Dizem que não existe livro que traduza 68: isso é falso! Esse livro é Mil platôs. Mil platôs é o materialismo histórico em ato de nossa época.
Contrastando radicalmente com certa deriva atual, os Mil platôs reinventam as ciências do espírito (deixando bem claro que, na tradição em que se situam Deleuze e Guattari, geist é o cérebro), renovando o ponto de vista da historicidade, em sua dimensão ontológica e constitutiva. Os Mil platôs precedem o pós-moderno e as teorias de hermenêutica fraca: antecipam uma nova teoria da expressão, um novo ponto de vista ontológico — instrumento graças ao qual se encontram em posição de combater a pós-modernidade, desvelando e dinamitando suas estruturas.
Trata-se aqui de um pensamento forte, mesmo quando se aplica à “fraqueza” do cotidiano. Quanto ao seu projeto, trata-se de apreender o criado, do ponto de vista da criação. Esse projeto não tem nada de idealista: a força criadora é um rizoma material, ao mesmo tempo máquina e espírito, natureza e indivíduo, singularidade e multiplicidade — e o palco é a história, de 10.000 a.C. aos dias de hoje. O moderno e o pós-moderno são ruminados e digeridos, e reaparecem contribuindo para fertilizar abundantemente uma hermenêutica do porvir. Relendo os Mil platôs anos mais tarde, o que é mais impressionante é a incrível capacidade de antecipação que aí se exprime.
O desenvolvimento da informática e da automação, os novos fenômenos da sociedade mediática e da interação comunicacional, as novas vias percorridas pelas ciências naturais e pela tecnologia científica, em eletrônica, biologia, ecologia, etc., são apenas previstos, mas já levados em conta como horizonte epistemológico, e não como simples tecido fenomenológico sofrendo uma extraordinária aceleração. Mas a superfície do quadro no qual se desenrola a dramaturgia do futuro é, na verdade, ontológica — uma superfície dura e irredutível, precisamente ontológica e não transcendental, constitutiva e não sistêmica, criativa e não liberal.
Se toda filosofia assume e determina sua própria fenomenologia, uma nova fenomenologia se afirma aqui com força. Ela se caracteriza pelo processo que remete o mundo à produção, a produção à subjetividade, a subjetividade à potência do desejo, a potência do desejo ao sistema de enunciação, a enunciação à expressão. E vice-versa. E no interior da linha traçada a partir do “vice-versa”, quer dizer, indo da expressão subjetiva à superfície do mundo, à historicidade em ato, que se revela o sentido do processo (ou ainda a única ideologia que a imanência absoluta pode se permitir): o sentido do processo é o da abstração.
O sujeito que produz o mundo, na horizontalidade ampliada de suas projeções, efetua ele mesmo, cada vez mais, sua própria realização. À primeira vista, o horizonte do mundo construído por Deleuze-Guattari parece animista: mas muito rapidamente se vê que esse animismo traduz a mais alta abstração, o processo incessante dos agenciamentos maquínicos e das subjetividades se elevando a uma abstração cada vez mais alta.
Nesse mundo de cavernas, de dobras, de rupturas, de reconstruções, o cérebro humano se dedica a compreender, antes de mais nada, sua própria transformação, seu próprio deslocamento, para além da conflitualidade, nesse lugar em que reina a mais alta abstração. Mas essa abstração é novamente desejo.
Antônio Negri
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