DA TRANSFERÊNCIA AO PARADIGMA ESTÉTICO: UMA CONVERSA ENTRE FÉLIX GUATTARI E BRACHA ETTINGER

Entre 1986 e 1988, traduzi para o hebraico alguns textos de Jacques Lacan. Acompanhei essas traduções com uma série de artigos sobre o desenvolvimento de sua teoria e as mudanças que ele inspirou em associações psicanalíticas na França, no início da década de 1950. Levando adiante essa série de artigos, entrevistei vários psicanalistas sobre o estado da psicanálise na França “pós Lacan”, entre eles Félix Guattari. Eu estava particularmente interessada em aprender algo sobre o que restou da transferência que os analistas desenvolveram em relação a Lacan, no contexto específico e extraordinário da cena parisiense, que, para mim, parecia ser caracterizada por um tipo peculiar de suscetibilidade, e até de violência (mais ou menos controlada). Isso me levou a pensar sobre o conceito de transferência em geral, e o que sobrou dela. A revista israelense de psicoterapia, na qual minha série de artigos e traduções apareceu em 1989–90*, julgou que não cabia publicar esta entrevista com Guattari, realizada na sua casa, em Paris, em 20 de junho de 1989. Por conseguinte, eu o submeti à revista da Associação Lacaniana de Israel, que também recusou a publicação. Então, em 1990, imprimi o texto em hebraico no meu ateliê, em sete fotocópias assinadas, sob o título “Analistas vivem em temor perpétuo”. Em 1994, reimprimi dez cópias do texto em hebraico e em francês sob o título “Le transfert, ou ce qu’il en reste” (Transferência, ou o que dela resta).

Bracha L. Ettinger

Bracha Lichtenberg Ettinger (BLS): Enquanto estudava as transcrições dos seminários de Jacques Lacan, encontrei uma passagem onde você diz algo mais ou menos assim: “Quando Lacan abandonou a Associação Psicanalítica Internacional e fundou a Escola Freudiana, rompendo assim com uma longa tradição do movimento psicanalítico, quando ele disse ‘eu fundo, como sempre, sozinho’, ele cometeu um ato que pesa sobre cada um de nós, exigindo–nos uma espécie de retorno, esquivando–se de certa maneira de suas responsabilidades. De forma similar, quando ele rebatizou algo que chegou até nós a partir do ‘objeto–parcial’ como ‘pequeno objeto a’, seu ato de denominação, sua suposição da paternidade sobre a reclassificação de uma noção, colocou–nos a todos em uma posição transferencial em relação à psicanálise pós Freud que ele mesmo pôs em prática. Como poderemos falar, depois desse ato? Seu efeito inibidor é tal, que a maioria de nós, certamente eu mesma, encontrou dificuldade em saber como proceder analiticamente em campos específicos que não exatamente lacanianos, ou que não seguem de perto o caminho aberto por ele. Temos dificuldade em falar sobre o que é nosso envolvimento na psicanálise. Ou melhor, nosso problema é que não queremos falar disso senão naquela forma assinalada por Lacan.”

Diante disso, Jeffrey Melman retrucou: “É difícil para mim me referir a isso. Eu não vejo o menor problema, não sinto a menor sombra.” Ao que você respondeu: “Tem sido assim há anos.”

Tive a impressão de que desde aquela época a ideia de uma situação de transferência duradoura preocupava-o, e de que você já estava maduro para uma ruptura. Desde então, passou muita água debaixo da ponte. Não quero trazer você de volta a Maio de 1968, quero apenas perguntar: você ainda é, hoje, de alguma forma, um analista “lacaniano”? Transferência: o que restou dela?

Félix Guattari (FG): Já não me defino mais como lacaniano. Você está certa, passou muita água debaixo da ponte – a corrente de toda uma vida. Hoje, eu me situo em um lugar muito diferente. Que o discurso seja lacaniano, junguiano ou adleriano, pouco importa. Tudo funciona. Tudo é aceitável. Chamo tudo isso de “discursos de referência que produzem subjetividade”. O que importa para mim é esclarecer os critérios que permitam ir além da oposição entre os diferentes tipos de discurso.

Não acredito na existência de uma subjetividade que não produza um texto narrativo. No entanto, não é o conteúdo do texto que é decisivo. O que é decisivo é a sua repetição. Há também a repetição do romance familiar, por exemplo, a repetição da fantasia. Eu não faço distinção entre o discurso lacaniano e sua prática, sua dimensão social. O inconsciente, tal como Lacan o formula ou de acordo com qualquer outra definição, é somente um modelo de produção de subjetividade que cria a si mesmo em e para um certo contexto, e é medido por sua função existencial. Para mim, as instâncias individuais, coletivas e institucionais trabalham conjuntamente na produção da subjetividade.

BLE: No contexto da oscilação entre as teorias da pulsão e as teorias das relações de objeto, como você enxerga estados emocionais que são genericamente interpretados como momentos em um processo transferencial? Mais especificamente, o que acontece em uma situação de transferência negativa? Você tem sido muito sensível aos efeitos negativos da transferência e às inibições que eles provocam.

FG: Em meu trabalho não foco a transferência. Meu papel consiste em ajudar o paciente a desenvolver meios de expressão e processos de subjetivação que não existiriam sem o processo analítico. Frequentemente, a transferência nada mais é que a oposição à análise, que os lacanianos tendem a usar de maneira manipulativa.

Os sentimentos do paciente resultam desse processo. Para mim eles são indícios do que está acontecendo no curso do próprio processo analítico, e não da libido primária. A clínica La Borde [onde Guattari trabalhou por toda sua vida profissional] oferece caminhos diferentes em direção à subjetivação. Isso não encoraja a criação de uma situação clássica de transferência. Então, para retomar nossa questão, “o que resta da transferência?”: há mecanismos transferenciais que concernem partes do corpo assim como máquinas não–pessoais. Mas os mecanismos transferenciais também dizem respeito à comunidade dos cuidadores, bem como a dos pacientes. Os mecanismos da transferência concernem a toda uma gama de atividades através das quais os pacientes se expressam, as quais nós como cuidadores tornamos possíveis e até encorajamos, e que contribuem para a produção de diversos focos de subjetivação.

Em relação ao que se chama de “transferência negativa”, quando se produz um fenômeno de resistência, em minha opinião pode-se interromper a análise a qualquer momento se não estiver funcionando. Não concordo com o mito de que tudo deveria continuar normalmente no caso de uma transferência negativa, mito que ajuda os analistas a se consolarem. Visto tratar-se da produção de novos focos de expressão e não da revelação de conteúdos preexistentes, eu concebo a minha participação ativa, bem como a de outros atores e elementos comunitários, como catalíticos. Ou meu trabalho é efetivo, e sou um bom catalisador, ou não, e eu não o sou, e nesse caso o processo precisa ser interrompido.

BLE: Sim, mas quando o analista opera no “campo”, ele está assumindo riscos imprevisíveis. Alguma coisa diretamente conectada à sua presença ativa, ao fato de que ele não se apaga no entorno, pode claramente não funcionar com certos pacientes.

FG: Em todo o caso, mesmo em um enquadramento terapêutico diferente, uma análise que não está funcionando depois de seis meses deve ser interrompida. Este é um processo patogênico.

BLE: Sua crítica à transferência o leva a várias direções. Primeiramente, você decompõe a transferência em inúmeras partículas conectadas com instâncias individuais, sociais, maquínicas e até cósmicas. Em seguida, você as dispersa entre diversas fontes. Você até transfere a localização de sua origem para o presente, preferindo isso a concebê-la como uma volta ao passado, de modo que talvez não reste grande coisa do conceito tal como o conhecíamos desde Freud. Mas tentemos simplificar e isolar abstratamente a relação terapeuta/paciente. De um lado você quer abster-se da transferência “lacaniana”, que você qualifica como manipuladora, e de outro você rejeita totalmente a transferência negativa, ou qualquer transferência que seja interminável. Na prática, quando você se depara com um paciente específico, o que você faz?

FG: Na clínica de La Borde, eu intervenho muito na prática, de muitas formas, me implico no nível social das atividades dos pacientes. Por isso é muito difícil falar de transferência isolada. O “face a face” ocorre no interior de um sistema institucional complexo. Levei certo tempo para me despojar do superego analítico coletivo. Os analistas vivem em um temor perpétuo. Eles se perdem na distância entre o discurso prático e o teórico, e não ousam tomar iniciativas.

BLE: O fato de você se implicar significa que os pacientes não são os únicos que precisam ser “produtivos”, e que você também precisa se renovar e criar. Nas relações de transferência, que eu denomino de matrixiais, posso ver a mudança que se opera em mim, enquanto analista, como um sinal de progresso no tratamento, que acontece na borda matrixial do espaço relacional existente entre eu e o paciente, mesmo que ele esteja temporariamente mal. Pode existir, portanto, uma situação temporária na qual o paciente não progride, e até se vire contra mim, e apesar de tudo acontece uma mudança e um desenvolvimento produtivo. Isso se dá porque as mudanças que cada participante atravessa nas suas relações matrixiais de metramorfose, tanto um em relação ao outro como nos seus espaços – borda comuns, não são necessariamente sincrônicas.

FG: Mas então você não considera o processo bloqueado, nem o toma como expressão de uma pulsão libidinal individual projetada sobre você. E, se você mesma avança, não interpreta o que está acontecendo como “resistência”, e não usa esse tipo de interpretação para justificar uma situação congelada e hostil duradoura, nem responsabiliza outra pessoa por essa situação, não é mesmo? Dado que você assume a produção e o crescimento de um estrato subjetivo comum do encontro, a partir de um estrato pré-natal/feminino partilhável, que o seu modelo teoriza como escapando da falocracia edipiana, o próprio conceito de transferência não teria que se transformar de acordo com isso?

BLE: Isso é verdade, passando do estrato fálico ao estrato matrixial cada silêncio e perturbação são diferentemente criativos – como na pintura. Torna-se evidente, através dos processos de criação da pintura, que ela não é um objeto. Perturbação como criação, interrupção de transmissão…

FG: E o silêncio. Nós vemos isso em sua pintura: que o objeto–parcial maquínico participa de uma acumulação das intensidades na criação de subjetividade. Ainda mais porque você não amontoa objetos para uma “instalação”. Ao invés disso, tudo se emaranha na pintura, intensidades são acumuladas para além de qualquer intencionalidade. Não é que o objeto–parcial humano seja perturbado por um objeto–parcial maquínico que supostamente o acossa. Melhor, a interferência ou a perturbação, elas mesmas, se tornam um “ritornelo”, como o silêncio. Em sua pintura, quando o objeto parcial histórico irrompe no processo que trata do indivíduo humano, ou quando o objeto–parcial corpóreo irrompe durante o processo que concerne ao objeto–parcial animal, essas emergências ao mesmo tempo perturbam e produzem a experiência estética, tornando-se ritornelo.

Embora eu não confunda arte e terapia, a esquizoanálise antiedipiana opera com uma complexidade que a análise freudiana não leva em conta. E por isso a esquizoanálise conduz a uma análise estética diferente. Pois ela não se limita ao individual e nem mesmo ao humano. A reflexão sobre a transferência deve levar em conta elementos etológicos, elementos incorporais, o devir-animal e o devir-planta, máquinas não-humanas, máquinas da subjetivação cultural como a mídia de massa, máquinas da ecologia e do ambiente. Isso porque a fantasia inconsciente lida com máquinas de toda sorte, não somente com aquelas que surgem do passado. A transferência, nesse sentido, tem a ver com a complexidade processual e com as possibilidades que não cessam de se desenvolver. A ênfase não está no passado. No curso de seu trabalho o analista se revela, reinventa-se e assume riscos. No lugar de interpretar a transferência, ele se apoia na produção do que se revelará como um novo foco polifônico da subjetivação, algo que não havíamos imaginado de início, de antemão.

O analista se volta para o fluxo do presente e para o futuro, enfatizando territórios existenciais e não o significante linguístico simbólico. Então, para retornar à sua questão, o analista que se implica pode fracassar, mas a “transferência negativa” e a “resistência”, ambas baseadas na análise de estruturas preexistentes, servem simplesmente para proteger a honra do analista.

BLE: As abordagens teóricas dominantes na França, desenvolvidas a partir do estruturalismo, giram em torno do significante linguístico, desconsiderando as ressonâncias não-discursivas e os percursos emocionais ligados a elas. O que elas desconsideram é aquilo que você denomina intensidades não-verbais, que traçam territórios existenciais e vias “páticas”?

FG: Sim. O significante linguístico não engloba todos os componentes que se conjugam na produção da subjetividade. Mas quero insistir, de uma maneira mais geral, a respeito da análise, na passagem de um paradigma científico para um paradigma estético. Em minha opinião, os jovens que hoje tentam aplicar os conceitos lacanianos na prática são simplesmente loucos. É um absurdo, isso é impossível. Em contrapartida, alguém como Françoise Dolto soube trabalhar sem se atolar na teoria terapêutica, ela era formidável.

BLE: O que você acha das divisões entre os analistas na França, da multiplicação dos grupos, dos terapeutas e dos pacientes? É um modelo muito particular que cria uma situação nova, cuja influência se faz sentir no exterior.

FG: Já nos tempos da Escola Freudiana, eu havia dito que era necessário fazer das divisões um princípio anual. Na Escola Freudiana cada um tinha seu próprio território. Havia enormes diferenças e aberturas. Mas no fim de sua vida, Lacan, velho e doente, não era mais dono de seus atos e pensamentos. Jacques-Alain Miller, que se ocupou de seus escritos, quis todo o poder para si, quis dominar tudo. Neste tipo de situação, as divisões são um meio para reencontrar a diferença e a abertura. Mas, além disso, penso que devemos aspirar a uma abertura ainda maior, para além do modelo de diversos agrupamentos pequenos. A análise precisa ir para fora, tornar-se um processo que coloca em questão todas as estruturas sociais, a família, a escola, a comunidade. Se a análise é realmente um processo de produção de subjetividade, então eu gostaria que um dia todas as professoras e os mestres fossem analistas.

BLE: Nesse caso, qual seria o sentido específico da análise?

FG: O seu sentido residiria em sua direção processual, na abertura processual, no ritornelo, entendido não como uma significação, nem como uma repetição eterna e petrificada, nem como uma fixação, mas no sentido existencial da autoafirmação.

BLE: Na sua abordagem teórica, a análise deveria levar em conta linhas de virtualidade que levam essa direção de criação para o futuro?

FG: É isso. O ritornelo mantém juntos os componentes parciais sem abolir sua heterogeneidade. Entre esses componentes estão as linhas de virtualidade, que nascem a partir do próprio acontecimento e se revelam no momento mesmo em que se criam, como se sempre já tivessem estado ali, com o tempo, ele mesmo, concebido como um foco de temporalização e mutação. O ritornelo confere assim um novo sentido à interpretação terapêutica.


Tradução de Ana Goldenstein Carvalhaes, Paula P. S. N. Francisquetti e Simone Mina. Publicado no Caderno de Subjetividades, 2012.

*A série de artigos e traduções, aos quais Bracha Lichtenberg Ettinger se refere na apresentação, foi publicada sob o título “Introduction to the Study of the Writings of Jacques Lacan, and to the Question ‘Who is the Analyst?”” em Sihot – Dialogue: Israeli Review of Psychotherapy, v. 3, n. 2, 1989, p. 194–207; v. 3, n. 3, 1989, p. 85–93; v. 4, n. 1, 1989, p. 44–53; v. 4, n. 2, 1990, p. 136–8; v. 4, n. 3, 1990, p. 212–6.

Félix Guattari: Da transferência ao paradigma estético [Entrevista]

*Félix Guattari foi psicanalista, teórico e militante francês. Trabalhou e viveu na clínica de La Borde, onde morreu em 1992. Escreveu Cartographies Schyzoanalytiques e Caosmose, e juntamente com Gilles Deleuze, O anti–Édipo e Mil Platôs, entre muitos outros.

Félix Guattari: Da transferência ao paradigma estético [Entrevista]

*Bracha Lichtenberg Ettinger é psicanalista e artista israelense, com formação em filosofia da arte. É conhecida sobretudo por sua teorização do “matricial”. Escreveu, entre outros, The Matrixial Borderspace e Copoiesis.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima