A ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA: FOUCAULT E PSICANÁLISE - por Rodrigo Cardoso Ventura
Na produção tardia de Michel Foucault, a partir da década de 80, ou como alguns gostam de chamar: no último Foucault, este se dedicou ao projeto de escrever a história da sexualidade. No terceiro volume deste projeto: História da Sexualidade III – O Cuidado de Si (1985), Foucault trabalha, a partir da antiguidade greco-romana, dois importantes conceitos: as técnicas de si e a estética da existência, que apontam para a possibilidade de criação de um estilo próprio, visando a produção de si mesmo como o artesão da beleza de sua vida, fazendo desta uma obra de arte.
Apesar do diálogo entre a obra filosófica de Foucault e a psicanálise ter sido pautado por críticas e questionamentos, este trabalho versa sobre a possibilidade de pensarmos, a partir do estabelecimento de uma articulação entre estes dois campos de saber, a experiência psicanalítica no sentido de “possibilitar ao sujeito a produção de um estilo para a sua existência”(BIRMAN, 1997, p. 43).
O que pretendemos com este trabalho é apenas levantar algumas hipóteses iniciais de pesquisa, enfatizando a clínica psicanalítica enquanto possibilidade de criação inventiva de novos modos de existência e estilos de vida, ou seja, de formas de subjetividade.
Na antiguidade greco-romana as técnicas de si ou técnicas de cuidado de si possibilitavam aos indivíduos a realização, por eles mesmos, de determinadas operações em seu corpo, em sua alma, em seus pensamentos e principalmente em suas condutas.
Estas técnicas eram procedimentos “prescritos aos indivíduos para fixar sua identidade, mantê-la ou transformá-la em função de determinados fins, isso graças a relações de domínio de si sobre si ou de conhecimento de si por si”¹. Elas representavam a prática de determinadas ações onde o próprio sujeito era o objetivo final destas.
Portanto, as técnicas de si devem ser entendidas como práticas, através das quais o homem não apenas determinava para si mesmo as regras de sua conduta, como também buscava modificar-se para alcançar a sua singularidade. A prática destas técnicas resultava em uma reflexão sobre os modos de vida e sobre as escolhas de existência de cada um.
Para o estabelecimento desta relação consigo era necessário instituir um trabalho de si sobre si mesmo, ou seja, um treinamento de si, que se realizava através de uma askésis (palavra grega que quer dizer: exercício, prática). Ou seja, era necessário “ocupar-se consigo” (epiméleia heautoû).
Entretanto, longe de implicar em qualquer tipo de renúncia de si mesmo e da realidade, como posteriormente Foucault aponta que aconteceu no cristianismo, na tradição filosófica inaugurada pelo estoicismo, a askésis era definida pela consideração progressiva de si.
O objetivo final da askésis não era preparar o indivíduo para uma outra realidade, mas de lhe permitir viver melhor na realidade deste mundo, sendo um processo de intensificação de sua subjetividade. A askésis estava intrinsecamente relacionada com o processo de subjetivação, constituindo-se como um motor capaz de movimentar e modificar a subjetividade.
Neste contexto, a prática ascética desafiava os modos de existência prescritos, representando uma forma de resistência social, uma vontade de singularizar-se e de afirmar a sua alteridade.
Esse treinamento de si caracterizado pela askésis, mais do que um exercício feito em intervalos regulares, era caracterizado por uma atitude constante de atenção e cuidado em relação a si próprio. Não era estóico quem ensinava ou praticava esporadicamente o estoicismo, mas quem vivia como um estóico.
Durante a antiguidade greco-romana, vários filósofos como: Sêneca, Epicuro, Epiteto e Marco Aurélio, dedicaram-se à prática destas técnicas de si, das quais se pode destacar: o exame de consciência, a escrita de si, a correspondência, a meditação, os procedimentos de provação e a interpretação dos sonhos.
Neste período, as técnicas de si eram práticas relacionadas com o cuidado com os atos e não com a preocupação com algum tipo de interioridade. Por exemplo, a técnica conhecida como exame da consciência que visava um domínio sobre as representações mentais, não tinha como objetivo descobrir a origem profunda ou o sentido oculto de uma ideia, mas sim entender a relação entre o que estava representado e si mesmo, e as implicações disto nas atitudes de um indivíduo. A ênfase estava sempre na atitude e não nas intenções.
Em toda a dinâmica que caracteriza a prática das técnicas de si, gostaríamos de enfatizar o aspecto da luta que se trava de si para consigo. Conforme ressalta Foucault:
Mas ela tem também uma função de luta. A prática de si é concebida como um combate permanente. Não se trata, simplesmente, de formar para o futuro um homem de valor. É preciso dar ao indivíduo as armas e a coragem que lhe permitirá lutar a vida inteira².
Duas metáforas eram frequentemente utilizadas para descrever esta postura combativa: a da “justa atlética”, que dizia que o indivíduo devia se comportar na vida como um lutador capaz de resistir aos acontecimentos que se podem produzir; e a da “guerra”, que apontava para a necessidade da alma estar sempre organizada como um exército pronto a enfrentar o inimigo.
A ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA
A estética da existência, que teve seu apogeu durante a antiguidade greco-romana, está diretamente relacionada com a criação de um estilo próprio, através da prática de técnicas de cuidado de si, e visa a constituição de si mesmo como o artesão da beleza de sua própria vida.
A estética da existência (ou artes da existência) não só abre a possibilidade de um caminho singular capaz de conduzir a ação de um indivíduo, como também produz mudanças neste indivíduo, quando Foucault afirma que:
As “artes da existência” devem ser entendidas como as práticas racionais e voluntárias pelas quais os homens não apenas determinam para si mesmos regras de conduta, como também buscam transformar-se e modificar seu ser singular, e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e que corresponda a certos critérios de estilo³.
Assim, a estética da existência, sob o signo do cuidado de si e da transformação da existência em uma espécie de exercício permanente, define os critérios estéticos e também éticos do bem viver.
Por isso, o tema da estética da existência ganha ainda mais importância quando é destacada a sua dimensão ética. Para Foucault, assim como para grande parte da tradição filosófica, o problema ético consiste em responder a questão de como se pode praticar a liberdade. A ética seria a prática racional e refletida da liberdade e a liberdade a condição ontológica da ética. Mas ético no sentido grego, como êthos, que é a maneira de ser e a maneira de se conduzir.
Para os gregos, ser livre era não ser escravo de ninguém e muito menos de si mesmo e de seus apetites. Segundo Sêneca: “ser escravo de si mesmo é a mais grave, a mais pesada de todas as servidões, […] é uma servidão assídua, isto é, pesa sobre nós sem cessar”4. Diferentemente dos cristãos, para os gregos o perigo residia na servidão e não na mácula.
Na cultura de si não existiam códigos exteriores e as regras de conduta deviam ser buscadas no próprio sujeito, na relação de si para consigo, enquanto uma ética do cuidado de si, fundada nas práticas de liberdade do sujeito.
Logo, a ética do cuidado de si concerne à maneira pela qual cada indivíduo constitui a si mesmo como sujeito de sua própria conduta, estando intimamente relacionada com os seus atos e suas ações para consigo e também para com os outros.
Na antiguidade, o cuidado de si não representava um solipsismo e nem estava em oposição ao cuidado com os outros. É fundamental destacar que o cuidado de si era indissociável das práticas sociais, estando intimamente relacionado com o cuidado com os outros.
O cuidado de si não é um convite a um tipo de inércia narcisista ou à inação, mas pelo contrário, este possibilita nos constituirmos eticamente como o sujeito de nossos atos. Antes que nos isolar do mundo, é o que nos permite nele nos situar e agir.
Desta forma, a estética da existência pensada como uma ética do cuidado de si, que se efetua em atos e ações para consigo e para com os outros, está implicada diretamente na produção inventiva de si (novas formas de subjetivação), fazendo da sua própria vida uma obra de arte, assim como também está implicada na capacidade de transformação do mundo que o cerca.
Judith Revel em seu comentário preciso nos afirma: “A estética da existência, na medida em que ela é uma prática ética de produção de subjetividade, é, ao mesmo tempo, assujeitada e resistente: é, portanto, um gesto eminentemente político”5.
BREVE CONCLUSÃO
O que interessava a Foucault com os estudos da sexualidade na era greco-romana não era um retorno nostálgico à antiguidade, mas, muito pelo contrário, o aqui e agora de nós mesmos. A análise de Foucault dos conceitos de técnicas de si e estética da existência nos fazem pensar, na atualidade, as condições de possibilidade para a afirmação de uma maneira singular de se fazer sujeito, ou seja, para a criação de modos de existência e estilos de vida (formas de subjetivação) dotados do direito à diferença e à variação, capazes de resistir e escapar dos dispositivos de captura e fixação de identidades individuais, transformando a vida em uma obra sempre por se fazer.
Para Foucault, que efetua uma crítica ferrenha ao conceito de sujeito soberano, fundador e universal, a subjetividade é pensada como um processo em movimento, sempre por se fazer. A subjetividade é processo e produto. Como processo está sempre em aberto e em movimento, em eterno desprendimento em relação a ela mesma, dirigida para a produção de novas e diferentes formas de subjetivação ou modos de existência (modos de agir, sentir e dizer o mundo). Como produto aponta para a noção de sujeito, instante único e sempre inacabado deste processo.
É justamente o processo de criação de modos de existência e estilos de vida (formas de subjetivação) que constitui o solo comum capaz de instaurar uma conexão possível entre a obra de Foucault e uma determinada leitura da psicanálise, inscrita no registro das intensidades do sujeito.
Em 1920, no texto Além do Princípio de Prazer, Freud conceitua uma pulsão sem representação, a pulsão de morte, e estabelece uma virada crucial em sua obra. Em oposição à pulsão de vida, já capturada pelo aparelho psíquico e ligada a uma cadeia de representações, a pulsão de morte é totalmente descolada de representações, muda, invisível, desordenada e pré-psíquica, ou seja, é pura força.
Esta inflexão teórica lança os holofotes da psicanálise na direção do conceito de pulsão como força e como exigência de trabalho, destacando os seus aspectos quantitativo e econômico, e implicando o sujeito no trabalho infinito e interminável de remanejar, ligar e simbolizar a força constante da pulsão, que não se esgota jamais.
Neste ponto é importante frisar que a valorização do fator quantitativo da energia que está presente no aparelho psíquico permeia toda a obra de Freud, desde O Projeto para uma Psicologia Científica (1895) até quase no fim de sua vida, no texto Análise Terminável e Interminável (1937), quando Freud destaca muito bem a importância do fator quantitativo na experiência clínica da psicanálise:
Mais uma vez nos confrontamos com a importância do fator quantitativo e mais uma vez somos lembrados de que a análise só pode valer-se de quantidades de energia definidas e limitadas que têm de ser medidas contra as forças hostis. E parece como se a vitória, de fato, via de regra esteja do lado dos grandes batalhões6.
Como consequências teóricas e clínicas da virada de 1920, podemos destacar, resumidamente: I) a crítica aos limites da representação e a colocação em primeiro plano do fator quantitativo no trabalho clínico da psicanálise; II) o abandono paulatino de um ideal de cura, afastando a psicanálise do discurso científico e inscrevendo a experiência clínica nos registros ético e estético da constituição de modos de existência que sejam capazes de lidar com os conflitos de força insuperáveis, incessantes e inerentes ao processo de subjetivação, sempre inacabado e por se fazer.
Portanto, trabalhando na positivação das intensidades do sujeito e na invenção de novas possibilidades de expressão destas intensidades no mundo, o trabalho da clínica psicanalítica deve possibilitar ao sujeito a produção de um estilo singular para a sua existência. Calcada nas idéias de estilo, autoria e criatividade, tão caras a qualquer tipo de arte, a psicanálise deve trabalhar no vir a ser da subjetividade, a partir da construção de “caminhos possíveis para que as forças pulsionais encontrem percursos de satisfação no universo psíquico e no campo da alteridade”7.
Nesta direção, a psicanálise está implicada tanto em uma dimensão estética da existência humana, não apenas no sentido de arte, mas principalmente no sentido de aísthesis (sensação), visto o prazer sentido na satisfação pulsional, quanto em uma dimensão ética desta existência, na medida em que responsabiliza este sujeito desejante na construção de um destino singular, a partir da invenção de si e de um mundo possivelmente melhor.
___________________________________________________________________
NOTAS:
1, Resumo dos Cursos do Collège de France – Subjetividade e Verdade (1980-1981) p. 109.
2. Resumo dos Cursos do Collège de France – A Hermenêutica do Sujeito (1981-1982). p. 124.
3. Ditos e Escritos V – O Uso dos Prazeres e as Técnicas de Si (1983). p. 198-199.
4. A Hermenêutica do Sujeito – Aula de 17 de Fevereiro de 1982. p. 332.
5. Michel Foucault – Conceitos Essenciais (2005). p. 44.
6. Análise terminável e interminável (1937). p. 256.
7. Estilo e Modernidade em Psicanálise – Sujeito e Estilo em Psicanálise (1997). p.67.
FONTE:
VENTURA, Rodrigo Cardoso. A estética da existência: Foucault e Psicanálise. Cogito, Salvador , v. 9, p. 64-66, 2008.