RACISMO: QUANDO O CORPO É MARCA E CAUSA DE EXCLUSÃO SOCIAL – Isildinha Baptista Nogueira

RESUMO: Em meu livro A cor do inconsciente (2021), reflito que a estrutura social acaba por se reproduzir no corpo humano, de forma a dar-lhe um sentido em particular, o que certamente varia de acordo com os mais diferentes sistemas sociais. Busquei investigar a dimensão psíquica do racismo partindo da hipótese de que a realidade histórico-social determina para os negros configurações psíquicas peculiares. Com base na teoria psicanalítica, procuro entender o modo como as significações que o racismo envolve se inscrevem psiquicamente para o negro e como elas produzem a dimensão simbólica do corpo negro e o ideal imaginário da brancura.

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Como enfrentar o racismo?

A condição de “ser negro” corresponde a uma categoria incluída num código social que se expressa dentro de um campo etno-semântico em que o significante “cor negra” encerra vários significados.

O signo “negro” remete não só a posições sociais inferiores, mas também a características biológicas supostamente aquém do valor das propriedades biológicas atribuídas aos brancos.

Não se trata, está claro, de significados explicitamente assumidos, mas de sentidos presentes, restos de um processo histórico-ideológico, que persistem

em uma zona de associações possíveis que podem, a qualquer momento, emergir de forma explícita. Se o que constitui o sujeito é o olhar do outro, como fica uma pessoa negra que se confronta com o olhar do outro que mostra reconhecer nela o significado que a pele negra traz enquanto significante?

Uma questão me ocorre: será possível pensarmos quais os enfrentamentos necessários, sem entendermos o que é o racismo? O racismo é uma doutrina segundo a qual todas as manifestações histórico-sociais do homem e os seus valores dependem da raça; também segundo essa doutrina, existe uma raça superior “ariana” ou “nórdica”, que se destina a dirigir o gênero humano.

O fundador dessa doutrina foi o francês Gobineau, em seu Essai sur l’iné- galité des races humaines (1853), que visava defender a aristocracia contra a democracia. No início do século XX, a doutrina de Gobineau alcançou outras áreas do conhecimento, particularmente com o advento do nazismo, em que se fez uso da Biologia para provar a superioridade de uma raça sobre a outra. Criou-se, as- sim, o falso raciocínio pretensamente científico de que existe uma diferença bio- lógica entre os seres humanos; a Biologia, como uma das áreas de conhecimento da natureza humana, explicaria e justificaria uma falsa diferença mantenedora da desigualdade. De forma eficiente, o racismo se atualiza e atua assegurando ao “sistema” a manutenção da perversa fantasia de que a humanidade se compõe de seres superiores a outros, sem pensar as diferenças e especificidades das mais diversas etnias que compõem o que entendemos por humanidade.

Obviamente, a análise desse tema demanda um esforço que não se esgota em um artigo, dada a complexidade que implica entendermos o racismo como instrumento de manutenção da desigualdade entre seres humanos.

Como psicanalista, considero fundamental entender as consequências do racismo na constituição do sujeito negro, para pensarmos em uma das tantas possibilidades de enfrentamento que são necessárias no combate ao racismo. Começando por entender a aventura de constituir-se negro, superar, sublimar, lutar para nos tornarmos semelhantes, em um mundo onde ser branco é ter um lugar e ser negro é estar excluído de sua própria humanidade.

Sobreviventes de um drama que não refaz seu script, mas antes o mantém por séculos, a despeito das adversidades e desconstruções, nós nos recusamos a morrer. Lamentavelmente, quando não sucumbimos às estruturas de poder, somos mortos por ela ou levados a tirar a própria vida, drama que se repete há séculos, desde a escravidão, sem que nada efetivo seja feito para pôr um fim nessa tragédia que se atualiza a cada dia; jovens negros são assassinados pelas estruturas de poder ou se suicidam por não suportarem a dor da exclusão.

A despeito de todas as dificuldades de acesso para a construção de um discurso que possa falar de nós, “negros”, de forma inteligível à psicanálise e a outras áreas do conhecimento, que ultrapasse a esfera da democracia liberal, que nos prometeu uma igualdade enquanto cidadãos cumpridores de seus de- veres (pagar impostos, votar etc.), mas jamais um semelhante como ser humano com direito a um lugar.

Uma liberdade, como nos diz Mbembe (2018), que não nos permite compartilhar direitos, prazeres, trabalho, dores e muito menos a morte. Podemos ser assassinados aos olhos da lei, sem que seja de fato um crime, que permanecerá sem reparação possível, num acordo cordial perverso; a morte dos negros não importa.

Em seu livro, Mbembe cita Alexis de Torqueville, que nos diz, sobre o preconceito racial:

[…] parece aumentar à proporção que os negros deixam de ser escravos e a desigualdade se agrava nos costumes, à medida que se apaga nas leis. A abolição do princípio de escravidão não significa necessariamente a libertação dos escravos e a desigualdade distributiva. Apenas contribui para fazer deles “desgraçados destroços”, destinados à destruição. (Mbembe, 2018)

Sendo a cultura do povo africano transmitida de forma oral, tribal, sem registro, sua humanidade não tem uma história formal, registrada, como se fossem alheios ao trabalho e às leis.

Do olhar do outro, um estereótipo se constrói; logo somos aprisionados no corpo negro, tornando tal estereótipo uma realidade psicológica.

A mancha negra é a marca da imperfeição, o signo que atravessa os mais diferentes códigos sociais, pois o sentido que porta será sempre o da exclusão. É por isso que a luta do negro será sempre a luta para ser incluído; mas essa é uma luta eterna, pois, no limite, a inclusão nunca é obtida pelo negro, uma vez que o corpo negro sempre permanecerá como marca da exclusão.

No meu trabalho de tese (Nogueira, 1998), reflito que a estrutura social acaba por se reproduzir no corpo humano, de forma a dar-lhe um sentido em particular, o que certamente varia de acordo com os mais diferentes sistemas sociais, como disse J. C. Rodrigues (1983): “Como qualquer outra realidade do mundo, o corpo humano é socialmente concebido” (p. 31). A análise da representação social do corpo nos possibilita entender a estrutura de uma sociedade, a qual privilegia um dado número de características e atributos que o homem

deve ter, sejam eles morais, intelectuais ou físicos. Esses atributos são, basicamente, os mesmos para todos, embora possam se nuançar para diferentes grupos, classes ou categorias que fazem parte da sociedade.

O corpo humano, para além de seu caráter biológico, é afetado pela religião, pelo grupo familiar, a classe, a cultura e outras intervenções sociais.

Assim, cumpre uma função ideológica, isto é, a aparência funciona como garantia, ou não, da integridade de uma pessoa em termos de grau de proximidade ou de afastamento, em relação ao conjunto de atributos que caracterizam a imagem dos indivíduos em termos do espectro das tipificações; é assim que, em função da aparência (atributos físicos), alguém é considerado como um indivíduo capaz ou não de cometer uma transgressão (atributos morais), por exemplo. Para a psicanálise, portanto, não existe um corpo total; o corpo é sempre uma parte, ou seja, o gozo localizado acumulado nessa parte, pois o corpo não é uma unidade física, mas uma unidade significante, que se manifesta como corpo falante e corpo sexual (Nogueira, 1998).

Corpo sexual: sexual, porque o corpo está associado a gozo, e gozo é sexual, gozo gerado pelos orifícios erógenos do corpo e, portanto, tudo que se liga ao gozo se sexualiza, seja uma ação, uma palavra, uma fantasia ou um dado órgão ou parte do corpo que tenha se convertido em elemento erógeno.

Corpo falante: falante, porque ele é apreendido como um conjunto de significantes “que falam entre si” (Nasio, 1992, p. 149).

O corpo falante não é o corpo gestual que me fala, mas o que está investido do poder de determinar, sem o conhecimento de quem o contempla, um ato – por exemplo, o ato de repulsa do racista, que não sabe explicar por que ele é racista (Nogueira, 1998, p. 67).

Além de falante ou sexual, o corpo é também uma imagem, como observa Nasio (1992, p. 150).

Não a imagem refletida no espelho, mas imagem que é dada pelo outro, meu semelhante, que, no caso do negro, não tem semelhança com o outro.

A imagem do corpo, propriamente dita, é de fora do corpo que é percebi- da; essa imagem vem de fora, dando forma ao corpo sexual e ao gozo do sujeito. Portanto, o corpo é visualizado aqui de três pontos de vista que se completam: do ponto de vista real, o corpo é sinônimo de gozo; do ponto de vista simbólico, o corpo é significante: “conjunto de elementos diferenciados entre si e que determinam um ato no outro” (Nasio, 1992, p. 151), e corpo imaginário, “identificado como uma imagem externa e prenhe que desperta o sentido num sujeito” (Nasio, 1992, p. 151).

Isto significa que o corpo está investido de crenças e sentimentos que estão na origem da vida social, mas que, ao mesmo tempo, não estão submetidos ao corpo. “O mundo das representações se adiciona e se sobrepõe a seu fundamento natural e material, sem provir diretamente dele” (Rodrigues, 1983, p. 46).“A utiliza- ção do corpo como sistema de expressão não tem limites” (Rodrigues, 1983, p. 97). De fato, os atributos físicos que caracterizam o negro e, mais particular- mente, a cor da pele expressam as representações que, historicamente, associam a essas características físicas atributos morais e/ou intelectuais que vão corres- ponder, no espectro das tipificações sociais, àquilo que se instaura na dimensão do distante, ou seja, àquilo que expressa o que está além do conjunto dos valores nos quais os indivíduos se reconhecem.

Nessa rede, negro e branco se constituem como extremos, unidades de representação que correspondem ao distante – objeto de gesto de afastamento – e ao próximo – objeto de um gesto de adesão.

Dessa forma, a rede de significações atribui ao corpo negro a significância daquilo que é indesejável, por contraste com o corpo branco, parâmetro da autorrepresentação dos indivíduos.

Como diz Rodrigues (1983),“[…] a cultura necessita do negativo, do que é recusado, para poder instaurar, positivamente, o desejável. Tal processo inscreve os negros num paradigma de inferioridade em relação aos brancos” (p. 98).

O indivíduo branco pode se reconhecer em um “nós” em relação ao significante “corpo branco” e, consequentemente, com os atributos morais e intelectuais que tal aparência expressa na linguagem da cultura e que representam aquilo que é investido das excelências do sagrado; o negro, no entanto, é aquele que traz a marca do “corpo negro”, que expressa, escatologicamente, o repertório do execrável, que a cultura afasta pela negativização.

Vítima das representações sociais que investem sua aparência daqueles sentidos que são socialmente recusados, o negro se vê condenado a carregar, na própria aparência, a marca da inferioridade social. Para o indivíduo negro, o processo de se ver em um “nós”, em relação às tipificações sociais inscritas no extremo da desejabilidade, esbarra nessa marca – o corpo – que lhe interdita tal processo de identificação; ao mesmo tempo, a cultura incita-o a aderir aos signos de desejabilidade, pela injunção, própria das estruturas da cultura, que resulta do fato de que os signos desse sistema são introjetados nos indivíduos no processo de socialização.

Dessa forma, a cultura, que constitui a categoria “negro” enquanto um signo, produz para o indivíduo negro uma posição de ambivalência: oferece-lhe um paradigma – o da brancura – enquanto lugar de identificação social; no

entanto, por representar justamente o outro da brancura, tal identificação é evi- dentemente interditada, pois, na rede de tipificações, como se viu em Rodrigues (1983), deve ser mantida.

Preso às malhas da cultura, o negro trava uma luta infinda na tentativa de se configurar como indivíduo no reconhecimento de um “nós”. Seu corpo ne- gro, socialmente concebido como representante do que corresponde ao excesso, no olhar do branco, um outro que extravasa; para o negro, seu corpo é a marca que, a priori, exclui os atributos morais e intelectuais associados ao outro do ne- gro, ao branco: o negro vive cotidianamente a experiência de que sua aparência põe em risco sua imagem de integridade.

Se a cultura lhe atribui uma natureza que é da ordem do inaceitável, esses sentidos são introjetados pelo negro e vão, necessariamente, produzir configu- rações psíquicas particulares, como a destruição de sua identidade de negro.

[…] ser negro é ser violentado de forma constante, contínua e cruel, sem pausa ou repouso, por uma dupla injunção: a de encarnar o corpo e os ideais de Ego do sujeito branco e a de recusar, negar e anular a presença do corpo negro. (Costa, 1984, p. 104)

Para Costa, é a violência racista que, como um peso insuportável, se impõe ao negro, através de uma “norma psico-socio-somática” (Costa, 1984, p. 104), criada e imposta por uma classe dominante branca. Este autor aponta que a violência exercida pelo branco está no fato de que as reações racistas se baseiam na desconstrução e destruição da identidade do negro.

Pode haver algo mais complexo do que ser portador de um corpo marca- do pelos significados a ele associados, com base no que conhecemos a respeito da gênese da imagem do corpo?

Lembremos que é num processo inconsciente que esta gênese se dará como resultante de um duplo processo identificatório e projetivo: “ser o sujeito sendo concomitantemente o outro e ser o outro não sendo o próprio sujeito” (Sami-Ali, 1977, p. 13).

O reconhecer-se no espelho configura uma projeção, não realizada pela dificuldade de se reconhecer. Mas a proximidade da imagem objetiva em relação ao sujeito causa um sentimento estranho e inquietante em relação ao duplo especular. Um sentimento muito parecido com o que a criança vivencia quando percebe o rosto da mãe, o qual ela identifica como sendo o outro.

Por isso, o mal-estar que a criança experimenta diante do desdobramento do sujeito no espelho antecipa uma projeção que rompe a identificação original com o rosto do outro: “Sou outro diferente do outro, logo sou eu mesmo” (Sami-Ali, 1977, p. 125).

No entanto, esse “eu mesmo” refletido pelo espelho, em uma realidade virtual, é um outro. A experiência do espelho é um processo de desidentificação do rosto da mãe para um processo de identificação com o rosto do próprio sujeito. Nesses dois processos, diferentes percepções podem acontecer, do familiar ao estranho, que podem se manifestar de diferentes formas de afetos, do medo ao constrangimento.

Sami-Ali (1977) lança mão de um conceito de Lacan, “a assunção jubilatória”, para explicar que a criança da fase de espelho, que depende da mãe para se alimentar, em processo de desenvolvimento de suas funções motoras, está longe de colocar em ação todo o processo dialético da identificação com o outro. No entanto, dá-se aí o deslanchar de um longo processo de projeção que tem como objetivo formar, em sua diferença, o rosto do outro com o qual a criança se identifica de início:

A assunção jubilatória adquire então uma tríplice significação: é a culminância da separação primordial entre o dentro e o fora; é a superação do estranho inquietante primitivamente ligado à percepção do duplo; e é a confirmação do primado absoluto dessa mesma percepção. (Sami-Ali, 1977, p. 132)

Por ser a experiência do espelho derivada do duplo, e não o contrário, por mais eventual que ela possa ser, não deixa de ser uma experiência na qual a criança vivencia a perda de sua subjetividade enquanto rosto, isto é, a perda do rosto que ela imagina ter.

A identidade do sujeito depende em grande parte do corpo ou imagem corporal eroticamente investida, isto é, a identidade depende da relação que o sujeito cria com o próprio corpo. “A partir do momento em que o negro toma consciência do racismo, seu psiquismo é marcado com o selo da perseguição pelo corpo-próprio” (Costa, 1984, p. 108).

É em função dessa consciência que o sujeito negro passa a controlar, observar e vigiar o corpo que se opõe à construção da identidade branca, que foi obrigado a desejar. É aí que o sofrimento pela consciência da diferença do seu corpo em relação ao corpo branco faz emergir a negação e o ódio a seu próprio corpo: corpo negro.“[…] relação persecutória entre o sujeito negro e seu corpo” (Costa, 1984, p. 107).

Em minha tese (Nogueira, 1998), digo que essa condição imposta ao negro, uma injunção, como diz Costa (1984), ultrapassa os limites da dupla injunção, e proponho chamá-la de “sobreposição”.

Negar e anular o próprio corpo não torna o sujeito o “outro”, visto que só existimos como sujeito em relação ao outro, à alteridade; portanto, ser sujeito é ser outro, e ser o outro sujeito é não ser o próprio sujeito (Nogueira, 1998).

Isto é, ainda que o negro tente negar o seu “corpo negro”, ou tente desconfigurá-lo, isso não o torna semelhante ao “outro” (branco); o olhar do branco não reconhece o negro como um semelhante, não há uma alteridade possível nessa relação; o negro não tem como fazer desaparecer o seu corpo para ser esse outro branco, e assim se fazer semelhante; não há como negar o seu próprio corpo.

Para além dos fantasmas que são inerentes ao ser humano, resta ao negro o desejo de recusar esse significante (pele negra), que representa o significado (escatológico, por vezes) que ele tenta negar, negando-se, dessa forma, a si mesmo, pela negação do próprio corpo.

A meu ver, no entanto, esse fenômeno, que Costa (1984) qualifica como uma injunção, corresponde antes a uma “sobreposição” (Nogueira, 1998), pois o encontro com o racismo enquanto experiência consciente vem se sobrepor a uma real recusa do corpo negro, que corresponde a uma lembrança arcaica.

O que quero dizer é que, ao contrário do que afirma Costa (1984), não há, para o negro, um momento mítico, original, anterior ao encontro com a dimensão social mais ampla na qual o racismo se manifesta: para o sujeito negro, esse encontro se sobrepõe à lembrança arcaica de um encontro anterior, a partir do qual suas estruturas narcísico-imaginárias se determinaram.

Como afirma Jerusalinsky (1984):

A criança existe psiquicamente na mãe muito antes de nascer, e ainda mais, muito antes de ser gerada. O bebê negro, está claro, não é menos desejado que o bebê branco, para sua mãe que, inconscientemente, deseja o filho. Mas a criança do projeto e do desejo da mãe certamente não está representada no pequeno corpo negro, que o olhar materno, inconscientemente, tende a negar. A mãe negra deseja o bebê branco, como deseja, para si, a brancura. (p. 40)

Sendo assim, o Ego ideal (Freud, 1914/1996) do bebê negro é altamente idealizado e projetado na mãe negra, somando-se ao Ego ideal dela. Dessa forma, o sujeito negro se submete às aspirações dos outros, em relação ao que ele deve ser e que, por uma condição biológica, jamais será. O negro vive, portanto, em constante sobressalto e com vergonha por não corresponder às expectativas dos outros, que também são suas, de ter um corpo branco; isto é, o outro ocupa o lugar do ideal do ego (brancura), onde o negro projeta o seu ego ideal (branco).

Isto se explica porque o eixo central do processo que constitui o sujeito não está na satisfação, nem na frustração das suas necessidades; para o sujeito humano, não há mecanismo genético que possa garantir esse processo. A operação que o define se situa ao contrário, em outro nível: o do significante.

As falas fundadoras, que envolvem o sujeito, são tudo aquilo que o constitui, seus pais, seus vizinhos, toda a estrutura da comunidade, que o constitui não somente como símbolo, mas no seu ser. São leis de nomenclatura as que determinam, ao menos até certo ponto e canalizam as alianças a partir das quais os seres humanos copulam entre si e acabam por criar, não só outros símbolos mas também seres reais que, ao chegarem ao mundo, logo possuem essa pequena etiqueta que é seu nome, símbolo essencial do que lhe está reservado. (Lacan, 1978/1985, p. 31)

Isto significa que todo ato da mãe para com a criança é parte de um discurso, que se expressa em todos os movimentos e atitudes do outro com quem a criança se identifica, e no qual se manifesta o desejo materno. “Sendo que esse desejo se articula no que falta à mãe: o falo, esse fica sendo o orientador dessas identificações que utilizam o imaginário como significante” (Lacan, 1970, p. 99 citado por Jerusalinsky, 1984, p. 10).

Partindo das proposições lacanianas, e entendendo “falo” como o que representa o poder (a plenitude, a felicidade), ao transpor essas proposições para a situação da mãe negra, cuja “falta” se expressa enquanto desejo de ser “branca”, portanto, do desejo desse poder que ela não detém, que lhe falta, vemos que a criança negra sofreria na relação original sua primeira avaria, pois o que a constitui como sujeito nesse momento original – o desejo da mãe – já estaria impregnado de um significado que é negado no discurso da própria mãe.

Assim, não dispondo de qualquer possibilidade de disfarce da diferença que o constitui, o negro passa por um processo identificatório forjado no desejo do que seria ser “branco”, projetando, portanto, o branco que nunca será por condição biológica.

Está posta, assim, uma dualidade fundamental. No que tange à estrutura psíquica da pessoa negra: uma dupla lacuna se instaura no processo de tornar-se sujeito, em que o real de sua condição de negra, enquanto tal, não é reconhecido; é negado e se nega. Qual processo se daria, então, na elaboração do imaginário de alguém nessas condições?

O negro sofre do medo permanente da perda de sua imagem, tal qual ele a mantém em sua representação imaginária: a de branco, mantida por um ideal de brancura.

Entre o que o olhar do outro reflete para o sujeito negro e a imagem que o negro tem de seu próprio corpo negro, há, na verdade, uma coincidência. O que o olhar do outro lhe mostra, desse modo, é o que, no seu desejo, o sujeito negro recusa: o fato de que ele é a encarnação do significado “negro”, na medida em que ele traz no corpo o significante “negro”.

Evidentemente, no confuso processo pelo qual passam os negros, ser sujeito no outro significa não ser o real do seu próprio corpo, que deve ser negado para que se possa ser o outro. Mas esta imagem de si, forjada na relação com o outro – e no ideal da brancura – não só não guarda nenhuma semelhança com o real de seu corpo próprio, mas é por este rejeitado, estabelecendo-se aí uma confusão entre o real e o imaginário.

Se considerarmos o processo de construção do corpo imaginário, partindo do referencial da psicanálise, podemos supor que, se nada extraordinário ocorrer na evolução do indivíduo, ele se tornará um sujeito a partir do outro, da alteridade; experimentará, eventualmente, o sentimento de “estranho inquietante” (Freud, 1919/1976).

Essa confusão despersonaliza e transforma o sujeito em um autômato: ele paralisa e se coloca à mercê da vontade do outro. O sujeito assim fragilizado, envergonhado de si, se vê exposto a uma situação em que nada separa o real do imaginário, com fantasias ocorrendo, concomitantemente, dentro e fora.

Sami-Ali (1977) diz:

Na despersonalização, por conseguinte, o sujeito trata suas fantasias como objetos reais e trata os objetos reais como fantasias, duas particularidades que remetem, por ocasião da formação da imagem do corpo, aos inícios imprecisos da separação – mediatizada por uma projeção primordial – do dentro e do fora. O sujeito vive o mundo no corpo e o corpo no mundo; despersonalização e estranho inquietante são as duas faces de um mesmo e único processo desrealizante. (p. 28-29)

Estranho inquietante: inquietante, porque é, ao mesmo tempo, simultanea- mente, estranho e familiar, esse é o conceito freudiano Das Unheimlich (Freud, 1919/1976), um jogo dialético complexo, em que o familiar e o inquietante se localizam em um mesmo e único objeto.

O estranho inquietante se dá ao nível do espaço sensorial, organizado pela visão e que, dependendo das modificações que possa vir a sofrer, pode tornar o objeto familiar estranhamente inquietante.

O eu gera, no entanto, o pavor; não é o estranho que se opõe ao familiar, mas o reconhecimento do estranho no que antes era familiar, cujo caráter estranho não era como tal reconhecido, devido a um processo de repressão. O estranho inquietante tem como característica, portanto, o fracasso da repressão, que, ao falhar, abre espaço para o retorno inesperado do recalcado. Não se trata aqui de uma reação à função de diminuir uma percepção ameaçadora, mas de uma modificação do objeto, que, de familiar, se torna estranho e, enquanto estranho, inquietante, por sua coincidência com o objeto familiar. Unheimlich era o que deveria ter ficado oculto, mas retorna, manifestando-se no objeto ao mesmo tempo presente e ausente.

O sentimento de estranho inquietante é um confuso retorno a uma organização espacial “onde tudo se reduz ao dentro e ao fora, e onde o dentro é também o fora”! (Sami-Ali, 1977, p. 34).

Penso que esse movimento do estranho inquietante pode bem caracterizar o tipo de experiência que marca a relação do negro com o dia a dia no meio social. É impossível, para ele, não se perturbar com as ameaças aterradoras que lhe chegam com o racismo.

O racismo, contrariamente ao preconceito, é a expressão da violência; é um ato, não uma interdição que se coloca a priori, como forma de proteger seja lá o que for.

Dentro desse universo de terror, mesmo que o negro acredite conscientemente que tais ameaças racistas não se cumprirão, o pavor não desaparece, porque ele traz no corpo o significado que incita e justifica, para o outro, a violência racista. É justamente porque o racismo não se formula explicitamente, mas antes sobrevive em um devir interminável enquanto possibilidade virtual, que o terror de possíveis ataques (de qualquer natureza, desde física a psíquica) por parte dos brancos cria para o negro uma angústia que se fixa na realidade exterior e se impõe inexoravelmente.

Essa reação por parte dos brancos está ancorada em Freud (1918[1917]/2006), que a nomeou como “narcisismo das pequenas diferenças”.

A aceitação do outro não ocorre de forma automática; muitos obstáculos se opõem ao reconhecimento do outro. A dificuldade de aceitar a alteridade se ancora na fantasia, narcísica, de que todos possam ser iguais, tornando insuportável para o branco a diferença, como se algo ameaçasse sua integridade narcísica.

Isto é, o reconhecimento dessa diferença colocaria a imagem corporal do branco em risco de se desintegrar.

Embora as pequenas diferenças não se sustentem na fantasia da afirmação do particular sobre o comum e o indiferenciado, precisamente porque as semelhanças entre brancos e negros existem, por exemplo, no fato de pertence- rem à categoria dos humanos.

Embora haja muitas semelhanças entre brancos e negros, tudo o que sustenta essa fantasia da diferença da origem, os sentimentos de estranheza e hostilidade entre brancos e negros ocorrem.

Ainda que, lançando mão de um arsenal lógico, o negro possa considerar tais ameaças racistas grotescas, absurdas, totalmente incabíveis legalmente – já que criminosas em termos de direitos civis –, é mais forte do que ele: o negro acaba sempre por sucumbir a um processo totalmente inconsciente que, alheio à sua vontade, entrará em ação.

Considerações finais

Apesar da capacidade de nos organizarmos, entre avanços e recuos, nós, seres humanos, somos marcados pela ignorância e a estupidez, muito longe do res- peito à diversidade e à diferença.

A despeito das adversidades e especificidades, estamos construindo um discurso acerca de nós mesmos, negros, sobre a dor de pensar em nossos romances familiares. Nosso lugar e condição no mundo nos humanizam, nos in- serem no seleto clube daqueles que podem pensar para crescer, avançar e se fortalecer.

As estruturas de poder e dominação não são alheias à psicanálise pra- ticada nos consultórios; toda mudança tem como base a possibilidade de nos olharmos sem autocomiseração.

Eu acredito que a psicanálise nos instrumentalizou para pensarmos os seres, os tempos, a cultura; seremos nós, os psicanalistas, capazes de pensar, com base nas nossas diferenças e crenças, os efeitos do racismo em nossa prática clínica, despidos de nossos preconceitos inerentes à nossa condição de humanos? A tarefa é árdua, enquanto psicanalista e, particularmente, enquanto negra; minha escuta sempre foi assim direcionada. Até porque me parece que as estruturas de poder e dominação não são alheias às psicanálises praticadas nos consultórios. Os enfrentamentos, portanto, só serão possíveis quando pudermos dar conta e elaborar esse complexo processo na construção do sujeito, sem a qual toda e qualquer estratégia está fadada a naufragar. É preciso termos acesso à possibilidade de fortalecimento de nossa saúde psíquica.

Jurandir Freire Costa, no prefácio do livro de Neusa Santos Souza, Tornar-se negro (1983), lembra-se de uma inscrição gravada no monumento às vítimas do holocausto nazista, em Paris, onde está escrito: Pardonne, mais n’oublie pas”, em português, “Perdoe, mas não esqueça”.

O passado não pode ser refeito, e o presente pode ser outro, muito diferente desse que a história conta, como nos disse Edmund Burke (1729-1797): “Um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la” (Burke, 2014, p. 126). A violência em relação ao povo negro tem atravessado séculos, e cabe a todos nós, negros e brancos, construir uma história em que não haja se- res superiores aos outros, mas humanos que saibam lidar com suas diferenças; todas as vidas importam.

Solano Trindade tem um lindo poema que ilustra quem somos nós, os negros, hoje: “Eu canto aos Palmares, sem inveja de Virgílio, de Homero e de Camões, porque o meu canto é o grito de uma raça, em plena luta pela liberdade!” (Trindade, 1981, p. 29).

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REFERÊNCIAS

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Freud, S. (1996). Sobre o narcisismo: uma introdução. In: S. Freud, A história do movimento psicanalítico, artigos sobre a metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916)(Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 14). Rio de Janeiro: Ima- go. (Original publicado em 1914).

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Gobineau, A. (1853). Essai sur l’inégalité des races humaines. Paris: F.B. Editions. Jerusalinsky, A. (1984). Psicanálise do autismo. Porto Alegre: Artes Médicas.

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Mbembe, A. (2018). Crítica da razão negra. São Paulo: M-1 Ed..

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Sami-Ali. (1977). Corpo real, corpo imaginário. Porto Alegre: Artes Médicas.

Souza, N. S. (1983). Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Graal.

Trindade, S. (1981). Cantares ao meu povo. São Paulo: Brasiliense.

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Este artigo foi originalmente publicado em novembro de 2021 pela Revista Trama, do Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae.

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