador conceitual que reorienta a teoria lacaniana do inconsciente para o campo das multiplicidades. Ele é um agente desestabilizador que permite a Lacan “[…] esquizofrenizar o campo analítico, em vez de edipianizar o campo psicótico” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 409); e a Leclaire (1965/1998) apresentar “[…] a ficção do ‘puro ser do desejo’ como um conjunto de puras singularidades” (Leclaire, 1965/1998, p. 150; tradução nossa).
Notemos que, novamente, um conceito lacaniano é pinçado – agora por uma via indireta – e transformado em veículo da teoria deleuzo-guattariana do desejo. A análise mais abrangente da noção de objeto a sob o ângulo da psicanálise lacaniana corrobora essa tese. Consideremos primeiramente o objeto a como é tematizado no texto de Leclaire (1965/1998). Lá, o termo é definido como “[…] o irracional por excelência, o paradoxo de uma ligação inexistente, a negação da cópula, a falta em toda sua nudez, puro vetor, puro sentido” (Leclaire, 1965/1998, p. 151; tradução nossa). Ele é ausência radical, puro ser que atua como causa do desejo.
Ora, predicados como “falta”, “irracional por excelência” e “puro sentido” seriam apropriados para qualificar o modus operandi do inconsciente maquínico? Uma incursão pelas páginas iniciais de O Anti- Édipo – seção I.4.3, O real e a produção desejante: sínteses passivas – já é suficiente para respondermos não a essa pergunta. Certas passagens atestam que o desejo é o “[…] conjunto de sínteses passivas que maquinam os objetos parciais, os fluxos e os corpos, e que funcionam como unidades de produção” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 43). O desejo é autoprodução inconsciente do real imanente às condições concretas de existência objetiva. O real deleuzo-guattariano não é uma instância impossível, nem coisa em si incognoscível. Ele é, ao contrário, pura potência “[…] que o desejo abraça […] e a reproduz de uma maneira tanto mais intensa quanto menos necessidade ele tem” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 23).
Consequentemente, ao desejo nada falta. Aliás, a falta é contraproduzida pela instância de antiprodução que incide sobre as forças produtivas apropriando-se delas. Nesse sentido, ela nunca é primeira em relação à produção desejante, nem mesmo atua como causa. “A falta é que vem alojar-se, vacuolizar-se, propagar-se de acordo com a organização de uma produção prévia” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 25).
Esse conjunto de enunciados evidencia que a noção de falta e os sentidos veiculados por ela – coisa em si incognoscível e causa – não se alinham à teoria antiedipiana do desejo. Por parte de Deleuze e Guattari isso não é um problema já que, em conformidade com o que dissemos até agora, é nas apropriações parciais, nas bricolagens conceituais que o pensamento deleuzo-guattariano realiza o que lhe é de mais próprio.
O mesmo não pode ser dito sobre Serge Leclaire. Na mesa redonda coordenada por François Châtelet em 1972, o então discípulo de Lacan discorda de Deleuze e Guattari quanto à decisão de conferir autossuficiência ao objeto a. Em uma referência implícita à teoria dos quatro discursos, trabalhada no livro 17 do Seminário de Lacan, Leclaire salienta que “[…] o conceito de objeto ‘a’ em Lacan faz parte de um quaternário que compreende o significante, pelo menos duplo (S1 e S2 ), e o sujeito (S barrado)” (Deleuze, 1972/2010, p. 286). Além disso, não há para ele como “[…] sustentar uma tese, um projeto, uma ação, uma ‘coisa’, sem introduzirem em algum lado uma dualidade e tudo o que acarreta” (Deleuze, 1972/2010, p. 286).
Pelo lado de Lacan, as utilizações nada ortodoxas e as imbricações inventivas que Deleuze e Guattari fazem de seu ensino são mais complicadas de qualificar. Considerando sua reação inicial à publicação de O Anti-Édipo, essas apropriações são no mínimo mal vistas. Porém, se dermos crédito ao que Catherine Millot disse a François Dosse (2010), tendemos a conduzir nossas especulações para outra direção. A antiga aluna da Escola de Paris insinua que as críticas antiedipianas causaram algum impacto no ensino lacaniano, especialmente na relativização do Édipo e na teoria dos nós borromeanos. Provavelmente, as conversações entre esses autores não se deram por uma via de mão única. Levando em conta o seminário Nomes-do-pai de 1963 – e, mesmo antes disso, o seminário 6 – constamos que o próprio Lacan já relativizava a função do Outro. Algo, portanto, que vai ao encontro, em certa medida, à problematização antiedipiana sobre o tema.
Palombini (2009) corrobora essa hipótese ao propor que “[…] o debate mantido entre esses autores − mesmo quando não explicitado − marcou de forma decisiva as suas produções, dando mostras da efetividade de uma interlocução que, ao pôr em causa suas diferenças, fez-se produtora de movimentos e transformações” (Palombini, 2009, p. 39).
De qualquer modo, mesmo que Lacan não tenha dado importância ao O Anti-Édipo, não deixaremos de fazer uma provocação. Deleuze e Guattari agem como autênticos lacanianos quando não imitam Lacan. Ao menos é o que aparenta ser quando nos deparamos com ditos lacanianos como o seguinte:
Então relaxem, sejam mais naturais quando vocês recebem alguém que vem lhes pedir análise. Não se sintam tão obrigados a darem uma de importante. Mesmo como bufões, vocês estão justificados. Só precisam assistir à minha televisão. Sou um palhaço. Tomem exemplo nisso e não me imitem! A seriedade que me anima é a série que vocês constituem. Vocês não podem ao mesmo tempo estar nela e sê-la (Lacan, 1974/2017).
Chistes à parte, tudo isso mostra como as relações entre esses autores possuem nuances sofisticadas e resistentes às categorizações estanques (oposição, semelhança ou identidade). O uso que Deleuze e Guattari fazem do objeto a não foge dessa regra. No caso em questão, no qual analisamos a maneira como o objeto a se conecta à pragmática do desejo, notamos que o uso criativo do construto lacaniano enfatiza apenas certos aspectos.
Couto e Rabinovich (2001) explicam que o objeto a é um conceito complexo utilizado por Lacan em um número considerável de articulações teóricas. Enquanto causa, ele provoca o desejo sem ser, entretanto, capturado por qualquer tentativa de significação. Ele é objeto metonímico circulante entre os significantes, o resíduo da operação que permite ao sujeito inserir-se na ordem simbólica. É justamente por ser um resto do sistema significante e ao mesmo tempo ser irredutível a ele que objeto a funciona como causa de desejo. Ele é um construto lógico pelo qual se tenta explicar aquilo que move o desejo sem ser movido – o motor imóvel do desejo lacaniano.
A problemática do objeto a remete à concepção de falta, à ideia de que desejamos aquilo que no outro é também falta. Ele é o resto, o quociente produzido pela incidência da falta no real. O termo pode ser entendido, ainda, como ponto de perda que se se articula com a repetição da cadeia significante. Ele implica em um mais-de-gozar intrinsecamente ligado à falta constitutiva (Couto & Rabinovich, 2001).
Sob esse ângulo, o objeto a nada tem a ver com a máquina desejante, na medida em que ela não comporta qualquer coisa que possa ser qualificada de falta. A ideia de falta é inapropriada não por conter alguma característica que em si a desqualifique. Ela somente não se aplica à maneira como Deleuze e Guattari problematizam o desejo, nem às condições sob as quais ele é formulado.
No paradigma da imanência, não faz sentido falar em retorno à origem, nem descrever as etapas ou os tempos lógicos de processos constitucionais quaisquer. A primeira frase de O Anti-Édipo – “Isso funciona em toda parte” – é providencial nesse sentido, porque define o desejo enquanto processo em funcionamento. No registro processual, o importante é saber como isso funciona, como as máquinas agenciam suas conexões e não o porquê. “O inconsciente não levanta problema algum de sentido, mas unicamente problemas de uso. A questão do desejo não é ‘o que isso quer dizer?’, mas como isso funciona” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 149).
No entanto, o fato de a falta não dizer respeito ao funcionamento maquínico não faz dela um objeto descartável. Ao contrário, há em O Anti-Édipo inúmeras referências não somente a ela, mas também ao significante e à circunscrição do desejo ao campo do Outro. Esse polo é problematizado em muitos contextos e, com mais frequência, pelo viés da sua utilização por terceiros. Há menos críticas dirigidas a Lacan nesse domínio, mas elas podem ser descritas e avaliadas.
POLO MOLAR-ESTRUTURAL
O esquema estruturante das formações molares, tal como é retratado no tópico IV.3.7, Estruturalismo, familismo e culto da falta, possui a mesma lógica que dá sustentabilidade à cadeia significante. Ele é agenciado pelo regime das disjunções exclusivas, das conexões globais e das conjunções biunívocas.
A unidade estrutural é o suporte no qual os signos devêm significantes e estão condicionados à ação do símbolo despótico ou significante mestre, “[…] que os totaliza em nome de sua própria ausência ou de seu próprio recuo” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 409). O funcionamento do desejo está condicionado à presença-ausência de um elemento/princípio que extrapola a cadeia e ao mesmo tempo reúne todos os significantes num conjunto do qual ele próprio não faz parte. Trata-se de “[…] um termo faltante, cuja própria essência é faltar” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 409). Em Lacan (1960b/1998) ele é designado da seguinte maneira:
Nossa definição do significante (não existe outra) é: um significante é aquilo que representa o sujeito para outro significante. Esse significante, portanto, será aquele para o qual todos os outros significantes, todos os demais não representam nada. Já que nada é representado senão para algo. Ora, estando a bateria dos significantes, tal como é, por isso mesmo completa, esse significante só pode ser um traço que se traça por seu círculo, sem poder ser incluído nele. Simbolizável pela inerência de um (-1) no conjunto dos significantes (Lacan, 1960b/1998, p. 833).
A estrutura se organiza em torno de um termo faltante, ou antes, de um significante da falta:
É o significante eletivo da ausência de liame, o falo, que reencontramos no privilégio único de sua relação com a essência da falta, emblema da diferença por excelência, irredutível, a dos sexos… Se o homem pode falar, é porque num ponto do sistema da linguagem há uma garantia da irredutibilidade da falta: o significante fálico (Leclaire, 1965/1998, citado por Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 410).
Ideia replicada por Roudinesco (1967) quando diz que a organização estrutural dos significantes em Lacan depende da ação de um significante mestre.
Em Extrações lotéricas, neste texto, vimos que o inconsciente lacaniano não se confunde com os significantes da cadeia, mas é definido pela articulação estrutural a que esses elementos estão submetidos. Naquele tópico, mostramos como o texto de Lacan é utilizado para dar ênfase ao polo da “inorganização” real na sua teoria do desejo. Aqui, diferentemente, o foco é o polo da organização molar “[…] com suas exclusões derivadas da função do significante […]” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 434). Os autores alegam que a grade de leitura estrutural-significante não passa de um uso transcendente das sínteses do inconsciente discrepante com sua natureza esquizo-processual. Esse tipo de formalização subordina o inconsciente ao ordenamento simbólico e é característico da etapa do ensino em que Lacan afirma coisas como: o desejo, assim como uma usina, só se instala “[…] ali onde certas coisas privilegiadas se apresentam na natureza como utilizáveis, como significantes […]. É preciso que já se esteja no caminho de um sistema tomado como significante” (Lacan, 1956-1957/1995, p. 44). Ou ainda: mesmo os ditos objetos parciais “[…] já são considerados como outra coisa além do que são. São objetos que já estão trabalhados pelo significante, e que aparecem submetidos a operações cuja estrutura significante é impossível de se extrair” (Lacan, 1956-1957/1995, p. 53).
Deleuze e Guattari discordam de que o conjunto das leis estruturais deva ser tratado como conditio sine qua non da origem e da manutenção das maquinações desejantes ou como atributo formal a-histórico. Para eles, o esquema subjacente ao postulado do significante destacável da cadeia estrutural é um derivado obsoleto do despotismo bárbaro.
Lemos em O significante despótico e os significados do incesto, item III.7.5, que o significante tem origem imperial. O ato de inscrevê- lo em um sistema imanente à língua, “[…] servir-se dele para evacuar os problemas de sentido e de significação, solvê-lo na coexistência de elementos fonemáticos em que o significado não é mais do que o resumo do valor diferencial respectivo destes elementos entre si […]”, não elimina as pistas de sua descendência (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 274).
A vinculação da cadeia a um significante mestre atualiza no campo do inconsciente aquilo que no modo de produção asiático Deleuze e Guattari designam de Urstaat. Podemos seguir os rastros desse despotismo oriental – modelo abstrato e de idealidade que todo Estado aspira ser – quando, por exemplo, ao ler Saussure pelo prisma de Jakobson, Lacan destaca da cadeia um significante, um termo transcendente, marcador de ausência ou de lugar vazio, que opera “[…] as dobragens, os assentamentos e subordinações necessárias, donde escorre por todo o sistema o fluxo material inarticulado que ela talha, opõe, seleciona e combina: o significante” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 274-275).
O significante déspota sobrecodifica a cadeia/território, sendo o significado seu efeito e não o que ele designa ou representa. A estruturação do inconsciente é, portanto, o passo derradeiro de um processo que atualiza o arcaísmo do símbolo despótico na forma de um significante da falta do símbolo zero. Podemos reconhecer nesse corolário uma referência ao pensamento de Lévi-Strauss interpretado por lacaniano. “Sem dúvida, Claude Lévi-Strauss, comentando Marcel Mauss, quis reconhecer nisso o efeito de um símbolo zero. Mas é do significante da falta desse símbolo zero, antes, que nos parece tratar-se em nosso caso” (Lacan, 1960b/1998, p. 836).
Logo, ao utilizar a lógica estrutural, a psicanálise descaracteriza as forças produtivas do inconsciente, fazendo com que antigas crenças – Urstaat – sejam reterritorializadas “[…] sobre o divã, na representação de Édipo e da castração” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 415). Há, sem dúvida, outras passagens nas quais Deleuze e Guattari problematizam as relações entre Édipo, desejo e estrutura em Lacan. Eles fazem isso a partir de perspectivas distintas que, não obstante, podem ser agrupadas em dois eixos temáticos.
O primeiro é constituído por fragmentos advindos de diferentes períodos do ensino de Lacan e são utilizados para demonstrar que ele levou o Édipo ao seu ponto de autocrítica. Tenta-se mostrar que Lacan contribui para colocar em xeque algumas premissas que dão legitimidade ao agenciamento familista. A consecução desse objetivo se dá pela avaliação da implicação do desejo no campo social e pela formalização do mito freudiano.
O segundo eixo é composto por problemas teóricos atribuíveis a Lacan que de certo modo tornam viáveis as interpretações estritamente formais do seu ensino. Analisaremos, por ora, as nuances teóricas pertinentes ao duplo viés temático do primeiro eixo.
Autocrítica de Édipo por meio da implicação do desejo no campo social
O conceito de máquina em O Anti-Édipo estabelece a identidade de natureza entre o desejo e o campo social. As diferenças existentes entre esses termos decorrem das modalidades descritivas que utilizamos para analisá-las. Assim, o uso que Deleuze e Guattari fazem das teorias – inclusive da psicanálise lacaniana – é sensível às variações dos níveis analítico-descritivos. No âmbito das máquinas sociais, as conversações com Lacan se conectam com temas políticos, econômicos, culturais. Na seção III.11.1, A aplicação. Reprodução social e reprodução humana. As duas ordens de imagens, elas são utilizadas como parte da estratégia argumentativo-genealógica que tenta abalar as bases sob as quais se sustenta o agenciamento familista.
A seção mencionada trata dos funcionamentos dos modos de produção (máquinas sociais), dos seus respectivos socius e das condições que tornam possível a emergência, a consolidação e a perpetuação do familismo. As máquinas territorial e despótica operam em consonância com as máquinas de reprodução social, econômica e humana. No modo de produção capitalista, no entanto, o socius devém exclusivamente econômico sob a forma de capital-dinheiro. A máquina civilizada apropria-se das forças e dos meios de produção como quantidades abstratas convergindo-as em força de trabalho ou capital (constante, variável, filiação, aliança…). O capital toma para si as relações de aliança e de filiação por meio da privatização da família. O fato de a família ser colocada fora de campo não a impede de participar ativamente dos processos sociais. Ao contrário, essa é a “[…] sua maior oportunidade social, porque é a condição sob a qual todo o campo social poderá aplicar-se à família” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 350).
O capitalismo preenche seu campo de imanência com imagens que só figuram alguma coisa e são reprodutivas quando incidem sobre as pessoas privadas. Tal operação faz das pessoas imagens de segunda ordem, simulacros que representam a imagem de primeira ordem das pessoas sociais. Essas pessoas privadas (imagens de imagens) compõem o microcosmo no qual pai, mãe e filho transformam-se em simulacros das imagens do capital, isto é, objetos de aplicação da axiomática social. Na família, “[…] cada um tem um pai e uma mãe a título privado, é um subconjunto distributivo que simula para cada um o conjunto coletivo das pessoas sociais, que fecha o domínio e emaranha suas imagens” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 351).
Édipo é o resultado da aplicação das imagens sociais de primeira ordem às imagens privatizadas das famílias de segunda ordem. Ele é o conjunto de chegada, nossa formação colonial íntima que responde a uma formação social específica. Tudo está arranjado de antemão, pois “[…] o campo social em que cada um age e padece como agente coletivo de enunciação, agente de produção e de antiprodução, assenta-se sobre Édipo, no qual cada um acha-se agora preso no seu canto […]” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 352).
Um dos argumentos familistas – II.5.8, Desde a infância – induz-nos a crer que haveria um estado indiferenciado anterior à constituição do inconsciente, no qual o real, o imaginário e o simbólico estariam misturados. No esquema em questão, a linha temporal dos acontecimentos inicia-se com um momento pré-edípico das etapas mais precoces da personalidade restrito às relações com a mãe. Em seguida, estipula-se um segundo começo – o próprio Édipo com a lei do pai – para, enfim, invocar a latência como um após, um a partir do qual começa o além.
Deleuze e Guattari confrontam esse viés lógico-temporal-linear com uma concepção que situa as produções social e desejante em um mesmo plano de imanência. Eles rompem com o modelo das sucessões e das transições de estados – natureza x cultura, por exemplo – em proveito da filosofia do acontecimento. O aparente desprezo dos autores pelos regimes teóricos que se ancoram em princípios genéticos não decorre do fato de duvidarem de sua existência, mas por julgarem que os fatores determinantes dos investimentos libidinais são sempre atuais. Eles reforçam essa tese aproximando seu conteúdo à interpretação que Lacan (1953/1987) faz do caso do homem dos ratos. Em “O mito individual do neurótico” lemos:
É assim, então, que se apresenta a constelação familiar do sujeito. Seu relato sai, pedaço por pedaço, ao longo da análise, sem que o sujeito o vincule de forma alguma com o que quer que seja que aconteça de atual. É preciso toda a intuição de Freud para compreender que esses são os elementos essenciais do desencadeamento da neurose obsessiva. O conflito mulher rica/mulher pobre reproduziu-se, muito exatamente, na vida do sujeito, no momento em que o pai o impelia a esposar uma mulher rica e foi, então, que a neurose, propriamente dita, desencadeou-se (Lacan, 1953/1987, p. 14).
Deleuze e Guattari extraem dessas palavras – apenas aludidas, mas replicadas em diferentes partes do livro – consequências de grande impacto na concepção psicanalítica do desejo. Em IV.5.7, A teoria das “empregadas” em Freud, Édipo e o familismo universal. Miséria da psicanálise: 4, 3, 2, 1, 0, Lacan é considerado:
[…] o primeiro a sublinhar esses temas que bastam para pôr em questão todo o Édipo; e a mostrar a existência de um “complexo social” em que o sujeito tende ora a assumir seu próprio papel, mas ao preço de um desdobramento do objeto sexual em mulher rica e mulher pobre, ora a assegurar a unidade do objeto, mas, desta vez, ao preço de um desdobramento da “sua própria função social”, no outro extremo da cadeia (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 469-470).
O pensamento lacaniano sofre aqui uma torção – o polo das determinações simbólico-formais é rechaçado – para alinhar-se forçosamente à ideia de que o conjunto das determinações de um campo social não está subordinado a nenhum elemento transcendente (figurado como Édipo ou como falo). Com efeito, há processos de subjetivação que não se deixam compreender pela codificação edipiana, mas pelas tensões geradas pelos polos esquizofrênico e paranoico.
A ciência, por exemplo, está em princípio ligada à axiomática social. Nesse registro, ela atende às necessidades do mercado e da inovação tecnológica. Funcionando assim, a ciência ajusta-se e contribui para criar e consolidar os parâmetros de normalização. Mas há também o polo esquizo-revolucionário que agencia os fluxos do conhecimento, linhas que fogem através da axiomática social engendrando signos desterritorializados. No domínio da experimentação inventiva, o conflito libidinal entre o elemento paranoico-edipianizante e o elemento esquizo-revolucionário pode resultar em um drama específico do cientista. Deleuze e Guattari remetem-nos ao texto de Lacan “A ciência e a verdade”, no qual lemos:
Existe o drama, o drama subjetivo que cada uma dessas crises custa. Esse drama é o drama do cientista. Tem suas vítimas, das quais nada diz que seu destino se inscreva no mito do Édipo. Digamos que essa questão não é muito estudada. J. R. Mayer, Cantor, não vou fazer a lista de laureados desses dramas que às vezes chegam à loucura, onde logo surgiriam nomes de pessoas vivas: onde considero que o drama do que se passa na psicanálise é exemplar. E afirmo que ele próprio não pode aqui incluir-se no Édipo, exceto para questioná-lo (Lacan, 1966/1998, p. 884).
Essa passagem serve de base para a afirmação: “Lacan tem razão em dizer que, em função das crises e dos cortes da ciência, há um drama do cientista que por vezes o leva à loucura, e que, ‘neste caso, ele não incluiria a si mesmo no Édipo sem o pôr em causa’, consequentemente” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 138).
Notemos que o drama do cientista é compreendido de maneira distinta pelos autores, a começar pelo título de uma das seções de O Anti-Édipo no qual ele é tematizado: Arte e ciência, seção IV.5.11. Para Deleuze e Guattari, o drama serve de argumento para validar a tese segundo a qual cada criança é um pequeno Cantor a questionar a família como ente expressivo. Segundo eles, na ordem da produção tudo é anedipiano, já que:
[…] até o bebê nos seus jogos e suas comidas, nas suas cadeias e meditações, se encontra já preso a uma produção desejante atual, em que os pais desempenham o papel de objetos parciais, de testemunhas, de relatores e agentes no decorrer de um processo que os transborda por todos os lados e que põe o desejo numa relação imediata com uma realidade histórica e social (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 138).
Mesmo na psicose, o complexo familiar é um simples indutor desprovido de qualquer papel organizador. O Édipo invade a consciência tão somente para dissolver-se e conectar-se aos investimentos intensivos da realidade histórica, política e cultural. A edipianização do psicótico consiste em impor a ele uma organização. Deleuze e Guattari optam por uma formulação diferente do problema: “[…] haveria como que dois grupos, os psicóticos e os neuróticos, aqueles que não suportam a edipianização e aqueles que a suportam e mesmo se contentam com ela, evoluindo nela” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 168).
Para compreendermos essa luta temos que considerar a família como dispositivo que não cessa de inscrever-se no desejo. Enquanto aparelho de captura, “[…] a família opera uma vasta captação de forças produtivas, desloca e reorganiza à sua maneira o conjunto dos cortes que caracterizam as máquinas do desejo” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 169).
Em contrapartida, a máquina explode as determinações propriamente familiares enquanto a libido investe um campo de desejo social. Isso não quer dizer que a constelação doméstica não exerça um papel inconsciente. Uma das formas de ela se efetuar é análoga ao que embriologistas dizem a propósito da gênese e do desenvolvimento do ovo. Deleuze e Guattari utilizam as noções de estímulo e de organizador para estabelecer um paralelo entre os dois processos e propor o seguinte: “[…] os pais são estímulos de valor qualquer que desencadeiam a repartição dos gradientes ou zonas de intensidade sobre o corpo sem órgãos […]” e o campo social do desejo é o organizador “[…] que designa as zonas de intensidade, com os seres que as povoam, e determina seu investimento libidinal” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 472).
Para Lacan, diferentemente, o drama vivenciado por Cantor decorre do fato de ele não se inscrever no destino do Édipo. Trata-se do drama do psicótico, cuja estrutura formal a psicanálise desvela como processo resultante da foraclusão do operador lógico-funcional nome-do-pai. Essas especificidades quase não são abordadas ou polemizadas no diálogo direto com Lacan, mas estão presentes, principalmente, nas críticas dirigidas às obras dos seus discípulos e comentadores. De um modo geral, prevalece com Lacan uma relação positivo-construtiva. Todavia, em se tratando de levar Édipo ao seu ponto de autocrítica pela via molar-estrutural, há variações que avaliaremos a seguir.
Nas seções II.6.3 (O sentido é o uso), IV.3.2 (Contra o mito e a tragédia), IV.3.7 (Estruturalismo, familismo e culto da falta), a expressão levar o Édipo ao ponto de sua própria autocritica surge de maneira quase inalterada. A fórmula é utilizada para qualificar a tarefa comum, mas não idêntica, realizável por agentes distintos. Dentre eles destacamos respectivamente: a esquizoanálise, Henry Miller e Lacan. Na seção O sentido é o uso, por exemplo, ela está circunscrita em um contexto argumentativo no qual Deleuze e Guattari definem a esquizoanálise como uma análise simultaneamente transcendental e materialista “[…] que leva à crítica de Édipo, ou leva Édipo ao ponto de sua própria autocrítica” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 150).
Nos três casos citados, notamos que a expressão é empregada em um sentido comum, mas existem nuances teóricas que merecem ser explicitadas. Por parte da esquizoanálise, temos que ter em mente que o Édipo é “[…] uma mistificação do inconsciente que só triunfou entre nós por ter montado suas peças e suas engrenagens através das formações anteriores” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 232). Ele é um agenciamento sócio-histórico cujo avesso é o inconsciente Real, maquínico e produtivo, que a esquizoanálise explicita por meio da reversão do teatro da representação. Sendo assim, de que maneira Lacan contribui com essa matéria? Identificamos dois tipos de contribuições. O primeiro é constituído por um conjunto de referências explícitas e implícitas a aspectos esparsos do ensino lacaniano. O segundo tipo de contribuição gira em torno da temática da formalização do inconsciente.
Ocorrências do primeiro tipo são localizáveis em partes dispersas de O Anti-Édipo e pertencem aos diferentes momentos do ensino de Lacan. No item II.8.2, A razão inversa, os autores fazem referência ao texto de 1938, A família. Eles compartilham com Lacan a inquietação diante do fato de que “[…] Édipo tenha sido ‘descoberto’ na neurose, na qual estaria latente, e não na psicose, na qual, ao contrário, estaria patente” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 167).
Em, II.5.10, Vergonha da psicanálise em história, uma fala do seminário 17 é reproduzida sem indicação bibliográfica. A referência é feita no momento no qual Deleuze e Guattari defendem a tese de que o Édipo possui um caráter contingencial sendo nada mais que um dispositivo típico dos grupos sujeitados “[…] onde a ordem estabelecida é investida nas suas próprias formas repressivas” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 142). Eles partem da prerrogativa de que não são as formas do grupo sujeitado que são determinadas pelas identificações edipianas, mas, ao contrário, são as aplicações edipianas que utilizam as determinações do grupo sujeitado como ponto de partida.
Na percepção dos autores, o raciocínio que justifica essa inversão é análogo ao empregado por Lacan em O avesso da psicanálise. Na lição do dia três de março de 1970, Édipo e Moisés e o pai da horda, ele afirma que a segregação é a única origem da fraternidade. “Só conheço uma única origem da fraternidade – falo da humana, sempre o húmus –, é a segregação” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 107).
Esse enunciado faz parte do comentário de Lacan (1969-1970/1992) sobre o mito da instituição da cultura descrito Freud em “Totem e tabu”. Ele pontua certas inconsistências contidas na narrativa freudiana, tendo como contraponto a tragédia sofocliana.
Seja como for, eles se descobrem irmãos […]. Depois decidem, todos em uníssono, que não vai se tocar nas mamãezinhas. Pois além do mais há mais de uma. Poderiam trocar, pois o velho pai tem todas elas. Poderiam dormir justamente com a mãe do irmão, já que são irmãos apenas por parte de pai. Ninguém parece ter-se pasmado nunca com essa coisa curiosa – a que ponto Totem e tabu nada tem a ver com o uso da referência sofocliana (Lacan, 1969-1970/1992, p. 107).
Deleuze e Guattari contestam a crença de que a segregação seja uma consequência de Édipo, algo “[…] subjacente à fraternidade dos irmãos a partir da morte do pai”. Eles concordam com Lacan, mas não pelas mesmas razões, que ocorre justamente o contrário, ou seja, é a segregação que se constitui o fundamento de Édipo “[…] na medida em que o campo social só se assenta sobre o liame familiar no caso de se pressupor um enorme arcaísmo, uma encarnação da raça em pessoa ou em espírito – sim, sou um de vocês…” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 142).
A problematização que Lacan faz sobre o uso freudiano do Édipo no seminário mencionado lhe serve, por sua vez, para elucidar a estrutura simbólica do inconsciente. Os autores de O Anti-Édipo atribuem a essa atitude um valor relativo e, por que não, ambíguo. Expliquemos melhor o que queremos dizer com isso.
Na seção II.4.5, Será que a fronteira passa entre o simbólico e o imaginário?, a concepção simbólico-estrutural do inconsciente é avaliada positivamente. Deleuze e Guattari retêm do diálogo com Lacan um excerto extraído de “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, formado pela junção dos seguintes enunciados: “O Édipo, todavia, não pode manter-se indefinidamente em cartaz em formas de sociedade nas quais se perde cada vez mais o sentido da tragédia” (Lacan, 1960b/1998, p. 827); e “Mas um mito não se basta em não sustentar nenhum rito, e a psicanálise não é o rito do Édipo” (Lacan, 1960b/1998, p. 833). Entendamos o sentido dessas citações tomando como ponto de partida o texto de Lacan.
Em “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, essas alegações fazem parte da estratégia argumentativa que Lacan desenvolve a partir da seguinte pergunta: “Será porventura preciso que se alie a prática, que em algum momento talvez adquira força de uso, de inseminar artificialmente as mulheres, desrespeitada a proibição fálica, com o esperma de grandes homens, para que extraia de nós um veredicto sobre a função paterna?” (Lacan, 1960b/1998, p. 827).
Ao levantar essa questão, ele quer estabelecer a maneira mais apropriada de compreendermos a função paterna. Para Lacan, as respostas para o problema não devem ser buscadas nos âmbitos das ciências biológicas, nem no mito grego como, até então, fizera a psicanalise freudiana. Em relação ao último viés teórico-interpretativo, o incômodo de Lacan é tamanho ao ponto de Miller (1991/1997) afirmar que existem no seu ensino “[…] todos os elementos de um artigo que poderíamos intitular: ‘O Édipo contra a psicanálise’ […]” e que “[…] com o Édipo, a psicanálise houvesse passado para uma forma religiosa […]” (Miller, 1991/1997, p. 425). O Édipo freudiano é demasiado trágico para que possamos transpô-lo para nossa cultura sem cometermos anacronismos.
A alternativa lacaniana para esses entraves teóricos é encontrada na articulação da linguística com a matemática. O resultado disso é a transformação do Édipo em uma estrutura formal dependente daquilo “[…] que parece desenrolar-se mais livremente no diálogo psicanalítico, depende, de fato, de embasamento redutível a algumas articulações essenciais e formalizáveis” (Lacan citado por Deleuze, & Guattari, 1972/2010, p. 352).
Nesse modelo, o pai morto de Freud – de “Totem e tabu” – adquire o estatuto simbólico de Nome do pai, “[…] termo que subsiste no nível do significante, que, no Outro como sede da lei, representa o Outro. É o significante que dá esteio à lei e se precipita em mensagens de interdito dirigidas à criança (Não te deitarás com tua mãe) e à mãe (Não reintegrarás teu produto)” (Lacan, 1957-1958/1999, p. 209).
Assim, é com a logicização de Édipo – promovida pela articulação entre a linguística estrutural e a matemática – que Lacan (1960b/1998) especifica a modalidade sob a qual a lei do pai se sustenta.
Que dessa autoridade da Lei o Pai possa ser tido como o representante original, eis o que exige especificar sob qual modalidade privilegiada de presença ele se sustenta, para-além do sujeito levado a ocupar realmente o lugar do Outro, ou seja, a Mãe. A pergunta, portanto, é afastada (Lacan, 1960b/1998, p. 828).
Porém estaria Lacan respondendo efetivamente à pergunta ou “[…] apenas adiando a questão”? (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 116). Conforme a argumentação desenvolvida até agora, temos indícios suficientes para concordar com a primeira opção, isto é, Lacan contribui para levar o Édipo ao seu ponto de autocrítica. No entanto, os acoplamentos lacanianos nessa temática comportam nuances que, à primeira vista, também tornam viáveis as interpretações estritamente formais do seu ensino. Deleuze e Guattari indicam essa possibilidade – segundo eixo do nosso esquema – quando, por exemplo, problematizam na seção III.7.8, Ainda não é Édipo:
E será sempre esta a força de Lacan, ter salvo a psicanálise da edipianização furiosa a que ela ligava seu destino, ter procedido a esta salvação, ainda que à custa de uma regressão, mesmo que à custa de manter o inconsciente sob o peso do aparelho despótico, de reinterpretá-lo a partir deste aparelho, a lei e o significante, falo e castração sim, Édipo não! — a era despótica do inconsciente (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 287).
Sob o viés da teoria do Urstaat, a resposta lacaniana ao problema edipiano mostra-se incipiente. Essa impressão ganha força quando consideramos o que Deleuze e Guattari dizem em Édipo e a recapitulação dos três estados, seção III.11.3. Eles situam Édipo na história universal das máquinas sociais definindo-o como um dispositivo que recapitula as três formas de Estado. Incialmente, Édipo se prepara ou se instaura na máquina territorial como limite vazio inocupado. Em seguida, ele se forma na máquina despótica como limite ocupado simbolicamente – Urstaat – para, finalmente, se efetuar na máquina capitalista. “Eis por que Édipo junta tudo, tudo se reencontra em Édipo, que é certamente o resultado da história universal […]” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 355).
Logo, Édipo nada seria se a máquina despótica não tornasse possíveis as causas formais da triangulação. A castração na ordem do significante despótico, como lei do déspota, é a condição formal das imagens edipianas. Trata-se de uma operação prodigiosa que funda o desejo na lei do déspota e introduz aí a falta. Por conseguinte, o que adianta Lacan queixar-se de não ter tido ajuda em seu esforço de “[…] sacudir o jugo de Édipo e levá-lo ao ponto de sua autocrítica […]” se, aparentemente, seu empreendimento confina o desejo no ordenamento estrutural-significante? Nesse sentido, Lacan estaria fazendo algo semelhante ao que é narrado na “[…] história dos resistentes que, querendo destruir um pilar, equilibraram tão bem as cargas de explosivo que o pilar saltou e recaiu em seu próprio buraco” (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 356).
Diante do exposto, podemos dizer que, se por um lado o polo estrutural-simbólico da teoria do desejo permite a Lacan superar inconsistências teóricas, aporias do Édipo freudiano, por outro ele engessa ainda mais a produção do desejo. Nesse caso, o inconsciente lacaniano não passa de um paralogismo – aplicação biunívoca – que faz da psicanálise uma axiomática aplicada. Estamos diante de mais uma evidência de que não devemos tomar a noção de polo como categoria estanque dotada de valor absoluto. O tópico que acabamos de analisar é paradigmático porque demonstra que o polo molar-estrutural deve ser considerado a partir de, pelo menos, dois pontos de vista. Além disso, se conectarmos esse esquema descritivo às reflexões pertinentes ao polo molecular do desejo ele se complica ainda mais. Pela via do objeto a Édipo é levado ao ponto de sua própria autocrítica, isto é:
[…] aquele em que a estrutura, para além das imagens que a preenchem e do simbólico que a condiciona na representação, descobre seu avesso como um princípio positivo de não-consistência que a dissolve: onde o desejo é revertido à ordem da produção, reportado aos seus elementos moleculares, onde nada falta a ele, porque ele se define como ser objeto natural e sensível, ao mesmo tempo em que o real se define como ser objetivo do desejo (Deleuze & Guattari, 1972/2010, p. 410-411).
Em síntese, diremos que as conversações de Deleuze e Guattari com Lacan são abrangentes e multifacetadas e não se pautam exclusivamente por supostas motivações afetivo-circunstanciais e por oposições binárias. Com efeito, existem divergências e controvérsias teóricas e elas são acirradas quando os interlocutores são os intérpretes do ensino lacaniano.
Considerações Finais
A análise das referências explícitas que Deleuze e Guattari fazem ao ensino de Lacan em O Anti-Édipo demonstrou que elas fazem parte de uma complexa rede de acoplamentos teórico-conceituais. Ao longo do nosso estudo vimos que as conexões antiedipianas com o ensino lacaniano não se enquadram facilmente nos esquemas tradicionais de tipificação, tais como oposição, relação e analogia. Não questionamos a possibilidade e a pertinência do desenvolvimento de reflexões dessa natureza. No decorrer da nossa investigação, aliás, apresentamos alguns argumentos e hipóteses que dão margem a essas interpretações.
Todavia, comparada a esse tipo abordagem, a nossa mostrou-se mais restritiva, já que procurou explicar as montagens que Deleuze e Guattari fazem com os construtos lacanianos em uma obra específica. Em O Anti-Édipo, o valor e o sentido dessa conversação estão atrelados a diferentes estratégias argumentativas e teorizações. Deleuze e Guattari reconhecem a abrangência e a complexidade do ensino lacaniano e, talvez por isso, mantêm-se cautelosos ao dirigirem-se à figura de Lacan. Isso não quer dizer que o psicanalista francês seja preservado, mas que prevalece com ele uma relação positivo-construtiva, uma atitude de apropriação livre das suas ideias. Em se tratando de Lacan, as críticas são menos numerosas, não se limitam aos Escritos e incidem com maior frequência sobre construtos setoriais revisitados por seus intérpretes.
No entanto, engana-se quem vê nessa conversação o gesto de “retorno a” Lacan ou a intenção de elaborar uma nova versão do seu ensino. Em O Anti-Édipo, os temas lacanianos são agenciados em engenhosas bricolagens compostas por peças, fragmentos conceituais extraídos de diferentes engrenagens teóricas. Eles se articulam com outros acoplamentos (nietzschianos, kantianos, marxianos, freudianos, kafkianos…) para compor uma concepção original do desejo-máquina. Nesse empreendimento, a teoria do desejo em Lacan é valorizada, especialmente, nos elementos que nela funcionam como índice do Real.
Hoje, provavelmente, a leitura de O Anti-Édipo não suscita nos psicanalistas a aversão e as controvérsias de outrora. Parte do que Deleuze e Guattari fizeram com o isso no início da década de 1970 – a reabilitação do real na teoria do desejo – parece coadunar com leituras contemporâneas do ensino lacaniano. Miller (2011), por exemplo, não vê problema em tratar os termos máquina e estrutura como sinônimos. “Quando dizemos estrutura, entendemos que para além dos fenômenos chegamos a uma máquina, a uma matriz da qual eles são as manifestações, os efeitos” (Miller, 2011, p. 78).
Apesar de o termo máquina não ser empregado nesse contexto no sentido antiedipiano, ele se insere em uma versão revisitada de os Escritos e dos Outros escritos de Lacan que trazem o real para o centro do debate. Esse tipo de aproximação não é meramente fortuito, haja vista o crescente interesse dos psicanalistas pelo ultimíssimo ensino de Lacan. Nesse cenário, investigar se as críticas antiedipianas se sustentam, amplificam ou se dissipam, quando comparadas com as ideais desenvolvidas por Lacan no período derradeiro do seu ensino, parece ser um empreendimento promissor.
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NOTAS
- Antes de iniciar, acrescento algumas informações técnicas acerca desta publicação: o título no SEO (Search Engine Optimization) do blog/Site está como “Deleuze e Guattari: Maquinando Lacan” devido ao tamanho requisitado para publicação, pois o original ultrapassa a quantidade permitida. O título original é: “Maquinando Lacan: uma análise dos usos que Deleuze e Guattari fazem do ensino lacaniano em O Anti-Édipo“, artigo produzido por Wagner Honorato Dutra e Luís Flávio Silva Couto, membros do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Publicado na Revista Tempo Psicanalítico, vol. 49, n.2, em 2017.