Perguntava-se outrora: “que é o existencialismo?”. Agora: que é o estruturalismo? Essas questões têm um vivo interesse, com a condição de serem atuais, de se referirem às obras que estão sendo feitas. Estamos em 1967. Portanto, não podemos invocar o caráter inacabado das obras para evitarmos responder; é somente este caráter que confere sentido à questão. Por isso, a questão “Que é o estruturalismo?” é chamada a sofrer algumas transformações. Em primeiro lugar, quem é estruturalista? Há costumes no mais atual. O costume designa, escalona errada ou corretamente: um linguista como R. Jakobson; um sociólogo como C. Lévi-Strauss; um psicanalista J. Lacan; um filósofo que renova a epistemologia, como M. Foucault; um filósofo marxista que retoma o problema da interpretação do marxismo, como Althusser; um crítico literário como R. Barthes; escritores como os do grupo Tel Quel… Uns não recusam o termo “estruturalismo”, e empregam “estrutura”, “estrutural”. Os outros preferem o termo saussuriano “sistema”. Pensadores bem diferentes, e de gerações distintas, alguns exerceram sobre outros uma influência real. Contudo, o mais importante é a extrema diversidade dos domínios que eles exploram. Cada um encontra problemas, métodos, soluções que têm relações de analogia, como que participando de um ar livre do tempo, de um espírito do tempo, mas que se mede com as descobertas e criações singulares [239] em cada um desses domínios. As palavras em –ismo, neste sentido, são perfeitamente fundadas.
É com razão que se apresenta a linguística como origem do estruturalismo: não somente Saussure, mas também a escola de Moscou, a escola de Praga. E se o estruturalismo se estende, em seguida, a outros domínios, não se trata mais, desta vez, de analogia: não é simplesmente para instaurar métodos “equivalentes” aos que antes tiveram êxito na análise da linguagem. Na verdade, só há estrutura daquilo que é linguagem, nem que seja uma linguagem esotérica ou mesmo não-verbal. Só há estrutura do inconsciente na medida em que o inconsciente fala e é linguagem. Só há estrutura dos corpos à medida que se julga que os corpos falam com uma linguagem que é a dos sintomas. As próprias coisas só têm estrutura à medida que mantem um discurso silencioso, que é a linguagem dos signos. Então, a questão “Que é o estruturalismo?” transforma-se ainda – Seria melhor perguntarmos: em que se reconhecem aqueles que chamamos de estruturalistas? E que é que eles próprios reconhecem? Tanto isso é verdade, que só reconhecemos as pessoas, de um modo visível, através das coisas invisíveis e insensíveis que elas reconhecem à sua maneira. Como fazem os estruturalistas para reconhecerem uma linguagem em alguma coisa, a linguagem própria a um domínio? Que é que eles reencontram nesse domínio? Portanto, propomo-nos somente extrair certos critérios formais de reconhecimento, os mais simples, invocando cada vez o exemplo dos autores citados, qualquer que seja a diversidade de seus trabalhos e projetos.
Primeiro critério: o simbólico
Estamos habituados, quase condicionados, a uma certa distinção ou correlação entre o real e o imaginário. Todo o nosso pensamento mantém um jogo dialético entre essas duas noções. Mesmo quando a filosofia clássica fala da inteligência ou entendimento puros, trata-se ainda de uma faculdade definida por sua aptidão a apreender o real em seu fundo, o real “em verdade”, o real tal qual ele é, por oposição, mas também em relação aos poderes da imaginação. Citemos movimentos [240] criadores completamente diferentes: o romantismo, o simbolismo, o surrealismo… Ora invocamos o ponto transcendente em que o real e o imaginário se penetram e se unem, ora sua fronteira aguda, como o gume de sua diferença. De todas as maneiras, permanecemos na oposição e na complementaridade do imaginário e do real – pelo menos na interpretação tradicional do romantismo, do simbolismo etc. Até mesmo o freudismo é interpretado na perspectiva de dois princípios: princípio de realidade com sua força de decepção, princípio de prazer com sua potência de satisfação alucinatória. Com maior razão, métodos como os de Jung e de Bachelard inscrevem-se inteiramente no real e no imaginário, no quadro de suas relações complexas, unidade transcendente e tensão liminar, fusão e corte.
Ora, o primeiro critério do estruturalismo é a descoberta e o reconhecimento de uma terceira ordem, de um terceiro reino: o do simbólico. É a recusa de confundir o simbólico com o imaginário, bem como com o real, que constitui a primeira dimensão do estruturalismo. Ainda aí, tudo começou pela linguística: para além da palavra em sua realidade e em suas partes sonoras, para além das imagens e dos conceitos associados às palavras, o linguista estruturalista descobre um elemento de natureza completamente diferente, objeto estrutural. E talvez seja nesse elemento simbólico que os romancistas do grupo Tel Quel queiram instalar-se, tanto para renovarem as realidades sonoras quanto os relatos associados. Para além da história dos homens, e da história das ideias, Michel Foucault descobre um solo mais profundo, subterrâneo, que constitui o objeto daquilo que ele chama de a arqueologia do pensamento. Por trás dos homens reais, por trás das ideologias e de suas relações imaginárias, Louis Althusser descobre um domínio mais profundo como objeto de ciência e de filosofia.
Já possuíamos muitos pais, em psicanálise: em primeiro lugar, um pai real, mas também imagens de pai. E todos os nossos dramas passavam-se nas tensas relações do real e do imaginário. Jacques Lacan descobre um terceiro pai, mais fundamental, pai simbólico ou Nome-do-pai. Não somente o real e o imaginário, mas suas relações, e as perturbações dessas relações, devem ser pensados como o limite de um processo no qual eles se constituem a partir do simbólico. [241] Em Lacan, e também em outros estruturalistas, o simbólico como elemento da estrutura está no princípio de uma gênese: a estrutura se encarna nas realidades e nas imagens segundo séries determináveis; mais ainda, elas as constitui encarnando-se, mas não deriva delas, sendo mais profunda que elas, subsolo para todos os solos do real como para todos os céus da imaginação. Inversamente, catástrofes próprias à ordem simbólica dão conta das perturbações aparentes do real e do imaginário: assim, no caso de O homem dos lobos, tal como Lacan o interpreta, é porque o tema da castração permanece não-simbolizado (“forclusão”) que ele ressurge no real, sob a forma alucinatória do dedo cortado[1].
Podemos numerar o real, o imaginário e o simbólico: 1, 2, 3. Mas talvez esses organismos tenham um valor cardinal tanto quanto ordinal. Porque o real, em si mesmo, não é separável de certo ideal de unificação ou de totalização: o real tende a fazer um, ele é uno em sua “verdade”. Desde que vemos dois em “um”, desde que desdobramos, o imaginário aparece em pessoa, mesmo que seja no real que ele exerça sua ação. Por exemplo: o pai real é um, ou quer sê-lo segundo sua lei; mas a imagem de pai, em si mesma, é sempre dupla, clivada segundo uma lei do dual. Ela é projetada, no mínimo, sobre duas pessoas, uma assumindo o pai de jogo, o pai-cômico, a outra, o pai de trabalho e de ideal: tal como o Príncipe de Gales em Shakespeare, que passa de uma imagem de pai a outra, de Falstaff à coroa. O imaginário define-se por dois jogos de espelho, de desdobramento, de identificação e de projeção invertidas, sempre ao modo do duplo[2]. Mas, por seu turno, o simbólico talvez seja três. Não é somente o terceiro para além do real e do imaginário. Existe sempre um terceiro a ser procurado no próprio simbólico; a estrutura é, ao menos, triádica, sem o que ela não “circularia” – terceiro ao mesmo tempo irreal e, no entanto, não-imaginável.
Veremos o porquê; mas já o primeiro critério consiste nisso: a posição de uma ordem simbólica, [242] irredutível à ordem do real, à ordem do imaginário, e mais profundo do que elas. Ainda não sabemos absolutamente em que consiste esse elemento simbólico. Podemos dizer, pelo menos, que a estrutura correspondente não tem relação alguma com uma forma sensível, nem com uma figura da imaginação, nem com uma essência inteligível. Nada que ver com uma forma: porque a estrutura de maneira alguma se define por uma autonomia do todo, por uma pregnância do todo sobre as partes, por uma Gestalt que se exerceria no real e na percepção; a estrutura se define, ao contrário, pela natureza de certos elementos atômicos que pretendem dar conta ao mesmo tempo da formação dos todos e da variação de suas partes. Nada que ver, também, com figuras da imaginação, embora o estruturalismo seja inteiramente penetrado de reflexões sobre a retórica, a metáfora e a metonímia; porque essas próprias figuras implicam deslocamentos estruturais que devem dar conta ao mesmo tempo do próprio e do figurado. Nada que ver, enfim, com uma essência; porque se trata de uma combinatória referente a elementos formais que, em si mesmos, não têm nem forma, nem significação, nem representação, nem conteúdo, nem realidade empírica dada, nem modelo funcional hipotético, nem inteligibilidade por detrás das aparências; ninguém melhor do que Louis Althusser assinalou o estatuto da estrutura como idêntico à própria “Teoria” – e o simbólico deve ser entendido como a produção do objeto teórico e específico.
Ora o estruturalismo é agressivo: quando denuncia o desconhecimento geral desta última categoria simbólica, para além do imaginário e do real. Ora ele é interpretativo: quando renova nossa interpretação das obras a partir dessa categoria, e pretende descobrir um ponto original onde se faz a linguagem, elaboram-se as obras, unem-se as ideias e as ações. Romantismo, simbolismo, mas também freudismo, marxismo, tornam-se, assim, o objeto de reinterpretações profundas. Mais ainda: é a obra mítica, a obra poética, a obra filosófica, as próprias obras práticas que estão sujeitas à interpretação estrutural. Mas esta reinterpretação só vale à medida que reanima obras novas que são as de hoje, como se o simbólico fosse uma fonte, inseparavelmente, de interpretação e de criação vivas. [243]
Segundo critério: local ou de posição
Em que consiste o elemento simbólico da estrutura? Sentimos a necessidade de ir lentamente, de dizer e de redizer antes o que ele não é. Distinto do real e do imaginário, ele não pode definir-se nem por realidades pré-existentes às quais remeteria, e que designaria, nem por conteúdos imaginários ou conceptuais que ele implicaria, e que lhe dariam uma significação. Os elementos de uma estrutura não têm nem designação extrínseca nem significação intrínseca. O que resta? Como lembra com rigor Lévi-Strauss, eles têm tão-somente um sentido: um sentido que é necessária e unicamente de “posição”[3]. Não se trata de um local numa extensão real, nem de lugares em extensões imaginárias, mas de locais e de lugares num espaço propriamente estrutural, isto é, topológico. Aquilo que é estrutural é o espaço, mas um espaço inextenso, pré-extensivo, puro spatium constituído cada vez mais como ordem de vizinhança, em que a noção de vizinhança tem precisamente, antes, um sentido ordinal e não uma significação na extensão. Ou então em biologia genética: os genes fazem parte de uma estrutura à medida que são inseparáveis de “loci”, lugares capazes de mudar de relações no interior do cromossomo. Em suma, os locais num espaço puramente estrutural são primeiros relativamente às coisas e aos seres reais que vêm ocupá-los; primeiros também em relação aos papéis e aos acontecimentos sempre um pouco imaginários que aparecem necessariamente quando são ocupados.
A ambição científica do estruturalismo não é quantitativa, mas topológica e relacional: Lévi-Strauss coloca constantemente este princípio. E quando Althusser fala de estrutura econômica, ele precisa que os verdadeiros “sujeitos” não são aqueles que vêm ocupar os locais, indivíduos concretos ou homens reais; também os verdadeiros objetos não são os papéis que eles desempenham e os acontecimentos que se produzem, mas antes os locais num espaço topológico e estrutural definido pelas relações de produção[4]. Quando Foucault define [244] determinações tais como a morte, o desejo, o trabalho, o jogo, não as considera como dimensões da existência humana empírica, mas antes como a qualificação de locais ou de posições que tornarão mortais e “morrentes”, ou desejantes, ou trabalhadores, ou jogadores aqueles que virão ocupá-los; mas que só virão ocupá-los secundariamente, desempenhando seus papéis segundo uma ordem de vizinhança que é a da própria estrutura. É por isso que Foucault pode propor uma nova repartição do empírico e do transcendental, sendo este último definido por uma ordem de locais independentemente daqueles que os ocupam empiricamente[5]. O estruturalismo não é separável de uma filosofia transcendental nova, em que os lugares prevalecem sobre aquilo que os preenche. Pai, mãe etc. são antes lugares numa estrutura; e, se somos mortais, é entrando na fila, vindo a tal lugar, marcado na estrutura segundo esta ordem topológica das vizinhanças (mesmo quando antecipamos nossa vez).
“Não é somente o sujeito, mas também os sujeitos tomados em sua intersubjetividade que fazem a fila… e que modelam seu ser no próprio momento em que percorrem a cadeia significante… O deslocamento do significante determina os sujeitos em seus atos, em seu destino, em suas recusas, em suas cegueiras, em seus sucessos e em sua sorte, não obstante seus dons inatos e sua aquisição social, sem levar em conta o caráter ou o sexo…”[6]. Não podemos dizer melhor que a psicologia empírica acha-se não somente fundada, mas determinada por uma topologia transcendental.
Deste critério local ou posicional, decorrem várias consequências. E, antes de tudo, se os elementos simbólicos não têm designação extrínseca nem significação intrínseca, mas somente um sentido de posição, devemos afirmar em princípio que o sentido resulta sempre da combinação de elementos que não são eles próprios significantes[7]. Como diz Lévi- Strauss, e sua discussão com Paul Ricoeur, o sentido é sempre um resultado, um efeito: não somente um efeito como produto, mas um efeito de óptica, um efeito de linguagem, um efeito de posição. Há [245] profundamente um não- sentido do sentido, de onde resulta o próprio sentido. Não que voltemos, assim, ao que foi chamado de filosofia do absurdo. Porque, para a filosofia do absurdo, é o sentido que falta, essencialmente. Para o estruturalismo, ao contrário, sempre há demasiado sentido, uma superprodução, uma sobredeterminação do sentido, sempre produzido em excesso pela combinação de locais na estrutura. (Donde a importância, em Althusser, por exemplo, do conceito de sobredeterminação). O não-sentido não é de forma alguma o absurdo ou o contrário do sentido, mas aquilo que o faz valer e o produz circulando na estrutura. O estruturalismo nada deve a Albert Camus, porém, muito a Lewis Carroll.
A segunda consequência é o gosto do estruturalismo por certos jogos e certo teatro, por certos espaços de jogo e de teatro. Não é por acaso que Lévi-Strauss se refere frequentemente à teoria dos jogos, e dá tanta importância às cartas de jogo. E Lacan, a metáforas de jogos que são mais do que metáforas: não somente o coringa que corre na estrutura, mas o local do morto que circula no bridge. Os jogos mais nobres, como o xadrez, são os que organizam uma combinatória dos locais num puro spatium infinitamente mais profundo que a extensão real do tabuleiro e que a extensão imaginária de cada figura. Ou então, Althusser interrompe seu comentário de Marx para falar de teatro, mas de um teatro que não é nem de realidade nem de ideias, puro teatro de locais e de posições cujo princípio ele vê em Brecht, e que talvez encontrasse hoje sua expressão mais acabada em Armand Gatti. Em suma, o próprio manifesto do estruturalismo deve ser procurado na fórmula célebre, eminentemente poética e teatral: pensar é jogar os dados.
A terceira consequência é que o estruturalismo não é separável de um novo materialismo, de um novo ateísmo, de um novo anti-humanismo. Porque o local é primeiro em relação àquilo que ocupa, não bastará certamente colocar o homem no lugar de Deus para se mudar a estrutura. E se este lugar é o lugar do morto, a morte de Deus também significa a morte do homem, em favor, esperamos, de algo a vir, mas que só pode vir na estrutura e por sua mutação. Eis como aparece [246] o caráter imaginário do homem (Foucault), ou o caráter ideológico do humanismo (Althusser).
Terceiro critério: o diferencial e o singular
Em que consistem, afinal, esses elementos simbólicos ou unidades de posição? Retornemos ao modelo linguístico. Aquilo que é distinto ao mesmo tempo das partes sonoras, e das imagens e conceitos associados, é chamado de fonema. O fonema é a menor unidade linguística capaz de diferenciar dois termos de significação diversa: por exemplo, “bilhar” e “pilhar”[8]. É claro que o fonema se encarna em letras, sílabas e sons, mas não se reduz a eles. Ademais, as letras, as sílabas e os sons dão-lhe uma independência, enquanto, em si mesmo, ele é inseparável da relação fonemática que o une a outros fonemas: b/p. Os fonemas não existem independentemente das relações nas quais entram e pelas quais se determinam reciprocamente.
Podemos distinguir três tipos de relações. Um primeiro tipo se estabelece entre elementos que gozam de independência ou de autonomia: por exemplo 3+2, ou mesmo 2/3. Os elementos são reais, e também essas relações devem ser ditas reais. Um segundo tipo de relações, por exemplo x² + y² – R² = 0, se estabelece entre termos cujo valor não é especificado, mas que devem, no entanto, em cada caso ter um valor determinado. Mas o terceiro tipo se estabelece entre elementos que, entretanto, se determinam reciprocamente na relação: assim ydy + xdx = 0, ou dy/dx = x/y. Tais relações são simbólicas, e os elementos correspondentes são tomados numa relação diferencial. Dy é completamente indeterminado com relação a y, dx é completamente indeterminado com relação a x: nenhum tem nem existência, nem valor, nem significação. No entanto, a relação dy/dx é completamente determinada, sendo que os dois elementos se determinam reciprocamente na relação. É este processo de uma determinação recíproca no interior da relação que nos permite definir a natureza simbólica. Acontece que procuramos a origem do estruturalismo do lado da axiomática. E é verdade que [247] Bourbaki, por exemplo, emprega o termo estrutura. Mas é, parece-nos, num sentido muito diferente do estruturalismo, porque se trata de relações entre elementos não-especificados, mesmo qualitativamente, e não de elementos que se especificam reciprocamente em relações. A axiomática, neste sentido, seria ainda imaginária, não propriamente falando simbólica. A origem matemática do estruturalismo deve, antes, ser procurada do lado do cálculo diferencial, e precisamente na interpretação que dele deram Weierstrass e Russell, interpretação estática e ordinal, que libera definitivamente o cálculo de toda referência ao infinitamente pequeno e o integra numa pura lógica das relações.
Às determinações das relações diferenciais correspondem singularidades, repartições de pontos singulares que caracterizam as curvas ou as figuras (um triângulo, por exemplo, tem três pontos singulares). Assim, a determinação das relações fonemáticas próprias a determinada língua fornece as singularidades, na vizinhança das quais se constituem as sonoridades e significações da língua. A determinação recíproca dos elementos simbólicos prolonga-se, deste modo, na determinação completa dos pontos singulares que constituem um espaço correspondente a esses elementos. A noção capital de singularidade, tomada ao pé da letra, parece pertencer a todos os domínios em que há estrutura. A fórmula geral “pensar é jogar os dados” remete às singularidades representadas pelos pontos brilhantes sobre os dados. Toda estrutura apresenta os dois aspectos seguintes: um sistema de relações diferenciais segundo as quais os elementos simbólicos se determinam reciprocamente, um sistema de singularidades que corresponde a essas relações e traça o espaço da estrutura. Toda estrutura é uma multiplicidade. A questão: há estrutura em qualquer domínio? deve, pois, ser assim precisada: podemos, neste ou naquele domínio, extrair elementos simbólicos, relações diferenciais e pontos singulares que lhes são próprios? Os elementos simbólicos encarnam-se nos seres e objetos reais do domínio considerado; as relações diferenciais atualizam-se nas relações reais entre esses seres; as singularidades são outros tantos lugares na estrutura, que distribuem os papéis ou atitudes imaginárias dos seres ou objetos que vêm ocupá-los. [248]
Não se trata de metáforas matemáticas. Em cada domínio é preciso descobrir os elementos, as relações e os pontos. Quando Lévi-Strauss empreende o estudo das estruturas elementares do parentesco, não considera apenas pais reais numa sociedade, nem as imagens de pai que têm curso nos mitos dessa sociedade. Pretende descobrir verdadeiros fonemas de parentesco, isto é, parentemas, unidades de posição que não existem independentemente das relações diferenciais em que eles entram e se determinam reciprocamente. É assim que as quatro relações irmão/irmã, marido/mulher, pai/filho, tio materno/filho da irmã, formam a estrutura mais simples. E a esta combinação das “apelações parentais” correspondem, mas sem semelhança e de maneira complexa, “atitudes entre pais” que efetuam as singularidades determinadas no sistema. Podemos também proceder no sentido inverso: partir das singularidades para determinar as relações diferenciais entre elementos simbólicos últimos. É assim que, tomando o exemplo do mito de Édipo, Lévi-Strauss parte das singularidades dos relatos (Édipo desposa sua mãe, mata seu pai, imola a Esfinge, é chamado de pé-inchado etc.) para dele induzir as relações diferenciais entre “mitemas” que se determinam reciprocamente (relações de parentesco subestimadas, negação da autoctonia, persistência da autoctonia)[9]. Em todo caso, sempre os elementos simbólicos e suas relações determinam a natureza dos seres e objetos que vêm efetuá-los, ao passo que as singularidades formam uma ordem dos lugares, ordem que determina simultaneamente os papéis e atitudes desses seres enquanto os ocupam. A determinação da estrutura culmina, assim, numa teoria das atitudes que exprimem seu funcionamento.
As singularidades correspondem com os elementos simbólicos e suas relações, mas não se assemelham a eles. Diríamos, antes, que elas “simbolizam” com eles. Derivam deles, pois toda determinação de relações diferenciais acarreta uma repartição de pontos singulares. Mas, por exemplo: os valores de relações diferenciais encarnam-se [249] em espécies, ao passo que as singularidades se encarnam em partes orgânicas que correspondem a cada espécie. Uns constituem variáveis, os outros, funções. Uns constituem numa estrutura o domínio das apelações, os outros, o das atitudes. Lévi-Strauss insistiu sobre o duplo aspecto, de derivação e, contudo, de irredutibilidade, das atitudes com relação às apelações[10]. Um discípulo de Lacan, Serge Leclaire, mostra em outro domínio como os elementos simbólicos do inconsciente remetem necessariamente a “movimentos libidinosos” do corpo, encarnando as singularidades da estrutura neste ou naquele lugar[11]. Toda estrutura, neste sentido, é psicossomática, ou antes, representa um complexo categoria- atitude.
Consideremos a interpretação do marxismo por Althusser e seus colaboradores: antes de tudo, as relações de produção aí são determinadas como relações diferenciais que se estabelecem não entre homens reais ou indivíduos concretos, mas entre objetos e agentes que têm, antes, um valor simbólico (objeto de produção, instrumento de produção, força de trabalho, trabalhadores imediatos, não-trabalhadores imediatos, tais como são tomados em relações de propriedade e de apropriação[12]. Cada modo de produção caracteriza-se, assim, por singularidades que correspondem aos valores das relações. E se é evidente que homens concretos venham ocupar os lugares e efetuar os elementos da estrutura, é desempenhando o papel que o local estrutural lhes confere (por exemplo, o “capitalista”) e servindo de suportes às relações estruturais: embora “os verdadeiros sujeitos não sejam esses ocupantes e esses funcionários… mas a definição e a distribuição desses locais e dessas funções”. O verdadeiro sujeito é a própria estrutura: o diferencial e o singular, as relações diferenciais e os pontos singulares, a determinação recíproca e a determinação completa. [250]
Quarto critério: o diferenciador, a diferençação [13]
As estruturas são necessariamente inconscientes, em virtude dos elementos, relações e pontos que as compõem. Toda estrutura é uma infra-estrutura, uma microestrutura. De certo modo, elas não são atuais. O que é atual é aquilo em que a estrutura se encarna, ou antes, aquilo que ela constitui encarnando-se. Em si mesma, porém, ela não é nem atual nem fictícia; nem real nem possível. Jakobson coloca o problema do estatuto do fonema: este não se confunde com uma letra, sílaba ou som atuais, não sendo tampouco uma ficção, uma imagem associada[14]. Talvez o termo “virtualidade” designasse exatamente o modo da estrutura ou o objeto da teoria, mas com a condição de retirarmos dele todo caráter vago; porque o virtual tem uma realidade que lhe é própria, mas que não se confunde com nenhuma realidade atual, com nenhuma realidade presente ou passada; ele tem uma idealidade que lhe é própria, mas que não se confunde com nenhuma imagem possível, com nenhuma ideia abstrata. Da estrutura, diremos: real sem ser atual, ideal sem ser abstrata. É por isso que Lévi-Strauss frequentemente apresenta a estrutura como uma espécie de reservatório ou de repertório ideal, onde tudo coexiste virtualmente, mas onde a atualização se faz necessariamente segundo direções exclusivas, implicando sempre combinações parciais e escolhas inconscientes. Extrair a estrutura de um domínio é determinar toda uma virtualidade de coexistência que preexiste aos seres, aos objetos e às obras desse domínio. Toda estrutura é uma multiplicidade de coexistência virtual. L. Althusser, por exemplo, mostra, neste sentido, que a originalidade de Marx (seu anti-hegelianismo) reside na maneira como o sistema social é definido por uma coexistência de elementos e de relações econômicas, sem que possamos engendrá-los sucessivamente segundo a ilusão de uma falsa dialética[15].
O que é que coexiste na estrutura? Todos os elementos, as relações e valores de relações, todas as singularidades próprias ao domínio considerado. Semelhante coexistência não implica confusão alguma, nenhuma indeterminação: são relações [251] e elementos diferenciais que coexistem num todo perfeita e completamente determinado. Acontece que esse todo não se atualiza como tal. O que se atualiza, aqui e agora, são tais relações, tais valores de relações, tal repartição de singularidades; outras atualizam-se alhures ou em outros momentos. Não há língua total, encarnando todos os fonemas e relações fonemáticas possíveis; mas a totalidade virtual da linguagem atualiza-se segundo direções exclusivas em línguas diversas, cada uma encarnando certas relações, certos valores de relações e certas singularidades dessa linguagem. Não há sociedade total, mas cada forma social encarna certos elementos, relações e valores de produção (por exemplo, o “capitalismo”). Portanto, devemos distinguir a estrutura total de um domínio como conjunto de coexistência virtual, e as subestruturas que correspondem às diversas atualizações no domínio. Da estrutura como virtualidade, devemos dizer que ela é ainda indiferençada, embora seja inteira e completamente diferenciada. Das estruturas que se encarnam nesta ou naquela forma atual (presente ou passada), deveremos dizer que elas são diferençadas, e que atualizar-se, para elas, é precisamente diferençar-se. A estrutura é inseparável deste duplo aspecto, ou deste complexo que podemos designar pelo nome de diferenci/çação, onde ci/ç constitui a relação fonemática universalmente determinada.
Toda diferençação, toda atualização, é feita segundo dois caminhos: espécies e partes. As relações diferenciais encarnam-se em espécies qualitativamente distintas, ao passo que as singularidades correspondentes se encarnam nas partes e figuras extensas que caracterizam cada espécie. Assim, as espécies de línguas, e as partes de cada uma na vizinhança das singularidades da estrutura linguística; os modos sociais de produção especificamente definidos, e as partes organizadas correspondendo a cada um de seus modos etc. Convém observarmos que o processo de atualização sempre implica uma temporalidade interna, variável segundo aquilo que se atualiza. Não somente cada tipo de produção social tem uma temporalidade global interna, mas suas partes organizadas têm ritmos particulares. Portanto, a posição do estruturalismo relativamente ao tempo é bastante clara: o tempo é sempre um tempo de atualização, [252] segundo o qual se efetuam, em ritmos diversos, os elementos de coexistência virtual. O tempo vai do virtual ao atual, isto é, da estrutura às suas atualizações, e não de uma forma atual a outra forma. Ou, pelo menos, o tempo concebido como relação de sucessão de duas formas atuais contenta-se em exprimir abstratamente os tempos internos da estrutura ou estruturas que se efetuam em profundidade nessas duas formas, e as relações diferenciais entre esses tempos. E é justamente porque a estrutura não se atualiza sem se diferençar no espaço e no tempo, sem diferençar, assim, espécies e partes que a efetuam, que devemos dizer, neste sentido, que a estrutura produz essas espécies e essas partes. Ela as produz como espécies e partes diferençadas, embora não possamos opor o genético ao estrutural mais do que o tempo à estrutura. A gênese, como o tempo, vai do virtual ao atual, da estrutura à sua atualização; as duas noções de temporalidade múltipla interna, e de gênese ordinal estática, são, neste sentido, inseparáveis do jogo das estruturas[16].
É preciso insistir sobre esse papel diferenciador. A estrutura é, em si mesma, um sistema de elementos e de relações diferenciais; mas ela também diferencia as espécies e as partes, os seres e as funções nos quais ela se atualiza. Ela é diferencial em si mesma e diferenciadora em seu efeito. Comentando Lévi-Strauss, Jean Pouillon definia o problema do estruturalismo: pode-se elaborar “um sistema de diferenças que não conduza nem a sua simples justaposição, nem a seu apagamento artificial”?[17]. A este respeito, a obra de Georges Dumézil é exemplar, do ponto de vista mesmo do estruturalismo: ninguém melhor do que ele analisou as diferenças genéricas e específicas entre religiões, e também as diferenças de partes e de funções entre deuses de uma mesma religião. É que os deuses de uma religião, por exemplo, Júpiter, Marte, Quirino, encarnam elementos e relações diferenciais, [253] ao mesmo tempo que encontram suas atitudes e funções na vizinhança das singularidades do sistema ou das “partes da sociedade” considerada: eles são, pois, essencialmente diferenciados pela estrutura que se atualiza ou se efetua neles, e que os produz atualizando-se. É verdade que cada um deles, considerado apenas em sua atualidade, atrai e reflete a função dos outros, embora corramos o risco de nada mais reencontrar dessa diferençação originária que os produz do virtual ao atual. Mas é justamente aqui que se passa a fronteira entre o imaginário e o simbólico: o imaginário tende a refletir e a reagrupar sobre cada termo o efeito total de um mecanismo de conjunto, ao passo que a estrutura simbólica assegura a diferenciação dos termos e a diferençação dos efeitos. Donde a hostilidade do estruturalismo em relação aos métodos do imaginário: a crítica de Jung por Lacan, a crítica de Bachelard pela “nova crítica”. A imaginação desdobra e reflete, projeta e identifica, perde-se em jogos de espelhos, mas as distinções que ela faz, como as assimilações que opera, são efeitos de superfície que ocultam os mecanismos diferenciais, muito mais sutis, de um pensamento simbólico. Comentando Dumézil, Edmond Ortigues diz muito bem: “Quando nos aproximamos da imaginação material, a função diferencial diminui, tendemos para equivalências; quando nos aproximamos dos elementos formadores da sociedade, a função diferencial aumenta, tendemos para valências distintivas”[18].
As estruturas são inconscientes, sendo necessariamente recobertas por seus produtos ou efeitos. Uma estrutura econômica nunca existe em estado puro, mas recoberta pelas relações jurídicas, políticas, ideológicas em que se encarna. Não podemos ler, encontrar, reencontrar as estruturas senão a partir desses efeitos. Os termos e as relações que as atualizam, as espécies e as partes que as efetuam são confusões tanto quanto expressões. É por isso que um discípulo de Lacan, J. A. Miller, forma o conceito de uma “causalidade metonímica”, ou então Althusser, o conceito de uma causalidade propriamente estrutural, para dar conta da presença bastante particular [254] de uma estrutura em seus efeitos, e da maneira como ela leva esses efeitos a se diferençarem, ao mesmo tempo que eles a assimilam e a integram[19]. O inconsciente da estrutura é um inconsciente diferencial. Poderíamos crer, assim, que o estruturalismo volta a uma concepção pré-freudiana: não concebe Freud o inconsciente à maneira do conflito das forças ou da oposição dos desejos, ao passo que a metafísica leibniziana já propunha a ideia de um inconsciente diferencial das pequenas percepções? Contudo, em Freud, há todo um problema da origem do inconsciente, de sua constituição como “linguagem”, que ultrapassa o nível do desejo, das imagens associadas e das relações de oposição. Inversamente, o inconsciente diferencial não é feito de pequenas percepções do real e de passagens ao limite, mas de variações de relações diferenciais num sistema simbólico em função de repartições de singularidades. Lévi-Strauss tem razão em dizer que o inconsciente não é nem de desejos nem de representações, que ele é “sempre vazio”, consistindo unicamente nas leis estruturais que ele impõe tanto às representações quanto aos desejos[20].
É que o inconsciente é sempre um problema. Não no sentido em que sua existência seria duvidosa. Mas ele mesmo forma os problemas e as questões que se resolvem somente à medida que a estrutura correspondente se efetua, e que se resolvem sempre da maneira como ela se efetua. Porque um problema tem sempre a solução que merece segundo o modo como é colocado, e o campo simbólico de que dispomos para colocá-lo. Althusser pode apresentar a estrutura econômica de uma sociedade como o campo de problemas que ela se coloca, que ela é determinada a se colocar, e que ela resolve com seus próprios meios, isto é, com as linhas de diferençação segundo as quais a estrutura se atualiza. E isto, levando-se em conta as absurdidades, ignomínias e crueldades que essas “soluções” comportam em razão da estrutura. Da mesma forma Serge Leclaire, nas pegadas de Lacan, pode distinguir as psicoses e as neuroses, e as neuroses entre si, menos por tipos de conflitos do que por modos de questões, que sempre encontram a resposta que merecem em função do [255] campo simbólico em que se colocam: assim, a questão histérica não é a do obsedado[21]. Em tudo isso, problemas e questões não designam um momento provisório e subjetivo na elaboração de nosso saber, mas, ao contrário, uma categoria perfeitamente objetiva, “objetidades” plenas e inteiras que são as da estrutura. O inconsciente estrutural é ao mesmo tempo diferencial, problematizante, questionante. Enfim, como veremos, ele é serial.
Quinto critério: serial
Entretanto, tudo isso parece ainda incapaz de funcionar. É porque só podemos definir uma metade de estrutura. Uma estrutura só se põe a mexer, só se anima, ao lhe restituirmos sua outra metade. Com efeito, os elementos simbólicos que definimos precedentemente, tomados em suas relações diferenciais, organizam-se necessariamente em série. Mas, como tais, eles se referem a uma outra série, constituída por outros elementos simbólicos e outras relações: esta referência a uma segunda série explica-se facilmente se nos lembrarmos de que as singularidades derivam dos termos e relações da primeira, mas não se contentam em reproduzi-los ou em refleti-los. Portanto, eles próprios se organizam numa outra série capaz de um desenvolvimento autônomo, ou, pelo menos, referem necessariamente a primeira a uma outra série. Assim, os fonemas e os morfemas. Ou então, a série econômica e outras séries sociais. Ou ainda, a tríplice série de Foucault: linguística, econômica e biológica etc. A questão de sabermos se a primeira série forma uma base e em que sentido, se ela é significante, as outras sendo apenas significadas, é uma questão complexa cuja natureza ainda não podemos precisar. Devemos somente constatar que toda estrutura é serial, multisserial, e não funcionaria sem esta condição.
Quando Lévi-Strauss retoma o estudo do totemismo, mostra até que ponto o fenômeno é mal-compreendido enquanto o interpretamos em termos de imaginação. Porque a imaginação, segundo [256] sua lei, concebe necessariamente o totemismo como a operação pela qual um homem ou um grupo se identificam a um animal. Contudo, simbolicamente, trata-se de algo completamente diferente: não se trata da identificação imaginária de um termo a outro, mas da homologia estrutural de duas séries de termos. De um lado, uma série de espécies animais tomadas como elementos de relações diferenciais, e, do outro, uma série de posições sociais, também elas apreendidas simbolicamente em suas próprias relações: o confronto se faz “entre esses dois sistemas de diferenças”, essas duas séries de elementos e de relações[22].
O inconsciente, segundo Lacan, não é nem individual nem coletivo, mas intersubjetivo. Quer dizer que ele implica um desenvolvimento em séries: não somente o significante e o significado, mas as duas séries, no mínimo, organizam-se de maneira bastante variável segundo o domínio considerado. Um dos textos mais célebres de Lacan comenta a Carta Roubada de Edgar Poe, mostrando como a “estrutura” coloca em cena duas séries cujos lugares são ocupados por sujeitos variáveis: rei que não vê a carta – rainha que se alegra por tê-la tanto melhor ocultado quanto a deixou em evidência – ministro que vê tudo e que toma a carta (primeira série); polícia que nada encontra na casa do ministro; ministro que se alegra por ter tanto melhor ocultado a carta quanto a deixou em evidência – Dupin, que tudo vê e que retoma a carta (segunda série)[23]. Já num texto precedente, Lacan comentava o caso de O Homem dos ratos na base de uma dupla série, paterna e filial, sendo que cada uma colocava em jogo quatro termos relacionados segundo uma ordem dos lugares: dívida-amigo, mulher rica-mulher pobre[24].
É evidente que a organização das séries constitutivas de uma estrutura supõe uma verdadeira encenação, e exige em cada caso avaliações e interpretações precisas. Não há absolutamente regra geral; tocamos aqui num ponto em que o estruturalismo implica ora uma verdadeira criação, ora uma iniciativa e uma descoberta que não deixam de apresentar riscos. A determinação de uma estrutura não se faz somente por uma escolha dos elementos simbólicos de base e das relações [257] diferenciais em que eles entram; também não se faz somente por uma repartição dos pontos singulares que lhes correspondem; mas ainda pela constituição de uma segunda série, ao menos, que mantém relações complexas com a primeira. E se a estrutura define um campo problemático, um campo de problemas, é no sentido em que a natureza do problema revela sua objetividade própria nesta constituição serial, que faz com que o estruturalismo se sinta por vezes próximo de uma música. Philippe Sollers escreve um romance, Drama, ritmado pelas expressões “Problema” e “Falho”, no decorrer do qual séries tateantes se elaboram “uma cadeia de lembranças marítimas passa em seu braço direito… a perna esquerda, ao contrário, parece trabalhada por agrupamentos minerais”)[25]. Ou então a tentativa de Jean-Pierre Faye em Análogos, dizendo respeito a uma coexistência serial dos modos de relato[26].
Ora, o que é que impede as duas séries de se refletirem mutuamente e, assim, de identificarem seus termos um a um? O conjunto da estrutura recairia no estado de uma figura da imaginação. A razão que conjura tal risco é estranha na aparência. Com efeito, os termos de cada série são inseparáveis em si mesmos das defasagens ou deslocamentos que sofrem relativamente aos termos da outra; portanto, são inseparáveis da variação das relações diferenciais. No caso da carta roubada, o ministro, na segunda série, vem para o lugar que a rainha ocupava na primeira. Na série filial de O Homem dos ratos, é a mulher pobre que vem para o lugar do amigo com relação à dívida[27]. Ou então, numa dupla série de aves e de gêmeos, citada por Lévi-Strauss, os gêmeos que são as “pessoas de cima”, em relação às pessoas de baixo, vêm necessariamente para o lugar das “aves de baixo”, não das aves de cima[28]. Este deslocamento relativo das duas séries não é absolutamente secundário; não é de fora e secundariamente que ele vem afetar um termo, como que para conferir-lhe uma dissimulação imaginária. Ao contrário, o deslocamento é propriamente estrutural ou simbólico: pertence essencialmente aos lugares [258] no espaço da estrutura, e comanda assim todos os disfarces imaginários dos seres e objetos que vêm secundariamente ocupar esses lugares. É por isso que o estruturalismo dá tanta atenção à metáfora e à metonímia. Estas de forma alguma são figuras da imaginação, mas, antes, fatores estruturais. São mesmo os dois fatores estruturais, no sentido em que exprimem os dois graus de liberdade do deslocamento, de uma série a outra e no interior de uma mesma série. Longe de serem imaginários, eles impedem as séries que eles animam de confundirem ou de desdobrarem imaginariamente seus termos. Mas o que são, pois, esses deslocamentos relativos, se fazem imperiosamente parte dos lugares na estrutura?
Sexto critério: a casa vazia
Tudo indica que estrutura envolve um objeto ou elemento completamente paradoxal. Consideremos o caso da carta, na história de Poe, tal como Lacan a comenta; ou o caso da dívida, em O Homem dos ratos. É evidente que este objeto é eminentemente simbólico. Mas dizemos “eminentemente”, porque ele não pertence a série alguma em particular: a carta está, entretanto, presente nas duas séries de Poe; a dívida está presente nas duas séries de O Homem dos ratos. Um tal objeto sempre está presente nas séries correspondentes, ele as percorre e se move nelas, não cessa de circular nelas, e de uma à outra, com uma agilidade extraordinária. Diríamos que ele é sua própria metáfora e sua própria metonímia. Em cada caso, as séries são constituídas de termos simbólicos e de relações diferenciais; ele, porém, parece ter outra natureza. Com efeito, é em relação a ele que a variedade dos termos e a variação das relações diferenciais são determinadas de cada vez. As duas séries de uma estrutura são sempre divergentes (em virtude das leis da diferençação). Mas este objeto singular é o ponto de convergência das séries divergentes enquanto tais. Ele é “eminentemente” simbólico, mas justamente porque é imanente às duas séries ao mesmo tempo. Como denominá-lo, senão Objeto = x, Objeto da adivinhação ou grande Móvel? Todavia, podemos ter [259] dúvidas: o que J. Lacan nos convida a descobrir em dois casos, o papel particular de uma carta ou de uma dívida, seria um artifício, a rigor aplicável a esses casos, ou seria um método verdadeiramente geral, válido para todos os domínios estruturáveis, critério para toda estrutura, como se uma estrutura não se definisse sem a apresentação de um objeto = x que não cessa de percorrer suas séries? Como se a obra literária, por exemplo, ou a obra de arte, mas também outras obras, as obras da sociedade, as da doença, as da vida em geral, envolvessem este objeto muito particular que comanda sua estrutura. Como se se tratasse sempre de encontrar quem é H, ou de descobrir um x envolto na obra. Acontece o mesmo nas canções: o refrão diz respeito a um objeto = x, ao passo que as estrofes formam as séries divergentes onde circula este objeto. Eis porque as canções apresentam verdadeiramente uma estrutura elementar.
Um discípulo de Lacan, André Green, assinala a existência do lenço que circula em Otelo, percorrendo todas as séries da peça[29]. Falávamos também das duas séries do Príncipe de Gales, Falstaff ou o pai-cômico, Henrique IV ou o pai real, as duas imagens de pai. A coroa é o objeto = x que percorre as duas séries, com termos e sob relações diferentes; o momento em que o príncipe experimenta a coroa, seu pai não estando ainda morto, marca a passagem de uma série à outra, a mudança dos termos simbólicos e a variação das relações diferenciais. O velho rei moribundo se zanga, e crê que o filho quer prematuramente identificar-se com ele; no entanto, o príncipe sabe responder e mostrar, num esplêndido discurso, que a coroa não é o objeto de uma identificação imaginária, mas, ao contrário, o termo eminentemente simbólico que percorre todas as séries, a série infame de Falstaff e a grande série real, e que permite a passagem de uma a outra no seio da mesma estrutura. Havia, como vimos, uma primeira diferença entre o imaginário e o simbólico: o papel diferenciador do simbólico, por oposição ao papel assimilador refletidor, desdobrante e redobrante do imaginário. Contudo, a segunda fronteira aparece melhor aqui: contra o caráter dual da imaginação, o Terceiro [260] intervém essencialmente no sistema simbólico, distribui as séries, desloca-as relativamente, fá-las comunicar, mas impedindo uma de dobrar-se imaginariamente sobre a outra.
Dívida, carta, lenço ou coroa, a natureza desse objeto é precisada por Lacan: ele está sempre deslocado em relação a si mesmo. Tem por propriedade não estar onde é procurado, mas, em contrapartida, ser encontrado onde não está. Diremos que ele “falta a seu lugar” (não sendo, assim, alguma coisa de real). Diremos também que ele falta à sua própria semelhança (não sendo, assim, uma imagem), que falta à sua própria identidade (não sendo, assim, um conceito). “Aquilo que está oculto é sempre aquilo que falta a seu lugar, como se exprime a ficha de pesquisa de um volume quando está extraviado na biblioteca. Com efeito, ainda que este estivesse sobre a prateleira ou sobre a ‘casa’ ao lado, ele se ocultaria, por mais visível que parecesse. Pois só podemos dizer literalmente que isto falta a seu lugar, daquilo que pode mudar de lugar, isto é, do simbólico. Porque, para o real, qualquer que seja o transtorno que possamos trazer-lhe, ele está sempre e em todo caso presente, traz este lugar colado à sua sola, sem nada reconhecer que possa exilá-lo daí”[30]. Se as séries que o objeto = x percorre apresentam necessariamente deslocamentos relativos uma com relação à outra, é porque os lugares relativos de seus termos na estrutura dependem antes de tudo do lugar absoluto de cada um, em cada momento, com relação ao objeto = x sempre circulante, sempre deslocado relativamente a si mesmo. É neste sentido que o deslocamento, e mais geralmente todas as formas de troca, não constitui um caráter acrescentado de fora, mas a propriedade fundamental que nos permite definir a estrutura como ordem dos lugares sob a variação das relações. Toda a estrutura é movida por este Terceiro originário – mas também que falta à sua própria origem. Distribuindo as diferenças em toda a estrutura, fazendo variar as relações diferenciais com seus deslocamentos, o objeto = x constitui o diferenciador da própria diferença.
Os jogos têm necessidade da casa vazia, sem o que nada avançaria nem funcionaria. O objeto = x não se distingue de [261] seu lugar, mas é próprio deste lugar deslocar-se constantemente, como é próprio à casa vazia saltar incessantemente. Lacan invoca o lugar do morto no bridge. Nas páginas admiráveis que abrem As palavras e as coisas, onde descreve um quadro de Velásquez, Foucault invoca o lugar do rei, com relação ao qual tudo se desloca e desliza: Deus, depois o homem, sem jamais preenchê-lo[31]. Não há estruturalismo sem este grau zero. Philippe Sollers e Jean-Pierre Faye gostam de invocar a tarefa cega, como designando este ponto sempre móvel que comporta a cegueira, mas a partir do qual se torna possível a escrita, porque aí se organizam as séries como verdadeiros literatemas. J. A. Miller, em seu esforço para elaborar um conceito de causalidade estrutural ou metonímica, toma de empréstimo a Frege a posição de um zero, definido como faltando à sua própria identidade, e que condiciona a constituição serial dos números[32]. E mesmo Lévi-Strauss, que em certos aspectos é o mais positivista dos estruturalistas, o menos romântico, o menos inclinado a acolher um elemento fugidio, reconhecia no “mana” ou seus equivalentes a existência de um “significante flutuante”, de um valor simbólico zero circulando na estrutura[33]. Ele reencontrava, assim, o fonema zero de Jakobson que, em si mesmo, não comporta caráter diferencial algum nem valor fonético, mas em relação ao qual todos os fonemas se situam em suas próprias relações diferenciais.
Se é verdade que a crítica estrutural tem por objeto determinar na linguagem as “virtualidades” que preexistem à obra, a obra é em si mesma estrutural quando se propõe exprimir suas próprias virtualidades. Lewis Carroll, Joyce, inventavam “palavras-valises” ou, mais geralmente, palavras esotéricas, para assegurarem a coincidência de séries verbais sonoras e a simultaneidade de séries de histórias associadas. Em Finnegan’s Wake, é ainda uma carta que é Cosmo, e que reúne todas as séries do mundo. Em Lewis Carroll, a palavra-valise conota pelo menos duas séries de base (falar e comer, série verbal e série alimentar) que podem [262] ramificar-se: assim, o Snark. É um erro dizer que tal palavra tem dois sentidos; de fato, ela pertence a uma ordem diferente da ordem das palavras que têm um sentido. Ela é o não-sentido que, ao menos, anima as duas séries, mas que lhes proporciona sentido circulando através delas. É ela, em sua ubiquidade, em seu perpétuo deslocamento, que produz o sentido em cada série, e de uma série à outra, e não cessa de defasar as duas séries. É a palavra = x, enquanto designa o objeto = x, o objeto problemático. Enquanto palavra = x, ela percorre uma série determinada como a do significante; mas, ao mesmo tempo, como objeto = x percorre a outra série determinada como a do significado. Ela não cessa, ao mesmo tempo, de cavar e de preencher a distância entre as duas séries: Lévi-Strauss mostra isso a propósito do “mana”, que ele assimila às palavras “troço” ou “trem”[34]. É desta maneira, como vimos, que o não-sentido não é a ausência de significação, mas, ao contrário, o excesso de sentido, ou aquilo que proporciona sentido ao significado e ao significante. O sentido aparece aqui como o efeito de funcionamento da estrutura, na animação de suas séries componentes. E sem dúvida, as palavras-valises não passam de um procedimento entre outros para assegurar esta circulação. Os termos técnicos de Raymond Roussel, tais como os analise Foucault, são de outra natureza: fundados em relações diferenciais fonemáticas, ou em relações ainda mais complexas[35]. Em Mallarmé, encontramos sistemas de relações entre séries, e móveis que os animam, ainda de tipo completamente diferente. Nosso objeto não é analisar o conjunto dos procedimentos que fizeram e fazem a literatura moderna, jogando com toda uma topografia, com toda uma tipografia do “livro por vir”, mas somente ressaltar em todos os casos a eficácia desta casa vazia de dupla face, ao mesmo tempo palavra e objeto.
Em que consiste este objeto = x? É e deve permanecer o objeto perpétuo de uma adivinhação, o perpetuum móbile? Seria uma forma de lembrarmos a consistência objetiva que assume a categoria do problemático no seio das estruturas. Finalmente, é bom que a questão “em que se pode reconhecer o estruturalismo?” conduza à posição de algo que não seja reconhecível ou identificável. Consideremos [263] a resposta psicanalítica de Lacan: o objeto = x é determinado como falo. Mas esse falo não é nem o órgão real, nem a série das imagens associadas ou associáveis: é falo simbólico. Entretanto, é justamente de sexualidade que se trata; não se trata de outra coisa aqui, contrariamente às piedosas tentações sempre renovadas em psicanálise de adjurar ou de minimizar as referências sexuais. Contudo, o falo aparece não como um dado sexual nem como a determinação empírica de um dos sexos, mas como o órgão simbólico que funda toda a sexualidade como sistema ou estrutura, e com relação ao qual se distribuem os lugares ocupados de modo variável pelos homens e pelas mulheres, e também as séries de imagens e de realidades. Designando o objeto = x como falo, não se trata, pois, de identificar este objeto, de conferir-lhe uma identidade que repugne à sua natureza; porque, ao contrário, o falo simbólico é aquilo que falta à sua própria identidade, sempre encontrado lá onde não está, pois não está lá onde é procurado, sempre deslocado em relação a si, do lado da mãe. Neste sentido, ele é a carta e a dívida, o lenço ou a coroa, o Snark e o “mana”. Pai, mãe etc. são elementos simbólicos tomados em relações diferenciais, mas o falo é outra coisa, o objeto = x que determina o lugar relativo dos elementos e o valor variável das relações, fazendo de toda a sexualidade uma estrutura. É em função dos deslocamentos do objeto = x que as relações variam, como relações entre “pulsões parciais” constitutivas da sexualidade.
O falo, evidentemente, não é última resposta. É mesmo, antes, o lugar de uma questão, de uma “pergunta” que caracteriza a casa vazia da estrutura sexual. As questões como as respostas variam segundo a estrutura considerada, mas nunca dependem de nossas preferências, nem de uma ordem de causalidade abstrata. É evidente que a casa vazia de uma estrutura econômica, como troca de mercadorias, deve ser determinada de forma inteiramente diferente: ela consiste em “algo” que não se reduz nem aos termos da troca, nem à própria relação de troca, mas que forma um terceiro eminentemente simbólico em perpétuo deslocamento, e em função do qual vão definir-se as variações de [264] relações. Tal é o valor como expressão de um “trabalho em geral”, para além de toda qualidade empiricamente observável, lugar da questão que atravessa ou percorre a economia como estrutura[36].
Decorre disso uma consequência mais geral, que diz respeito às diferentes “ordens”. Sem dúvida não convém, na perspectiva do estruturalismo, ressuscitarmos o seguinte problema: há uma estrutura que, em última instância, determina todas as outras? Por exemplo, o que é primeiro, o valor ou o falo, o fetiche econômico ou o fetiche sexual? Por várias razões, essas questões não têm sentido. Todas as estruturas são infraestruturas. As ordens de estruturas, linguística, familiar, econômica, sexual etc., caracterizam-se pela forma de seus elementos simbólicos, pela variedade de suas relações diferenciais, pela espécie de suas singularidades, enfim e sobretudo, pela natureza do objeto = x que preside a seu funcionamento. Ora, não poderíamos estabelecer uma ordem de causalidade linear de uma estrutura à outra, a não ser que, em cada caso, conferíssemos ao objeto = x o gênero de identidade que ele repugna essencialmente. Entre estruturas, a causalidade só pode ser um tipo de causalidade estrutural. Em cada ordem de estrutura, certamente, o objeto = x de forma alguma é um incognoscível, um puro indeterminado: é perfeitamente determinável, inclusive em seus deslocamentos, e pelo modo de deslocamento que o caracteriza. Simplesmente, ele não é assinalável, isto é, fixável num lugar, identificável num gênero ou numa espécie. Pois ele mesmo constitui o gênero último da estrutura ou seu lugar total: portanto, só tem identidade por faltar a esta identidade, e só tem lugar por deslocar-se relativamente a todo lugar. Assim, o objeto = x, para cada ordem de estrutura, o lugar vazio ou perfurado que permite a esta ordem articular- se com outras, num espaço que comporta tantas direções quantas ordens. As ordens de estrutura não comungam num mesmo lugar, mas todas comunicam por seu lugar vazio ou objeto = x, respectivo. É por isso que, apesar de certas páginas apressadas de Lévi-Strauss, não reclamaremos um privilégio para as estruturas [265] sociais etnográficas, remetendo as estruturas sexuais psicanalíticas à determinação empírica de um indivíduo mais ou menos dessocializado. Nem mesmo as estruturas da linguística podem passar por elementos simbólicos ou significantes últimos: precisamente porque as outras estruturas não se contentam em aplicar por analogia métodos tomados de empréstimo à linguística, mas descobrem por si mesmas verdadeiras linguagens, mesmo não-verbais, comportando sempre seus significantes, seus elementos simbólicos e relações diferenciais. Portanto, Foucault, ao levantar por exemplo o problema das relações etnografia-psicanálise, tem razão em dizer: “elas se cortam em ângulo reto; porque a cadeia significante por meio da qual se constitui a experiência única do indivíduo é perpendicular ao sistema formal a partir do qual se constitui as significações de uma cultura. Em cada momento, a estrutura própria da experiência individual encontra nos sistemas da sociedade certo número de escolhas possíveis (e de possibilidades excluídas); inversamente, as estruturas sociais encontram em cada um de seus pontos de escolha certo número de indivíduos possíveis (e de outros que não o são)”[37].
E em cada estrutura, o objeto = x deve ser suscetível de explicar: 1º) a maneira como ele subordina a si, em sua ordem, as outras ordens de estrutura, estas só intervindo, então, como dimensões de atualização; 2º) a maneira como ele mesmo é subordinado às outras ordens, na ordem delas (e só intervindo em sua própria atualização); 3º) a maneira como todos os objetos = x e todas as ordens de estrutura se comunicam umas com as outras, cada ordem definindo uma dimensão do espaço onde é absolutamente primeira; 4º) as condições nas quais, em tal momento da história ou em tal caso, tal dimensão correspondendo a tal ordem da estrutura não se desenrola por si mesma, permanecendo submissa à atualização de outra ordem (o conceito lacaniano de “forclusão” teria. Ainda aqui, uma importância decisiva). [266]
Últimos critérios: do sujeito à prática
Num sentido, os lugares só são preenchidos ou ocupados por seres reais à medida que a estrutura é “atualizada”. Num outro sentido, porém, podemos dizer que os lugares já estão preenchidos ou ocupados pelos elementos simbólicos, no nível da própria estrutura; e são as relações diferenciais desses elementos que determinam a ordem dos lugares em geral. Portanto, há um preenchimento simbólico primário, antes de todo preenchimento ou de toda ocupação secundária por seres reais. Vê-se que reencontramos o paradoxo da casa vazia; porque esta é o único lugar que não pode nem deve ser preenchido, nem mesmo por um elemento simbólico. Ela deve guardar a perfeição de seu vazio para deslocar-se com relação a si mesma, e para circular através dos elementos e das variedades de relações. Simbólica, ela deve ser para si mesma seu próprio símbolo, e faltar eternamente à sua própria metade que seria susceptível de vir ocupa-la. (No entanto, este vazio não é um não-ser; ou, pelo menos, este não-ser não é o ser do negativo, é o ser positivo do “problemático”, o ser objetivo de um problema e de uma questão). É por isso que Foucault pode dizer: “não podemos mais pensar senão no vazio do homem desaparecido. Porque este vazio não cava uma falta; não prescreve uma lacuna a ser preenchida. Ele não é nada mais, nada menos, que a dobra de um espaço onde, finalmente, se torna novamente possível pensar”[38].
Ora, embora o lugar vazio não seja preenchido por um termo, ele não deixa de ser acompanhado por uma instância eminentemente simbólica que segue todos os seus deslocamentos: acompanhado sem ser ocupado nem preenchido. E ambos, a instância e o lugar, não deixam de faltar um ao outro, e de se acompanharem dessa forma. O sujeito é precisamente a instância que segue o lugar vazio: como diz Lacan, ele é menos sujeito que assujeitado – assujeitado à casa vazia, assujeitado ao falo e aos seus deslocamentos. Sua agilidade é sem igual, ou deveria sê-lo. Por isso, o sujeito é essencialmente intersubjetivo. Anunciar a morte de Deus, ou mesmo a morte do homem, nada significa. O que conta é o como. Nietzsche já mostrava que Deus morre [267] de várias maneiras; e que os deuses morrem, mas de rir, quando ouvem um deus dizer que é o Único. O estruturalismo não é absolutamente um pensamento que suprime o sujeito, mas um pensamento que o esmigalha e o distribui si8stematicamente, que contesta a identidade do sujeito, que o dissipa e o faz passar de um lugar a outro, sujeito sempre nômade, feito de individuações, mas impessoais, ou de singularidades, mas pré-individuais. É neste sentido que Foucault fala de “dispersão”; e Lévi-Strauss só pode definir uma instância subjetiva como dependente das condições de Objeto sob as quais sistemas de verdade se tornam conversíveis e, por conseguinte, “simultaneamente recebíveis para vários sujeitos”[39].
Assim, dois grandes acidentes da estrutura deixam-se definir. Ou a casa vazia e móvel não é mais acompanhada de um sujeito nômade que sublinha seu percurso, e seu vazio torna-se uma verdadeira falta, uma lacuna; ou ela é, ao contrário, preenchida, ocupada por aquilo que a acompanha, e sua mobilidade perde-se no efeito de uma plenitude sedentária ou fixa. Poderíamos ainda dizer, em termos linguísticos, ou que o “significante” desapareceu, que a onda do significado não encontra mais elemento significante que o meça, ou que o “significado” desvaneceu-se, que a cadeia do significante não encontra mais significado que a percorra: os dois aspectos patológicos da psicose[40].
Poderíamos ainda dizer, em termos teoantropológicos, que ora Deus faz crescer o deserto e cava na terra uma lacuna, e ora o homem a preenche, ocupa o lugar, e nesta vã permuta faz-nos passar de um acidente ao outro: eis porque o homem e Deus são as duas doenças da terra, isto é, da estrutura.
O importante é sabermos sob que fatores e em que momento esses acidentes são determinados em estruturas desta ou daquela ordem. Consideremos novamente as análises de Althusser e de seus colaboradores: de um lado, eles mostram como, na ordem econômica, as aventuras da casa vazia (o Valor como objeto = x) são marcadas pela mercadoria, pelo dinheiro, pelo fetiche, pelo capital etc., que caracterizam a estrutura [268] capitalista. Por outro lado, eles mostram como contradições nascem dessa forma na estrutura. Enfim, como o real e o imaginário, isto é, os seres reais que vêm ocupar os lugares e as ideologias que exprimem a imagem que se faz deles, são estreitamente determinados pelo jogo dessas aventuras estruturais e das contradições que delas decorrem. Certamente, não que as contradições sejam imaginárias: elas são propriamente estruturais, e qualificam os efeitos da estrutura no tempo interno que lhe é próprio. Não diremos, pois, da contradição, que ela é aparente, mas que é derivada: deriva do lugar vazio e de seu devir na estrutura. Em regra geral, o real, o imaginário e suas relações sempre são engendrados secundariamente pelo funcionamento da estrutura, que começa por ter seus efeitos primários em si mesma. É por isso que não é absolutamente de fora que chega à estrutura aquilo que chamamos há pouco de “acidentes”. Trata-se, ao contrário, de uma “tendência” imanente[41]. Trata-se de acontecimentos ideais que fazem parte da própria estrutura, e que afetam simbolicamente sua casa vazia ou seu sujeito. Chamamo-los de “acidentes” para melhor ressaltar, não um caráter de contingência ou de exterioridade, mas este caráter de acontecimento bastante especial, interior à estrutura enquanto esta jamais se reduz a uma essência simples.
Assim sendo, um conjunto de problemas complexos coloca-se ao estruturalismo, concernentes às “mutações” estruturais (Foucault) ou às “formas de transição” de uma estrutura à outra (Althusser). É sempre em função da casa vazia que as relações diferenciais são susceptíveis de novos valores ou de variações, e que as singularidades são capazes de atribuições novas, constitutivas de outras estruturas. Ainda é preciso que as contradições sejam “resolvidas”, isto é, que o lugar vazio seja desembaraçado dos acontecimentos simbólicos que o ocultam ou o preenchem; que ele seja devolvido ao sujeito que deve acompanhá-lo sobre novos caminhos, sem ocupá-lo nem abandoná-lo. Por isso, há um herói estruturalista: nem Deus nem homem, nem pessoal nem universal, ele é sem identidade, feito [269] de individuações não pessoais e de singularidades pré-individuais. Ele garante a explosão de uma estrutura afetada de excesso ou de carência, opõe seu próprio acontecimento ideal aos acontecimentos ideais que acabamos de definir[42]. Que caiba a uma nova estrutura não recomeçar aventuras análogas às da antiga, impedir o renascimento de contradições mortais, isso depende da força resistente e criadora desse herói, de sua agilidade em seguir e salvaguardar os deslocamentos, de seu poder de fazer com que as relações variem e de redistribuir as singularidades, sempre jogando ainda os dados. Este ponto de mutação define precisamente uma práxis. Porque o estruturalismo não é somente inseparável das obras que cria, mas também de uma prática relativamente aos produtos que interpreta. Seja esta prática terapêutica ou política, ela designa um ponto de revolução permanente, ou de transferência constante.
Estes últimos critérios, do sujeito à práxis, são os mais obscuros critérios do futuro. Através dos seis caracteres precedentes, quisemos simplesmente recolher um sistema de ecos entre autores bastante independentes uns dos outros, explorando domínios bastante diversos; mas também a teoria que eles próprios propõem desses ecos. Nos diferentes níveis da estrutura, o real e o imaginário, os seres reais e as ideologias, o sentido e a contradição são “efeitos” que devem ser compreendidos no término de um “processo”, de uma produção diferençada propriamente estrutural: estranha gênese estática para “efeitos” físicos (ópticos, sonoros etc.). Os livros contra o estruturalismo (ou aqueles contra o novo romance) não têm, estritamente, importância alguma; não podem impedir que o estruturalismo tenha uma produtividade que é a de nossa época. Livro algum contra o que quer que seja jamais tem importância; somente contam os livros “pró” alguma coisa de novo, e que sabem produzi-lo.
Tradução de
Hilton F. Japiassú[43]
Revisão técnica de Luiz Orlandi
NOTAS
[1] Cf. J. Lacan, Ecrits, Paris: Seuil, pp. 386-389.
[2] Lacan é, sem dúvida, aquele que vai mais longe na análise original da distinção entre imaginário e simbólico. Mesmo esta distinção, porém, sob formas diversas, encontra-se em todos os estruturalistas.
[3] Cf. Esprit, novembro de 1963.
[4] L. Althusser, Lire le Capital, Paris, Maspero, 1965, t. II, p. 157.
[5] M. Foucault, Les mots et les choses, Paris, Gallimard, 1966, pp. 329 ss.
[6] J. Lacan, Écrits, p. 30.
[7] C. Lévi-Strauss, cf. Esprit, novembro de 1963.
[8] Nota do Tradutor [NT]: [Deleuze exemplifica com “billard” e “pillard” (bilhar e ladrão)].
[9] C. Lévi-Strauss, Anthropologie structurale, Paris, Plon, 1958, pp. 235 ss.
[10] Ibid, pp. 343 ss.
[11] S. Leclaire, “Compter avec la psychanalyse”, in Cahiers pour l’analyse, nº 8.
[12] L. Althusser, Lire le Capital, t. II, Paris: François Maspero, 1965, pp. 152-157 (cf. também E. Balibar, pp. 205 ss.).
[13] NT: [A respeito do vocábulo ‘diferença’, há dois verbos que nos interessam aqui: diferenciar e diferençar. Achamos linguisticamente legítimo – e conceitualmente necessário na tradução de textos escritos por Deleuze por volta de 1967 em diante — empregar, a partir desses verbos, alguns vocábulos que nos ajudam a caracterizar a distinção deleuzeana do virtual e do atual. Na linha do diferenciar, teremos o vocabulário do virtual: diferenciação (traduzindo différentiation) e diferencial (tr. différentiel). Na linha do diferençar (que já passou pelas formas ‘deferençar’ (1562) e ‘differençar’ (1567) e que já propiciou alguns vocábulos, como diferençado e diferençável) teremos o vocabulário do atual: diferençação (traduzindo différenciation) e diferençal (para différeciel). Todavia, différenciant e, différenciateur serão traduzidos por diferenciador (e différenciatrice por diferenciadora, porque dizem respeito ao “campo intensivo” sem o qual não há passagens entre virtual e atual. Cf. pp.135, 250, 252, 259, 260 do original].
[14] Roman Jakobson, Essais de linguistique générale, Vol. I, Paris: Minuit, 1963, cap. VI.
[15] L. Althusser, Lire le Capital, t. I, p. 82; t. II, p. 44. Paris: François Maspero, 1965.
[16] O livro de Jules Vuillemin, Philosophie de l’algèbre, (PUF, 1960), propõe uma determinação das estruturas em matemática. Ele insiste sobre a importância, a esse respeito, de uma teoria dos problemas (segundo o matemático Abel), e de princípios de determinação (determinação recíproca, completa e progressiva, segundo Galois). Mostra como as estruturas, neste sentido, fornecem os únicos meios de realizar as ambições de um verdadeiro método genético.
[17] Cf. Les Temps modernes, julho de 1956.
[18] E. Ortigues, Le Discours et le symbole, Paris, Aubier, 1962, p. 197. Ortigues ressalta igualmente a segunda diferença entre o imaginário e o simbólico: o caráter “dual” ou “especular” da imaginação, por oposição ao Terceiro, ao terceiro termo que pertence ao sistema simbólico.
[19] L. Althusser, Lire le Capital, t. II, p. 169 ss.
[20] C. Lévi-Strauss, Anthropologie structurale, p. 224.
[21] S. Leclaire, “La mort dans la vie de l’obsédé”, La Psychanalyse, nº 2, 1956.
[22] C. Lévi-Strauss, Le Totémisme aujourd’hui, Paris, PUF, 1962, p. 112.
[23] J. Lacan, Écrits, p. 15.
[24] J. Lacan, Le Mythe individuel du névrosé, CDU, 1953. Retomado, modificado, in Ornicar, nº 17-18, 1979.
[25] Nota de David Lapoujade [NDL]: P. Sollers, Drame, Paris, Seuil, 1965.
[26] NDL: J.-P. Faye, Analogues, Paris, Seuil, 1964.
[27] NDL: S. Freud, Oeuvres complètes, vol. IX, Paris, PUF, 1998.
[28] C. Lévi-Strauss, Le Totemisme aujourd’hui, p. 115.
[29] Green, “L’objet (a) de J. Lacan”, Cahiers pour l’analyse, nº 3, p. 32.
[30] J. Lacan, Écrits, p. 25.
[31] M. Foucault, Les Mots et les choses, cap. I.
[32] J. A . Miller, “La suture”, Cahiers pour l’analyse, nº 1.
[33] C. Lévi-Strauss, Introduction à l’oeuvre de Marcel Mauss, pp. 49-59 (in Marcel Mauss, Sociologie et antrhropologie, Paris, PUF, 1950).
[34] NT: [“truc” – “machin”].
[35] Cf. M. Foucault, Raymond Roussel [NRT: Paris, Gallimard, 1963].
[36] Cf. Lire le Capital, t. I, pp. 242 ss.: a análise que Pierre Macherey fas da noção de valor, mostrando que este está sempre defasado relativamente à troca em que ela aparece.
[37] M. Foucault, Les Mots et les choses, op. cit., p. 392.
[38] M. Foucault, Les Mots et les choses, p. 353.
[39] C. Lévi-Strauss, Le Cru et le cuit, Paris, Plon, 1964, p. 19.
[40] Cf. o esquema proposto por S. Leclaire, em seguida a Lacan, in “À la recherche des príncipes d’une psychothérapie des psychoses”, na revista L’Évolution psychiatrique, t. 23, n. 2, 1958.
[41] Sobre as noções marxistas de “contradição” e de “tendência”, cf. as análises de E. Balibar, Lire le Capital, t. II, pp. 296 ss.
[42] Cf. Michel Foucault, Les Mots et les choses, p. 230: a mutação estrutural, “se ela deve ser analisada, e minuciosamente, não pode ser explicada nem mesmo recolhida numa palavra única; ela é um acontecimento radical que se reparte sobre a superfície visível do saber e cujos signos, sacudidelas, efeitos, podemos seguir passo a passo”.
[43] NT: [Tradução brasileira originalmente publicada em François Châtelet (Dir.), História da filosofia., vol. 8, O século XX, RJ, Zahar, 1974, pp. 271-303.]
FONTE
In: DELEUZE, Gilles. A Ilha Deserta: e outros textos. Edição preparada por David Lapoujade; organização da edição brasileira e revisão técnica Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Iluminuras, 2006, pp. 221–247.
Tradução brasileira originalmente publicada em François Châtelet (Dir.), História da Filosofia, vol. 8, O Século XX, Rio de Janeiro: Zahar, 1974, pp; 271–393. Versão francesa: François Châtelet, éd., Histoire de la philosophie, t. VIII. Les Lumières XXe siècle, Paris, Hachette, “col. Pluriel”, 1972, pp. 299-335.
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