OS SIGNOS E SEUS EXCESSOS: A CLÍNICA EM DELEUZE – por Joel Birman

“[…] a psicologia é certamente a última forma do racionalismo: o leitor ocidental espera a palavra final. Desse ponto de vista, a psicanálise relançou as pretensões da razão. Mas, se ela quase não poupou as grandes obras romanescas, nenhum grande romancista de seu tempo chegou a se interessar muito pela psicanálise.”[1]

Trata-se de empreender aqui uma leitura da problemática da clínica em Deleuze.

Com efeito, além de seu interesse por certos autores cruciais da modernidade – como Kant, Hume, Espinosa, Leibniz, Nietzsche, Foucault e Bergson, por exemplo -, sabe-se que Deleuze foi buscar na literatura, no cinema, nas artes plásticas, na psiquiatria e na psicanálise certas condições necessárias ao exercício da filosofia. Por isso ele não se contentou em produzir a exegese severa e inventiva de numerosos autores clássicos da história da filosofia; foi defender sua prática filosófica no campo de outras práticas discursivas, entre as quais a psiquiatria e a psicanálise.

O significante “clínica” terá portanto, aqui, um sentido muito preciso, com fronteiras bem delimitadas. A clínica não remete absolutamente às práticas médica e neurológica; remete às clínicas psiquiátrica e psicanalítica, pois são essas as referências clínicas que encontramos na obra de Deleuze. No campo da filosofia contemporânea, parece-me que apenas Foucault se interessou intensamente por psiquiatria e psicanálise, tendo realizado uma das obras maiores sobre a arqueologia da clínica médica [2].

Contudo, é preciso lembrar que Deleuze não realizou sozinho esse sinuoso trajeto clínico. Seu antigo interesse pela psiquiatria e a psicanálise viu-se reforçado pela profunda relação de amizade e colaboração que o ligava a F. Guattari, com quem escreveu suas obras mais significativas no que concerne a esses dois campos. Como sabemos, Guattari sempre privilegiou a clínica, que ele praticava com verdadeira paixão.

Por isso, Anti-Édipo[3] e Mil Platôs[4], escritos em parceria com Guattari, condensam talvez o essencial da contribuição deleuzeana à questão da clínica. Entretanto, é preciso não esquecer os textos escritos apenas por Deleuze, nos quais a problemática da clínica ocupa um lugar crucial e estratégico.

Os ensaios reunidos em 1993 sob o título de Crítica e clínica[5] constituem uma contribuição importante de Deleuze sobre essas questões. Entre esses ensaios, alguns são inéditos, outros haviam sido publicados anteriormente em revistas. Se alguns revelam evidentes influências provenientes das duas grandes obras escritas com Guattari, outros contêm reflexões incontestavelmente originais de Deleuze acerca da clínica.

Da mesma forma, o ensaio de Deleuze sobre Proust, intitulado Proust e os signos[6], revela uma reflexão profunda a respeito da clínica, sobretudo na elaboração da ideia proustiana de memória involuntária, em que Deleuze trabalhou a oposição essencial entre diferença e repetição para enfatizar a distinção — retomada posteriormente entre a repetição do mesmo e a repetição diferencial [7]. Os conceitos de cópia e de simulacro, igualmente desenvolvidos em Lógica do sentido[8], são o objeto de uma nova elaboração, inscrita no registro sensível da escrita literária.

Além disso, a leitura de Sacher-Masoch, empreendida por Deleuze no final dos anos 60[9], revela uma leitura particularmente acurada e original dos grandes temas do masoquismo. Essa leitura é reveladora de um imenso saber clínico; ela indica de maneira irrefutável, a nosso ver, a irredutibilidade do conceito de pulsão de morte a qualquer tentativa que pretenda recupera-lo no registro simbólico.

Nos comentários a seguir, pretendemos apresentar um primeiro esboço da clínica deleuzeana. Iremos nos apoiar nas duas obras — sobretudo Anti-Édipo — escritas a quatro mãos com Guattari, mas também nos livros dedicados a Proust e Sacher-Masoch e, enfim, nos ensaios reunidos sob o título de Crítica e clínica.

1. AS SOMBRAS DA HISTÓRIA

Se esse conjunto de textos constitui o campo discursivo do comentário que vamos empreender, é preciso considerar igualmente o contexto no qual Deleuze passou a se interessar por psiquiatria e psicanálise.

Acrescentarei que, não podendo realizar uma leitura pormenorizada de cada um desses textos, vou dedicar-me antes de tudo à orientação clínica da leitura de Deleuze. É nessa perspectiva que empreenderei uma leitura transversal desses textos de Deleuze.

A devida consideração da conjuntura histórica na qual Deleuze passou a se interessar por psiquiatria e psicanálise pode tornar mais evidente sua preocupação com a questão da clínica. Com isso, poderemos perceber melhor a inflexão particular dada à experiência clínica.

O interesse de Deleuze por psiquiatria e psicanálise manifestou-se durante os anos 60. A primeira de suas obras que dá um grande destaque à teoria da clínica, o Anti-Édipo, foi publicada no início dos anos 70. Estamos então, na França, no auge do pensamento lacaniano — a psicanálise funcionando ainda, no domínio da filosofia e das ciências humanas, como um importante saber de referência. É o momento de apoteose do pensamento estruturalista francês, no qual a psicanálise, em sua versão lacaniana, ocupa o lugar que todos conhecemos.

Mas é preciso igualmente evocar que estamos então em pleno desenvolvimento do movimento francês de reforma institucional psiquiátrica, o qual pretendia transformar as estruturas asilares dos hospitais e promover a prática da psiquiatria de setor para modernizar o sistema de assistência.

Ora, entre os defensores da modernização psiquiátrica, uma oposição importante se fazia presente no campo social. Havia os representantes da “psiquiatria social-democrata”, segundo a expressão de Guattari, que propunham uma reforma da assistência pública que implicava a introdução da psicanálise na prática clínica dos hospitais psiquiátricos e nos centros médico-pedagógicos (a psicanálise era a aliada incondicional dos novos instrumentos terapêuticos possibilitados pela psicofarmacologia). Mas existia também uma outra linha de trabalho institucional cuja orientação era bastante diversa da anterior, na medida em que a crítica da estrutura asilar do dispositivo psiquiátrico se associava a um projeto político.

Esse novo projeto era portador de uma ambição revolucionária, pois não podemos esquecer que estamos na época do desdobramento do movimento de maio de 1968.

A primeira corrente institucionalista estava inscrita no que havia de mais tradicional no campo da psicanálise francesa. Mas a segunda corrente encontrou no pensamento inaugural de Lacan um de seus fundamentos. De fato, apesar de ter se originado, com Tosquelles, na Espanha anarquista e republicana do período da guerra civil espanhola, o institucionalismo de esquerda, ao migrar para a França, encontrou no pensamento de Lacan uma de suas referências teóricas fundamentais. O que estava em jogo, no registro específico do pensamento e da prática institucional psiquiátricos, era, enfim, a oposição entre reforma social e revolução, entre a ideologia do reformismo e a busca de uma ruptura social radical.

A junção do pensamento psicanalítico e dos ideais revolucionários dos anos 60 teve como consequências maiores duas proposições fundamentais, que acabaram por determinar os destinos da esquerda “institucional” nos anos 70:

1) A crítica sistemática a um modelo de clínica restrita à relação médico-paciente, ou analista-analisante. Nesse contexto, a clínica devia ultrapassar esse espaço acanhado e limitado, e inscrever-se decididamente no campo social. Essa clínica pretendia, portanto, enraizar-se no campo social, perpassando o conjunto de suas práticas, e não mais se restringindo unicamente ao diálogo personalizado e singular entre o analista e seu analisante.

2) A crítica ao pensamento teórico de Lacan passou a ser feita de maneira sistemática, por ser ele o sustentáculo da concepção limitada da clínica mencionada acima. Além disso, não se pode esquecer a posição abertamente conservadora de Lacan diante dos acontecimentos de maio de 1968; segundo alguns observadores, ela teria sido mesmo lamentável. Assim, se o discurso de Lacan fora uma das principais alavancas do movimento institucional psiquiátrico francês, em suas origens, a situação havia mudado radicalmente no fim dos anos 60: ele se tornara um obstáculo.

A consideração desse contexto histórico é, portanto, fundamental para poder compreender a produção teórica de Deleuze sobre a clínica, pois é esse mesmo contexto que explica sua crítica à posição estratégica até então ocupada pela psicanálise nos campos da filosofia e das ciências humanas na França. Convém ainda lembrar que as questões filosóficas subjacentes a essa problemática foram renovadas de tal forma por Deleuze, que a crítica sistemática ao estruturalismo proposta em Anti-Édipo poderá figurar como uma das origens do pensamento pós-estruturalista.

Um recomeço filosófico se anuncia aqui, com o que há de mais sombrio nos destinos clínicos da loucura.

2. O ÉDIPO, AS MÁQUINAS DESEJANTES E O CORPO SEM ÓRGÃOS

Nessa perspectiva, o eixo argumentativo de Anti-Édipo se constitui a partir da oposição entre a categoria de máquina desejante e a figura do Édipo, seja este considerado como complexo (Freud) ou como estrutura (Lacan). A “transferência” do Édipo de sua posição de complexo para a de estrutura ocasionou sua radicalização teórica, pois implicou sua centralidade para a constituição do sujeito, a ponto de alça-lo a uma dimensão quase transcendental. Essa mudança da ênfase e do lugar do Édipo na construção do sujeito encontra-se na base da leitura estruturalista da psicanálise e do famoso “retorno a Freud” realizado por Lacan[10].

Entre os conceitos de máquina desejante e de Édipo, Deleuze e Guattari colocam a categoria de corpo sem órgãos (Artaud) como uma maneira precisa de desalojar o Édipo de sua posição estratégica de centralidade para o sujeito, e um modo de enunciar uma outra interpretação possível do conceito de recalque originário[11] formulado por Freud[12]. O conceito de Édipo enquanto estrutura é relegado a uma posição secundária na construção do sujeito, ao mesmo tempo que a concepção do corpo, como conjunto de máquinas desejantes acopladas de maneira anárquica, vem ocupar a posição fundamental.

Foi através do desenvolvimento do conceito de máquina desejante que Deleuze e Guattari procuraram realizar a desconstrução do modelo edipiano na psicanálise, e formular uma outra leitura possível do conceito de inconsciente. Ao virarem desse modo o discurso freudiano — mas também, e principalmente, o lacaniano, como mostrarei um pouco mais adiante –, Deleuze e Guattari propunham-se lançar as bases do que eles chamaram “uma psiquiatria materialista”, em que o materialismo remeteria às ideias de materialidade desejante e de história[13]. Era preciso empreender, com Freud e Lacan, aquilo que Marx havia realizado com o naturalismo de Feuerbach, isto é, inscrever a materialidade desejante no registro da história e arranca-la definitivamente do registro da natureza.

Desse ponto de vista, poderíamos afirmar que os discursos de Freud e de Lacan são ambos criticados por suas dimensões individual e familiarista, pois não consideram em absoluto o campo social. O conceito de fantasma coletivo, oriundo da psicoterapia institucional e enunciado por Oury, é um momento essencial dessa construção, contra uma leitura individualista e imaginária do fantasma[14]. A releitura dos escritos de Freud sobre o fantasma — em particular o comentário de “Bate-se numa criança” — revela a argúcia crítica de nossos autores.

Mas é sobretudo o modelo estruturalista de Lacan e sua concepção do inconsciente estruturado como uma linguagem[15] que são visados por essa análise. Isso não quer dizer, é claro, que Freud também não seja atingido pela leitura de Deleuze — o complexo de Édipo é um conceito freudiano, e muitas páginas do Anti-Édipo estão centradas numa crítica sistemática a Freud –, mas a crítica se dirige claramente ao pensamento de Lacan. Foi contra uma certa apropriação lacaniana de Freud, então hegemônica na França, que o Anti-Édipo foi escrito. Com isso se elaborou uma nova concepção do inconsciente, em que as máquinas desejantes e o corpo sem órgãos vêm ocupar as posições fundamentais, de modo que as noções de intensidade e de excesso passam a definir o ser do inconsciente.

Para realizar essa operação, Deleuze e Guattari apoiaram-se explicitamente na teoria das pulsões de Freud. Criticando o modelo lacaniano do inconsciente, eles pretenderam conduzir Freud na direção de uma “psiquiatria materialista”. É como se fosse preciso apoiar-se necessariamente em Freud para criticar Lacan e devolver à psicanálise o que Lacan, na leitura que ele havia feito dela, havia posto entre parênteses. Mas era preciso, ao mesmo tempo, radicalizar os enunciados freudianos indo muito mais longe que Freud. Daí a formulação aparentemente paradoxal de Deleuze e Guattari: ser freudiano contra Freud, pois seria necessário tirar as consequências teóricas e políticas que este ignorou para a psicanálise.

3. O EXCESSO PULSIONAL E A IMPESSOALIDADE SINGULAR

Nessa perspectiva, a ideia de economia é fundamental. A economia remete tanto à economia política como à economia desejante e a sua articulação no registro das máquinas desejantes. Essas duas modalidades do registro econômico são, além de indissociáveis, reenviadas ao campo social. Assim o inconsciente, fundado nas ideias de excesso e de intensidade, pulsionado pelas máquinas desejantes, é permeado pela economia.

E necessário aqui sublinhar que a questão das pulsões e o registro econômico da metapsicologia freudiana sempre foram o maior ponto de oposição do discurso de Lacan ao pensamento de Freud. Essa exclusão da economia da metapsicologia psicanalítica é facilmente identificável no discurso de Lacan, desde o início de seu percurso e ao longo de quase toda a sua obra teórica. Essa recusa sistemática do ponto de vista econômico, na leitura lacaniana de Freud, definia para a psicanálise uma perspectiva cientificista.

Com efeito, desde o início de seu percurso teórico — evoquemos aqui os ensaios “Para além do princípio de realidade”[16], “0 estádio do espelho como formador da função do Eu”[17], “A agressividade em psicanálise”[18] –, no período em que seu pensamento estava centrado na tópica do imaginário, Lacan excluiu, de maneira concisa e deliberada, o conceito de pulsão e a problemática econômica da metapsicologia freudiana. Entre os anos 30 e 40, momento de elaboração desses textos, essas questões foram discutidas pela psicanálise anglo-saxônica em dois registros diferentes mas complementares: elas foram pensadas segundo um modelo eminentemente biológico e representadas como sendo a base de uma teoria da afetividade. É o que Lacan queria, justamente, excluir da metapsicologia freudiana para fundamentar teoricamente a especificidade epistemológica da psicanálise.

Por ocasião do segundo período de seu percurso teórico, iniciado em 1953, quando a tópica do simbólico predominou, a exclusão do registro econômico e do conceito de pulsão da metapsicologia freudiana foi ainda mais radicalizada por Lacan. Seu fascínio pelo modelo linguístico de Saussure o conduziu, pelas sendas abertas por Lévi-Strauss e Jakobson, à formulação do conceito de inconsciente estruturado como uma linguagem, toda alusão às intensidades pulsionais sendo absolutamente eliminada da psicanálise. O conceito de afeto devia desaparecer da psicanálise, pois só poderia haver recalque do representante-representação da pulsão, e não do representante afetivo[19].

Concluiremos desses elementos que a problemática da intensidade e o registro econômico da metapsicologia freudiana colocavam problemas insolúveis para o racionalismo de Lacan, fundado na tradição filosófica de Hegel e transmitido pelo ensinamento de Kojève. Sabe-se, com efeito, que a tese do inconsciente estruturado como uma linguagem e seu ordenamento lógico representado como uma cadeia de significantes permitiam associar as exigências teóricas advindas do racionalismo e do hegelianismo a uma leitura linguística do sujeito do inconsciente.

De onde uma concepção não pulsional do inconsciente, representada pela lógica da estrutura edipiana associada a uma superposição do modelo linguístico do inconsciente ao do Édipo como estrutura o que haveria de eliminar definitivamente a problemática da intensidade. Para tanto, foi enunciado um conceito inédito de pulsão de morte, inscrito no registro simbólico, de modo que não mais haverá nenhuma referência ao excesso pulsional e à intensidade. Em suma, a lógica do significante seria exclusivamente responsável pela estrutura do sujeito do inconsciente.

Opondo-se a essa visão, Deleuze e Guattari propuseram em Anti-Édipo que o inconsciente é perpassado de fio a pavio pela pulsão, ou, em outras palavras, que não poderia haver inconsciente sem intensidades. Vale dizer que, face à formulação lacaniana do inconsciente como falta, Deleuze e Guattari defendem a tese segundo a qual o inconsciente é excesso. Essa oposição entre o excesso e a falta é fundamental para a construção de um argumento sólido que permita, numa direção completamente diferente da estabelecida por Lacan, fundar uma nova leitura do sujeito do inconsciente.

Desde 1967, em sua obra dedicada a Sacher-Masoch, Deleuze já insistia nessa diferença crucial com Lacan sobre o estatuto teórico do inconsciente que, para ele, era atravessado pela questão da pulsão. De maneira aparentemente paradoxal no contexto de uma tradição psicanalítica em que a ideia de instinto havia sido definitivamente eliminada[20] pelo ensino de Lacan, Deleuze distingue então, novamente, a “pulsão de morte” do “instinto de morte”.

Evidentemente, isso não quer dizer de modo algum que Deleuze quisesse recolocar a biologia no campo da psicanálise introduzindo nela, de forma surpreendente, o significante “instinto”. Ao contrário, pela inscrição renovada dessa noção, Deleuze pretende recolocar a dimensão pulsional no inconsciente, desarticulando desse modo a leitura lacaniana da pulsão de morte que a inscrevia no registro simbólico.

Essa tese foi retomada em Anti-Édipo, já em suas primeiras páginas, com o enunciado das máquinas desejantes que, na verdade, não é senão a radicalização ostensiva dos conceitos de pulsão enquanto forças[21] e de pulsão de morte[22] em Freud. Nesse contexto, a pulsão enuncia-se como desconectiva, disjuntiva e desconstrutora fora de unidades. A ideia de pulsão remete, portanto, à mobilidade e à ruptura das unidades, desfazendo com isso a noção de sujeito como unidade.

Assim, se não há nenhuma dúvida quanto à realidade da crítica ao discurso freudiano, esta se apresenta, em primeiro lugar, como que filtrada pela leitura de Lacan isto é, pela lógica da estrutura edipiana, e não pela ordem da economia das pulsões. Esta última é então retomada positivamente por Deleuze, que a radicaliza de maneira inteiramente específica quando afirma que as máquinas desejantes não poderiam restringir-se ao registro do indivíduo e que elas se encontram no campo social. É por essa razão que Deleuze e Guattari valorizam as categorias da economia pulsional de Freud, pois elas lhes permitem voltar-se efetivamente para o campo da economia política: trabalho, investimento, força e intensidade[23].

No que se refere à concepção do sujeito e à realidade da experiência clínica, chega-se assim a uma distinção forte entre uma clínica centrada na pessoalidade e uma outra fundada na singularidade. Com efeito, mesmo tendo Lacan fundado, como sabemos, todo o seu percurso teórico posterior a 1953 na crítica sistemática à psicologia norte-americana do Eu, Deleuze e Guattari mostram com precisão que o Édipo estrutural acaba reconduzindo Lacan a uma leitura do sujeito centrada no Eu e na pessoa, e não a uma concepção da subjetividade centrada na ideia de singularidade[24]. Esta, ao contrário, estaria fundada, de forma paradoxal, no atributo da impessoalidade. Com efeito, se a singularidade não fosse eminentemente impessoal, o sujeito jamais poderia ser marcado pelo que é singular.

Nessa perspectiva, a singularidade implicaria necessariamente a ruptura dos limites e das fronteiras do Eu, com o rompimento do território restrito da individualidade e a inserção do sujeito em outras territorialidades. O sujeito se inscreveria assim enquanto singularidade impessoal por sua inevitável dispersão nas máquinas desejantes do tecido social[25].

Parece-me que essa é uma ideia cardinal da clínica para Deleuze, pois, enquanto impessoal, a singularidade não se identifica mais com a ideia de unidade, visto que o um do traço unitário se apagaria para sempre diante das ideias do múltiplo e da dispersão. Eis por que topamos com este aparente paradoxo: o singular, que seria o máximo da personalização na tradição da filosofia do sujeito, tende agora à impessoalização. Seria portanto para o silêncio da pessoa e do Eu que tenderia a singularidade, já que ela está centrada no excesso pulsional e na economia das intensidades.

Eis a razão pela qual a esquizofrenia interessa tanto a Deleuze e Guattari. Com efeito, ela não apenas manifesta sua irredutibilidade ao Édipo estrutural e a qualquer forma de ser transgeracional, como também mostra os impasses do sujeito que quer se tornar singular na impessoalidade. Desse modo, a esquizofrenia, enquanto figura típica da modernidade psiquiátrica, constitui o ponto de apoio estratégico para se pensar um sujeito não inscrito na estrutura do Édipo: ela revela esta forma fundamental de existência do sujeito que é a impessoalidade singular.

Contra a concepção lacaniana do sujeito, que se baseou sempre no modelo da paranoia[26], o sujeito como impessoalidade singular está centrado, para Deleuze e Guattari, na figura paradigmática da esquizofrenia. Essa oposição entre as categorias clínicas da paranoia e da esquizofrenia mostra bem o que está efetivamente em questão nas diferentes leituras da subjetividade.

A paranoia como modelo teórico do sujeito implica a glorificação do Eu e da pessoalidade, enquanto a esquizofrenia, pela fragmentação e pela dispersão, revela a problemática da impessoalidade singular. Além disso, se o modelo da paranoia e a concepção de sujeito que dela provém levaram diretamente Lacan à categoria de alienação de Hegel, a singular impessoalidade do sujeito não mais poderá deixar de ser pensada no registro da alienação. Deleuze e Guattari estão bem mais próximos de Marx, jamais de Hegel, como podemos observar ao longo de todo Anti-Édipo. Com Marx seria possível pensar uma psiquiatria materialista, centrada no inconsciente atravessado por pulsões e intensidades, ao passo que, seguindo o racionalismo hegeliano, a materialidade econômica dessa psiquiatria seria da ordem do impossível — como acontece em Lacan. A letra do inconsciente adquire então uma materialidade fosca e evanescente, remetendo a uma idealidade platônica.

Portanto, será sempre em relação a Lacan e à concepção linguística do sujeito que Deleuze quer tomar distância, a fim de explorar uma concepção pulsional do inconsciente como uma nova base para uma psiquiatria materialista. No registro estrito da experiência clínica, a figura central que então se delineia é a da impessoalidade singular. Pois, no registro da materialidade pulsional, das disfunções e das desconexões do sujeito, a desbotada ideia hegeliana de alienação não tem mais nenhuma razão de ser.

4. OS SIGNOS, OS TRAJETOS E AS CARTOGRAFIAS

Essa leitura nos leva inevitavelmente a retomar a distinção entre repetição do mesmo e repetição diferencial que Deleuze havia estabelecido em 1964, em sua obra dedicada a Proust[27]. A repetição diferencial implica o excesso pulsional que funda a possibilidade da diferença subjetiva e da singularidade. Por isso é impossível pensar a existência da impessoalidade singular sem a regulação operatória da repetição diferencial. Sabemos que Lacan retomou posteriormente essa distinção feita por Deleuze para pensar a compulsão de repetição em psicanálise, sublinhando suas dimensões positiva e negativa. Além disso, Lacan utilizou essas noções para pensar a experiência da transferência na clínica psicanalítica.

Da mesma forma, as noções de simulacro e de cópia podem ser elevadas à condição de verdadeiros dispositivos que contribuem à representação do sujeito enquanto impessoalidade singular[28]. Sem o auxílio dessas categorias, seria de fato quase impossível desenvolver tal concepção do sujeito, pois o simulacro e a cópia remetem à oposição entre a repetição diferencial e a repetição do mesmo. A singularidade impessoal — por permitir ao sujeito o acesso a sua condição de diferença irredutível face a qualquer outro sujeito — passaria assim, obrigatoriamente, pela cadeia dos simulacros.

Os comentários que precedem desembocam inevitavelmente nos ensaios reunidos por Deleuze sob o título de Crítica e clínica. Em sua diversidade temática e temporal, essa obra propõe uma elaboração renovada da questão da clínica e faz Deleuze ir além das teses contidas em Anti-Édipo. Nesse contexto, as formulações feitas com Guattari conduzem Deleuze a abrir novos caminhos para a clínica e a psiquiatria materialista, lançando-se nos registros da escrita e da literatura. É nesse campo que a leitura pós-estruturalista de Deleuze tomará uma configuração ainda mais nítida e contrastada. A oposição entre literatura e ciência linguística é aí desenvolvida de maneira a mostrar que esta última é incapaz de dar conta da literatura, que, por sua vez, só tem valor na medida em que entra em contradição com a ciência linguística[29].

Essa obra renova a concepção deleuzeana da clínica pelas novas possibilidades que a literatura oferece para pensar a forma do sujeito como singularidade impessoal. Através da multiplicidade das escritas que nela se manifesta, a literatura constitui o campo privilegiado dessa exploração inédita e contínua; ela é o laboratório privilegiado para experimentar, sempre de novo, a questão do sujeito e da clínica. Se, na prática da escrita, a literatura se materializa enquanto ficção, é entre escrita e ficção que se deverá tentar pensar o sujeito da diferença, os simulacros e a singularidade impessoal. É nesse campo multifacetado, portanto, que se decidirá a concepção que Deleuze faz da clínica e da materialidade da psiquiatria.

Deleuze irá assim retomar a temática da singularidade impessoal dedicando-se a explorar certos impasses da criação literária. A produção delirante revela-se rica de ensinamentos ao indicar alguns obstáculos presentes na criação, mas também os processos de continuidade da vida. Seriam estes responsáveis pela literatura e pela ficção, transformando-as em “empreendimentos de saúde”? Ora, quando os processos de vida são paralisados, como acontece na neurose e na psicose, sabe-se que a criação é interrompida e impedida. Nesse sentido, “a enfermidade não é processo, mas parada do processo”. Por conseguinte, “o escritor enquanto tal não é doente, mas antes médico, médico de si mesmo e do mundo”. Assim, “o mundo é o conjunto de sintomas cuja doença se confunde com o homem”[30].

O sentimento de estranheza provocado pelas obras de L. Wolfson, R. Roussel e J.-L. Brisset dá sentido à proposição de Proust enunciada em “Contra Sainte-Beuve”, segundo a qual “os belos livros são escritos numa espécie de língua estrangeira”.

Na verdade. os ensaios de Deleuze reunidos em Crítica e clínica são um comentário sistemático desse fragmento de Proust colocado como epígrafe do livro. A escrita supõe, assim, a possibilidade, para o sujeito, de construir uma nova língua e uma outra linguagem na língua instituída do código vigente e normativo. Para tanto, é preciso poder escrever numa “espécie de língua estrangeira”, desterritorializando a língua instituída, de modo a transforma-la em não-familiar, em estranha, porque estrangeira…

Nessa perspectiva, a literatura como ficção supõe a fabulação, na medida em que esta não implica nem imaginar nem tampouco projetar um Eu[31]. A fabulação seria, pois, a própria potência em ato, que traduziria a língua instituída como estrangeira. Assim, a escrita supõe não apenas a decomposição da língua materna, mas também “a invenção de uma nova língua dentro da língua, pela emoção da sintaxe”[32]. Estaria Deleuze nos indicando, com isso, que a ficção literária e a escrita seriam o próprio exercício da paternidade, e do que produz ruptura com a língua materna? Elas estariam como que implicadas na transformação radical do familiar no que é eminentemente estrangeiro.

É ainda Proust que nos revela mais claramente o “ataque” da paternidade sobre a língua materna: “A única maneira de defender a língua é ataca-la”[33]. Aqui é que se produziria a inversão do lugar do sujeito em proveito da posição de estrangeiro no interior de sua própria língua, pois a passagem crucial do registro da pessoalidade do Eu para o da impessoal singularidade pode, agora, enunciar-se literalmente. Essa diferença se realiza no registro concreto da escrita.

Por isso, Deleuze evoca aqui o Blanchot de A conversa infinita e de A parte do fogo, quando este afirma que “alguma coisa acontece [aos personagens], da qual eles não são capazes de se reapropriar a menos que se desapropriem de seu poder de dizer Eu”[34]. Com efeito, o sujeito só pode se reassumir como singularidade quando perde provisoriamente seu poder de dizer “eu”.

É por ocasião desse comentário que Deleuze irá marcar o sentido da ruptura pós-estruturalista: “A literatura parece aqui contradizer a concepção linguística, que encontra nos embreantes, e sobretudo nas duas primeiras pessoas, a condição da enunciação”[35].

É, portanto, uma leitura atenta da literatura, compreendida como fabulação capaz de afirmar a emergência do sujeito enquanto impessoalidade singular, que funda, agora, sua concepção da clínica. Daí resulta que a literatura enquanto ficção e fabulação desmente o prometo supostamente científico da linguística: a literatura é habitada por fluxos, intensidades e afecções que transformam a língua familiar em língua estrangeira. Assim, o sujeito só se deixará apreender como tal desprendido e liberado do registro da pessoalidade do Eu.

E Deleuze criticara mais uma vez a concepção lacaniana — do inconsciente estruturado como uma linguagem — que se apoia no estruturalismo linguístico. Ele reencontra assim sua concepção pulsional do inconsciente, que se opõe à lógica do significante e celebra a condição fundadora do signo na economia do sujeito. Será, portanto, pelo caminho do signo, e não do significante, que as afecções e as intensidades serão reintroduzidas no sujeito, tornando possível uma leitura pulsional do inconsciente.

É preciso então sublinhar a importância, na escrita, do artigo indefinido [36]. Com efeito, é pela mediação do artigo indefinido que o Eu é desapropriado para que o sujeito possa se reapropriar como singularidade impessoal. Na escrita, o artigo indefinido tem a ver com a lógica do signo e não do significante, pois ela nos remete, enquanto leitores, a algo que se situa no limite e fora da linguagem, isto é, às visões e audições não-linguageiras. Assim, a problemática da escrita remete tanto à questão do ver e do ouvir como aos efeitos “de cores e de sonoridades que se elevam acima das palavras”. Haveria, portanto, como uma “pintura e uma música próprias à escrita”, que remeteriam à lógica do signo.

É nessa perspectiva da singularidade impessoal que Deleuze foi levado a incluir a categoria de espaço na lógica do signo. A experiência do tempo será relançada a partir dessa ancoragem espacial (e cartográfica) do signo.

Pelos fluxos e afecções, isto é, pelas pulsões e máquinas desejantes, Deleuze recupera uma nova potência do dizer e do escrever, em que são enfatizadas as ideias de trajeto e de cartografia. Num artigo intitulado “O que as crianças dizem”, Deleuze nos mostra a importância dos trajetos espaciais no percurso do pequeno Hans de Freud e nos relatos clínicos de M. Klein acerca do jovem Richard (trajetos espaciais que não foram valorizados nem por Freud nem por M. Klein: eles estavam preocupados apenas com as representações presentes nos discursos dos meninos). Esses trajetos revelam a circulação dos fluxos e das afecções num espaço bem mais amplo que aquele definido pelo triângulo (Freud) ou o quadrilátero (Lacan) edipiano, pois transporta o sujeito do registro do espaço ao da temporalidade.

Seria preciso dizer aqui uma palavra acerca do fascínio que Deleuze sentia pela literatura norte-americana, especialmente por Whitman[38] e Melville[39]. O que o seduz neste último é redescobrir a figura da singularidade impessoal em cada um dos personagens de seus livros e nos menores detalhes de seus romances, nos quais a lógica do signo é desdobrada em seus cortejos musicais, sonoros e pictóricos. O impacto das intensidades se avalia pela fragmentação imanente à narrativa romanesca, marca indelével da cultura norte-americana.

Com efeito, contrariamente à tradição europeia, marcada pela universalidade e pela exigência premente de totalização, a tradição norte-americana seria permeada pela fragmentação e pela dispersão. A oposição entre a totalização europeia e a dispersão norte-americana estaria igualmente presente, no plano político, no registro das ideias de Estado e de nação que passam diretamente para a escrita[40].

Poderia-se concluir disso que a importância da recepção do pensamento de Deleuze nos Estados Unidos e no Brasil se deve às dimensões fragmentárias e dispersivas de suas respectivas culturas? Uma relação de homologia se constituiria aqui entre a filosofia deleuzeana e as formas culturais do Novo Mundo.


NOTAS

    1. G. Deleuze, “Bartleby, ou la formule”, Critique et Clinique, Paris, Minuit, 1993, pp. 104-5.
    2. Ver M. Foucault, Maladie mentale et psychologie, Paris, PUF, 1954; Naissance de la clinique; une archéologie du regard médical, Paris, PUF, 1963 ; Histoire de la folie à l’áge classique, Paris, Gallimard, 1972, 2ª ed.; La volonté de savoir, Paris, Gallimard, 1976.
    3. G. Deleuze e F. Guattari, L’antiŒdipe, Paris, Minuit, 1973 (nova edição aumentadas).
    4. G. Deleuze e F. Guattari, Mille Plateaux. Capitalisme et schizophrénie, Paris, Minuit, 1980.
    5. G. Deleuze, Critique et clinique, Paris, Minuit, 1993.
    6. G. Deleuze, Proust et les signes, Paris, PUF, 1964.
    7. G. Deleuze, Différence et répétition, Paris, PUF, 1968.
    8. G. Deleuze, Logique du sens, Paris, Minuit, 1969.
    9. G. Deleuze, Présentation de Sacher-Masoch, Paris, Minuit, 1967.
    10. J. Lacan, “Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse”, 1953, Écrits, Paris, Seuil, 1966.
    11. G. Deleuze e F. Guattari, L’antiŒdipe, cap. 1.
    12. S. Freud, “Le refoulement”, Métapsychologie, Paris, Gallimard, 1968.
    13. G. Deleuze e F. Guattari, L’antiŒdipe, cap. 1.
    14. Idem, cap. 2.
    15. J. Lacan, “Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse”, 1953, Écrits.
    16. J. Lacan, “Au-delà du principe de réalité” [1936], Écrits.
    17. J. Lacan, “Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je” [1949], Écrits.
    18. J. Lacan, “L’agressivité en psychanalyse” [1948], Écrits.
    19. J. Lacan, “Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse”, Écrits.
    20. L. Laplanche e J.-B. Pontalis, Vocabulaire de la psychanalyse, Paris, PUF, 4ª ed., 1973.
    21. S. Freud, “Pulsions et destins des pulsions” [1915], Métapsychologie.
    22. S. Freud, “Au-delà du principe du plaisir” [1920], Essais de psychanalyse, Paris, Payot, 1981.
    23. G. Deleuze e F. Guattari, L’antiŒdipe, cap. 2.
    24. Idem, ibid.
    25. Idem, ibid.
    26. J. Lacan, “Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je” [1949], Écrits.
    27. G. Deleuze, Proust et les signes.
    28. G. Deleuze, Logique du sens.
    29. G. Deleuze, “La littérature et la vie”, Critique et clinique, p. 13.
    30. Idem, pp. 13-4.
    31. G. Deleuze, “La littérature et la vie”, Critique et clinique, p. 13.
    32. Idem, p. 16.
    33. M. Proust, “Correspondance avec Madame Strauss”, in G. Deleuze, Critique et clinique, p. 16.
    34. Cf. M. Blanchot, La part du feu e L’entretien infini, in G. Deleuze, Critique et clinique, 13.
    35. G. Deleuze, Critique et clinique, p. 13.
    36. Idem, ibid.
    37. G . Deleuze, “Avant-propos”, Critique et clinique, p . 9. Grifos nossos.
    38. G. Deleuze, “Whitman”, Critique et clinique.
    39. G. Deleuze, “Bartleby, ou la formule”, Critique et clinique.
    40. . Deleuze, “Whitman”, op. cit., pp. 75-6.

In: Gilles Deleuze: uma vida filosófica (org. Éric Alliez). São Paulo: Ed. 34, 2000.

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