INTERFACES ENTRE PSICANÁLISE E FILOSOFIA: POR UMA CLÍNICA DA DIFERENÇA – A ESQUIZOANÁLISE COMO PRÁTICA INTERDISCIPLINAR

Resumo

O presente artigo tem como objetivo desenvolver aproximações e conexões entre a esquizoanálise – chamada também de filosofia da diferença – de Gilles Deleuze e Félix Guattari e a psicanálise freudiana. Tal proposta direciona-se para um árduo trabalho de construção de uma ponte entre os distintos posicionamentos, buscando perceber as implicações e as contribuições desses no cenário clínico contemporâneo. As articulações que serão propostas e exploradas nesse artigo têm como finalidade oferecer novas possibilidades de leitura da psicanálise possibilitando conciliar inovações propostas com o corpus psicanalítico. A proposta desses autores parece ser relevante, simplesmente por não se restringir aos temas psicanalíticos, mas por também possuir um forte viés interdisciplinar em seu estatuto.


1. INTRODUÇÃO

Considerando-se que a psicanálise é uma produção discursiva histórica, cuja contribuição teórica resultaria, justamente, do fato de se constituir em um discurso que propõe a dar conta de questões emergentes de seu tempo, acredita-se ser tarefa dos psicanalistas, atualmente, tentar estar à altura da radicalidade do movimento fundador (NERI, 2003).

Neri (2003) afirma que ao se aproximar da obra de Freud é imprescindível ter em mente que ela assume inúmeras possibilidades de discurso e que também pelo fato dela não ser uma ciência, não existe uma verdade única a qual se busca desvendar. O pensamento freudiano experimenta algumas modificações e isso contribui para suas diversas formas de interpretação. Esse fator reforça até hoje o caráter múltiplo do movimento psicanalítico em apresentar diversas perspectivas e tradições. Essa multiplicidade pode auxiliar a questionar o caráter universal do discurso freudiano e a necessidade de contextualizá-lo.

Para isso, faz-se necessário considerar os textos freudianos como uma obra aberta, cuja genialidade é precisamente colocar a psicanálise na escuta de seu tempo. Nesse sentido, o campo psicanalítico, possibilita novas interpretações que não tenham a intenção de reivindicar a verdade sobre a obra freudiana, como ocorreu com ao retorno a Freud proposto por Lacan (GARCIA, 1999).

O interesse por novas questões que buscam potencializar algumas brechas do pensamento psicanalítico até forçá-lo a ser revisto na contemporaneidade parece ser uma potência da própria psicanálise, na medida em que não cessa de ser revisitada. A questão dos desafios teóricos e/ou clínicos que se colocam hoje em dia à psicanálise remete-se a uma afirmação de Green (1990, p.13) que diz o seguinte: “Se me perguntassem o que há de novo na psicanálise, eu lhes responderia: Freud. Trata-se da possibilidade, sempre em aberto, que a obra de Freud oferece de se fazer trabalhar o discurso psicanalítico”.

De acordo com Garcia (1999), há numerosos textos em que Freud retoma as bases de sua doutrina para ressaltar os seus aspectos essenciais, como fez, por exemplo, no seu último escrito, em 1938, Esboço de psicanálise. Ocorreu que ao escrevê-lo, Freud inventou ainda novos conceitos, explicitando aos seus leitores que a volta aos fundamentos compreende muitas vezes a gestação inesperada do novo, que o ensino se transforma em pesquisa e o saber antigo, em nova verdade.

Por não serem puras abstrações formais produzidas artificialmente, por responderem a problemas reais, os conceitos estão sujeitos a transformações e

mutações, a renovações, que caracterizam a história do saber. Houve uma sensível mudança no conceito de inconsciente, como historicamente introduzido por Freud em 1900, no capítulo VII de A Interpretação dos Sonhos 1, até os textos finais da chamada segunda tópica. O modo como ele é pensado atualmente, após as contribuições da lingüística, da lógica e da etnologia, sobretudo a partir da leitura feita da obra de Freud por Jacques Lacan, também nos mostra visíveis modificações (GARCIA, 1999, p.3).

De qualquer forma, um século se passou e os processos de indagações continuam a ser empreendidos em múltiplas direções, fundamentalmente naquelas colocadas a partir dos momentos de rupturas decisivas na psicanálise teórica e institucional, nos levando a uma reavaliação do percurso freudiano.

2. A PSICANÁLISE E O PENSAMENTO DA DIFERENÇA – UMA NOVA ÉTICA

Deleuze e Guattari (1992) apresentam a sua filosofia da diferença2 cujo propósito é pensar a noção da produção conceitual. Os autores referem-se a agenciamentos de conceitos que se atravessam em sua história, seu devir e suas presentes conexões.

Esse terreno de agenciamento atua na perspectiva de um pensamento em ruptura com a noção de fundamento, de verdade universal. Em ruptura do mesmo modo com a ideia de uma evolução contínua do conceito, na medida em que, para a filosofia da diferença, a temática da verdade desloca-se para a problemática da diferença. Para esse esses autores, os conceitos seriam como efeitos de atualização de um certo campo problemático, organizando-se essencialmente por   meio   de   agenciamentos. Assim, agenciar é experimentar conexões conceituais a partir de um campo problemático para buscar estabelecer encontros de conceitos, nos quais a diferença deve ser concebida não em termos de comparação, oposição, mas em termos de ressonâncias (DELEUZE e GUATTARI, 1995).

Como ressalta Machado (1990), Deleuze já possuía uma vasta obra antes da parceria com Guattari onde é possível até encontrar na concepção de inconsciente esquizoanalítico alguma continuidade com questões filosóficas que já eram antigas. Nesse sentido, Diniz (2008, p.2) a define como “análise micropolítica, análise pragmática, filosofia da diferença e clínica da diferença. Muitos signos são utilizados para apreender o trabalho filosófico dos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari”.

Baremblitt (2007) afirma que a própria concepção renovada de um inconsciente produtivo e imanente, é produto de alianças com o pensamento de Nietzsche e Espinosa. A Ética que propõe a esquizoanálise é baseada na filosofia de Espinosa e Nietzsche que se pautam em preceitos inseridos em um campo prático de experimentação sem valores transcendentes ou modelos referenciais. Ao invés de simples sincretismo, o principal objetivo é extrair de cada módulo o potencial de diferença, motor propulsor do pensamento da Teoria da Esquizoanálise.

Segundo Néri (2003), a referida proposta quando agenciada à psicanálise freudiana

Ganha menos em termos de oposição, contradição e mais no plano de um agenciamento intensivo, de modo a estabelecer encontros desses corpos- conceitos que possam conduzir a um aumento de potência das respectivas obras. Sabemos, com Spinoza, que o encontro dos corpos pode levar a um aumento ou diminuição de potência, mas esse risco não deve nos impedir de tentar realizar esse trabalho Néri (2003, p.5)

Deleuze (1997) revela que o Anti-Édipo tem uma interlocução privilegiada com a psicanálise, sendo importante ressaltar que esse trabalho é ela mesmo resultado do encontro de um psicanalista com um filósofo. Nas palavras do próprio Deleuze em um dos ensaios de Crítica e clínica:

Eu só trabalhava nos conceitos da psicanálise, e, ainda, timidamente. Guattari me falou daquilo a que já chamava as máquinas desejantes, toda uma concepção teórica e prática do inconsciente máquina, inconsciente esquizofrênico. Tive a impressão de que era ele que estava adiantado. Mas com o seu inconsciente- máquina, ele falava ainda em termos de estrutura, de significante, de phallus, etc. Era forçoso, visto dever tanto, a Lacan. Mas eu pensava que isso iria ainda melhor se encontrássemos os conceitos adequados e renunciássemos a noções como estrutura, simbólico ou significante (DELEUZE, 1997, p.47).

O psicanalista Félix Guattari (1986) ao referir-se à revolução extraordinária operada por Freud, afirma que é praticamente impossível não reconhecer o fato de que a invenção do inconsciente, tal qual Freud o descreveu no decorrer de sua obra, contém uma riqueza efervescente e inquietante que não cessa de produzir efeitos. Mas, concomitantemente, Guattari (1992) afirma que esse mesmo inconsciente que recentrou-se na análise do eu, na adaptação à sociedade ou na conformidade a uma ordem significante, em sua versão estruturalista, passa a ser visto como

Um inconsciente que superpõe múltiplos estratos de subjetivações, estratos heterogêneos de extensão e de consciência maiores ou menores. Inconsciente, então, mais “esquizo”, liberado dos grilhões familiaristas, mais voltado para práxis atuais do que para fixações e regressões em relação ao passado. Inconsciente de fluxo e de máquinas abstratas, mais do que inconsciente de estrutura e de linguagem (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.23).

De acordo com Deleuze e Guattari (1976) não é necessário ir ao encontro de elos perdidos de um tempo passado estruturado miticamente. Assim, a clínica passa a ser lugar da diferença, do novo, do intempestivo3. Não haveria história para se remontar, nem um conflito para se superar e muito menos uma memória para se resgatar.

A tarefa da esquizoanálise é desfazer incansavelmente os egos e seus pressupostos, libertar as singularidades pré-pessoais que eles encerram e recalcam, fazer escorrer os fluxos que eles seriam capazes de emitir, de receber ou de interceptar, estabelecer sempre mais finamente as esquizas e os cortes, bem acima das condições de identidade, montar as máquinas desejantes que recortam cada um e o agrupam com outros (DELEUZE; GUAITARI, 1976, p. 460).

Se a psicanálise, como Freud a concebeu, já havia operado um descentramento do indivíduo, rompendo com a tradição racionalista4, observa-se que numa perspectiva esquizoanalítica esse descentramento atinge maior extensão porque remete a um alargamento da noção de subjetividade. Esta pode ser considerada como “produzida por instâncias individuais, coletivas e institucionais, plural, polifônica que não reconhece nenhuma instância dominante de determinação que guie as outras instâncias segundo uma causalidade unívoca” (GUATTARI, 1992, p.23).

Dessa forma, Rolnik (1998, p.74) afirma que “o trabalho do psicólogo social em sua proximidade com o exercício do cartógrafo, do micropolítico, do esquizoanalista e do analista do desejo”. Cada uma dessas particularidades da atividade do cartógrafo configura uma especialidade no campo da análise. Ele será cartógrafo, na medida em que não indicar sentidos, mas criar sentidos a partir de um movimento contínuo de re-significação. “Será psicólogo social, na medida em que assumir a indissociabilidade entre o psíquico e o social” (ROLNIK, 1989, p.75).

Na concepção de Rolnik (1998) Freud foi um exímio cartógrafo da modernidade, pois o processo de subjetivação encontra-se em sua teoria estreitamente articulado à cultura e ao social. O que o psicanalista cartógrafo da atualidade toma de Freud não é necessariamente seu repertório, nem tampouco seus procedimentos, mas a sua escuta de cartógrafo. A clínica como cartografia nasce com a psicanálise, à prática de análise do desejo fundada por Freud é um espaço de iniciação ao exercício do pensamento como produção de cartografias.

3. A ESQUIZOANÁLISE E A SUA INTERFACE COM OUTROS SABERES

Passos e Barros (2000) afirmam que o projeto de Deleuze e Guattari possui características interdisciplinares, pois não há como investigar os processos de subjetivação na clínica sem que esta não se coloque na interface com outros domínios do conhecimento, domínios compostos por diversas linhas que

Vêm ora da arte, ora da política, ora da filosofia, ora de outro domínio qualquer que esteja em processo de nomadização, transmutando-se em devir, sendo minoritário, rompendo-se enquanto totalidade, abandonando seus sujeitos- objetos disciplinados em prol da criação (PASSOS; BARROS, 2000, p. 78).

Além dos autores desenvolverem extensa obra nos campos da filosofia, da arte e da psicanálise, eles também se preocuparam em traçar uma crítica social fundamental (PASSOS; BARROS, 2000).

Viveiros de Castro (2007) ressalta. o lugar destacado que a antropologia tem nas obras desses autores, sendo possível perceber as intensas relações entre ela e a filosofia da diferença. O trabalho de alguns dos antropólogos mais inovadores nas últimas duas décadas, como Roy Wagner, Marilyn Strathern ou Bruno Latour apresentam conexões muito sugestivas com as idéias de Deleuze. O próprio conceito de platôs5 foi tomado de empréstimo do antropólogo e psiquiatra Gregory Bateson6 – a quem Deleuze e Guattari tinham profunda admiração pelo fato de Bateson em suas obras ter introduzido processos transdisciplinares que agenciam antropologia, psiquiatria e outras áreas do conhecimento.

Dosse (1993) afirma que para compreensão dessa obra é necessário ressaltar que os autores vivenciaram os acontecimentos de maio de 68 e o impacto do estruturalismo, principalmente na psicanálise. O estilo peculiar de Deleuze e Guattari também é marcado pela síntese Nietzsche, Marx e Freud, pois esses pensadores lhes serviram como pontos de introdução e de referência para a leitura desta obra em sua relação com a psicanálise.

Com o surgimento esquizoanálise, desenvolvida por Deleuze e Guattari a partir da filosofia da diferença, o conceito de desejo se modifica inteiramente e, junto com ele, uma nova conceituação de criação é proposta. Os autores trazem um intenso debate e crítica a um dos conceitos mais tradicionais da psicanálise, tendo como principal alvo os estudiosos da Escola Freudiana de Paris – EFP, ou seja, a psicanálise de matriz estruturalista capitaneada por Jaccques Lacan. Deleuze7 e Guattari possuíam grande proximidade à Lacan; Deleuze foi convidado por Lacan fazer parte de sua Escola, mas não aceitou, e Guattari foi seu aluno e membro até a dissolução da Escola Freudiana de Paris (DOSSE, 1993).

Deleuze e Guattari (1976) citam algumas diferenças trazidas pela Esquizoanálise em relação á psicanálise tradicional, principalmente no que se refere ao desejo – componente mais importante da Esquizoanálise. Segundo Deleuze e Guattari (1995, p.78), como “análise do desejo, a Esquizoanálise é imediatamente prática, imediatamente política, quer se trate de um indivíduo, de um grupo ou de uma sociedade”. Na compreensão esquizoanalítica, o desejo não é percebido enquanto carência ou falta, não produz para suprir e não necessita de nada que o preencha, ele apensas transborda. É o desejo que produz a realidade e constitui as nossas relações conforme dirão os autores no texto:

Se o desejo produz, ele produz real. Se o desejo é produtor, ele só pode sê-lo na realidade, e de realidade. O desejo é esse conjunto de sínteses passivas8 que maquinam os objetos parciais, os fluxos e os corpos, e que funcionam como unidades de produção. O real decorre disso, é o resultado das sínteses passivas do desejo como autopromoção do inconsciente (DELEUZE; GUATTARI, 1976, p. 43).

O que a leitura desses autores procura mostrar é que o desejo tornou-se uma falta em virtude de uma série contingente de condições sócio-históricas. A rigor, o ser objetivo do desejo é o real em si mesmo assim como as necessidades terminam por derivar do desejo – e não contrário -, logo a falta – a grande reminiscência idealista e transcendente presente na psicanálise, sobretudo em Lacan – é “um contra efeito do desejo depositado no real natural e social” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 44).

Os autores também se distanciam de qualquer complexo organizador e estruturante do desejo, também se afastam de toda e qualquer referência transcendente. O uso transcendente é o proposto pela psicanálise freudiana, através das operações edipianas. Nesse caso específico Deleuze e Guattari (1976) realizam um amplo questionamento e discussão, principalmente no que concerne ao inconsciente e a maneira como o concebem.

De acordo com Orlandi (1995), Deleuze e Guattari parecem indicar um inconsciente caracterizado como imanente. Conceber o inconsciente dessa maneira implica colocar todos os seus elementos em um mesmo nível, sem hierarquias. Em outras palavras, nenhuma relação é privilegiada na imanência, nem a semelhança, nem a proximidade, nem a contigüidade. Não há nessa perspectiva nenhuma identidade constitutiva necessária. As relações que aí se dão não confluem para um fim pré- estabelecido, nem tampouco se submetem a alguma determinação primaria ou essencial.

Para Deleuze e Guattari (1976), o inconsciente não é um organismo, nem atua como tal. Ao contrário, trata-se de um plano de fluxos livres e não codificados e com isso, se quer dizer que não há nenhuma regra fundamental ou reguladora em seus arranjos.

Desse modo, Orlandi (1995) afirma que é possível ressaltar outro aspecto que emerge como conseqüência da noção de imanência que é a coextensividade do inconsciente com o plano sócio- histórico. Quer dizer, ao invés de buscar um inconsciente individual, fechado e estruturado dentro do sujeito, estabelece-se agora um sistema aberto, “um campo de fluência livres que opera como uma usina intensiva, numa lógica maquínica9 produtora de elementos” (ORLANDI, 1995, p. 180), a procura de cada vez mais interações, em uma produção constante.

Desse modo, o inconsciente não é figurativo, tampouco simbólico, funciona mais por uma lógica intensiva, ao desejo nada falta, pois não é restitutivo de uma falta, ou de uma fantasia originária, mas o desejo sempre é produção e positividade, afirmação e expressão de um processo intensivo. O inconsciente extravasa, não deixa de se desterritorializar e não partilha da lógica da negatividade, mas sim das multiplicidades positivas e contínuas (DELEUZE; GUATTARI, 1976).

Percebe-se, dessa forma, a diferença entre a concepção psicanalítica tradicional e a de Deleuze e Guattari acerca do desejo. “A idéia capital de Deleuze é a positividade do desejo, potência essencialmente produtiva” (DOUMOULIÉ 2005, p. 169).

Assim, a proposta de Deleuze e Guattari é encontrar zonas de vizinhança com outros elementos por onde o desejo possa passar e criar novas possibilidades de vida – o que a Esquizoanálise denomina como políticas. Para os autores os processos de subjetivação resultam dessas múltiplas conexões, “pois o desejo se faz por rizomas10, porque é sempre por rizoma que o desejo se move e produz” (DELEUZE; GUATTARI 1995, p. 30).

Para os autores, o inconsciente, pensado como rizoma, não comporta nenhuma hierarquia em sua composição, constituindo arranjos singulares, que possibilitam a formação de territórios inéditos e a construção de uma ética da diferença.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A literatura vigente já sinaliza a importância de se repensar a psicanálise dialogando com outras áreas do saber. Aqui a filosofia se faz presente e acentua a atenção para novos diálogos. Neste sentido, o presente trabalho buscou perceber o impacto possível de articulação entre a e a psicanálise freudiana. Cabe considerar a figuração positiva de alguns conceitos da metapsicologia de Freud na proposta que ali se apresenta.

Assim, foi possível revisitar alguns pontos da obra de Freud que parecem convergir com a proposta do inconsciente produtivo de Deleuze e Guattari. Porém, não se procurou aqui conciliá-los, e sim, agenciá-los com o intuito de fomentar práticas inovadoras no tratamento clínico contemporâneo, derivadas dessa combinação. A proposta da esquizoanálise parece ser relevante, simplesmente por não se restringir aos temas psicanalíticos que esses autores atravessam e transformam, mas por também possuir um forte viés interdisciplinar em seu estatuto. A Esquizoanálise é um modo de pensamento que se compõe a partir de interações entre filosofia, ciência e arte, ultrapassando e mesmo diluindo as fronteiras convencionalmente construídas entre estes campos do saber.

Questionar o valor de se colocar o problema dessa relação em outras bases, partindo do princípio de que há uma presença efetiva de conceitos psicanalíticos na elaboração conceitual da esquizoanálise, mas agora imbricados com as concepções singulares da filosofia da diferença de Deleuze e Guattari. Desse modo, emerge a inquietação no modus operandis para se explorar as conexões existentes entre a psicanálise e filosofia com vista á abertura para um campo de produção de novos modos de existir que estabelece um plano Ético: um diferencial de potência, um compromisso vital que pode ser vivido em seus atravessamentos, transversalizando os sentidos e espaços alternativos ao desejo. Daí pensar acerca dos agenciamentos e alianças que podem expandir a potência analítica da clínica. Acreditamos que seja possível discutir de que modo a perspectiva esquizoanalítica pode impor a psicanálise freudiana questões pertinentes que certamente merecem ser investigadas.

Propor um fazer clínico fundamentado na diferença e não em princípios do idêntico, ou seja, uma prática clinica interdisciplinar que tenha como pretensão romper com as barreiras dos especialismos e dos territórios fechados para alcançar uma conjugação mais plena entre os saberes que ultrapasse uma dimensão simplesmente dialógica. A produção que tem se valido da filosofia de Deleuze e Guattari assume contornos analíticos até então inéditos, experimentando o intensivo que os conceitos elaborados pela dupla de autores comportam. Trata-se então de propor uma escuta apoiada no pensamento da diferença, em que a noção de subjetividade é pensada, potencializando assim a construção de uma prática voltada às singularidades dos sujeitos atendidos. Está-se diante de um novo olhar sobre a subjetividade que produz novos desafios e possibilidades na clínica.


Artigo escrito por Marcus Alexandre Cavalcanti, Cristina Novikoff, Eliane Cristina Tenório Cavalcanti


NOTAS

  1. (FREUD, 1980).
  2. Segundo Vasconcellos (2005), obra de Gilles Deleuze compreende um esforço de crítica a um tipo de pensamento designado de representação e entendido como constituição de uma filosofia da diferença. Tanto a crítica à representação quanto a construção de uma filosofia da diferença são duas faces de um mesmo movimento de pensamento; a crítica e a clínica são indissociáveis em Deleuze. A pretensão é de abrir o uno e o múltiplo, desarmar as segmentariedades duais, lineares, centralizadas, concêntricas, hierarquizadas etc., para permitir a proliferação das multiplicidades
  3. Sobre esta noção, Deleuze e Guattari (1995, p. 95), apoiados em Nietzsche, definiram: “o intempestivo, outro nome para a hecceidade, o devir, a inocência do devir, isto é, o esquecimento contra a memória, a geografia contra a história, o mapa contra o decalque, o rizoma contra a arborescência”.
  4. A psicanálise nasce problematizando o status da tradição epistemológica centrada na razão, a questiona como único acesso à verdade, proclamando um sujeito alicerçado em seu inconsciente, nos seus desejos inconfessos e pulsões que precisam a todo custo de controle, ocasionando assim um impacto inegável no pensamento ocidental. Freud (1900, p. 554) preconiza este descentramento da razão ao declarar que “o inconsciente é a base geral da vida psíquica. O inconsciente é a esfera mais ampla, que inclui em si a esfera menor do consciente” .
  5. Tomando emprestada certa terminologia do antropólogo, cientista social e lingüista Gregory Bateson, Deleuze e Guattari (1995, p. 20) vão dar o nome de platôs às “regiões de intensidade contínua, que são constituídas de tal maneira que não se deixam interromper por uma terminação exterior, como também não se deixam ir em direção a um ponto culminante”.
  6. A rede de parcerias que estabeleceu em suas pesquisas envolve as ciências sociais – especialmente, a antropologia, a etnografia, a psiquiatria, a ecologia, a biologia e a cibernética. Gregory Bateson foi casado com a também antropóloga Margaret Mead (LIPSET, 1982).
  7. Ménard (2005) afirma que Deleuze era leitor atento de Lacan desde antes de seu encontro com Guattari. Em 1974, ele escreve um pequeno texto − “Em que se pode reconhecer o estruturalismo?” − em que, numa leitura singular, presta sua homenagem ao estruturalismo em voga na França no início dos anos sessenta. Alguns meses após a publicação do Anti- Édipo, Lacan chamou Deleuze ao seu consultório, onde lhe confidenciou sua insatisfação com seus discípulos, os mais próximos, e disse-lhe que precisava de gente como ele.
  8. Deleuze e Guattari (1976) afirmam que fazem parte do processo produtivo do inconsciente três sínteses passivas: 1) a síntese conectiva ou produção de produção; 2) a síntese disjuntiva ou produção de registro; 3) a síntese conjuntiva ou produção de consumo. O psiquismo extrapola um suposto internalismo de um envelope corporal, tendo em vista que na filosofia deleuzeana estipula-se a constituição de um campo transcendental na relação entre consciência e mundo, em que o sujeito não fica reduzido ao intrapsíquico. Portanto, abandona-se uma postura filosófica racionalista, o cogito, em que o Eu apareceria como entidade que pensa e atribui significado ao dado e ao mundo.
  9. A noção de Rizoma é definida em Mil Platôs (1995). Ela surgiu da botânica, onde é definido como um caule subterrâneo responsável pela produção de ramos aéreos com características de raízes. Os autores ampliam a noção articulando-a a uma rede conectiva de vários sentidos. A noção de rizoma é muito útil para que as lógicas binárias da psicanálise sejam ultrapassadas em suas determinações dualísticas, compostas por unidades e sistemas hierárquicos. A noção de rizoma é totalmente diferente do modelo clássico da árvore, cuja tradição é de pensar os modos de subjetividade por meio de sistemas centrados, hierárquicos e binários.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Filiação intensiva e aliança demoníaca. Novos Estudos, 2007.


FONTE

Marcus Alexandre Cavalcanti, Cristina Novikoff, Eliane Crisitna Tenório Cavalcanti. Interfaces entre psicanálise e filosofia por uma clínica da diferença a esquizoanálise como prática interdisciplinar. In: Revista Valore, v.1, n.1, 2016. pp.31-41.

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