Como a escuta se agencia? Qual é esta paisagem plural, ao mesmo tempo interna e externa, que constituímos a cada instante na nossa relação com os sinais sonoros? A meio caminho entre música e percepção do tempo, entre materialidades, corpo e sensorialidade, gostaria de evocar os territórios de uma percepção ampliada. O farei enquanto musicista, com a minha experiência da composição musical, que, no entanto, cruza inúmeros domínios, da filosofia àquilo tudo de que a música pode se alimentar.
Escuta, uma produção – uma elaboração
Sempre me interessou a experiência da escuta, como realidade física mas também em sua dimensão psíquica, como encenação de representações e de sensações, ao mesmo tempo reais e em relação com a ficção. Considero a escuta uma produção – como uma elaboração, um processo subjetivo. Aliás, escrever música já não é ter uma certa escuta das relações entre os sinais sonoros? Não é já uma disposição curiosa e elaborativa que repousa em uma atenção informal, e até mesmo sem que se saiba? Da escuta cotidiana, imediata, a uma prática experimental da escuta, ela pode provir de conhecimentos diversos e também da informação, até mesmo codificada. Sem dúvida tais escutas não são excludentes, elas se entrecruzam e interagem. Aliás, o termo escuta é amplo demais, muito geral: preciso então delimitar certas modalidades. De antemão, observarei, sem nenhuma intenção tipológica, algumas tendências ou aspectos particulares que a mim parece preferível distinguir.
Na ordem de uma prática imediata de escuta, não elaborada a priori, distinguiria, por exemplo, uma “escuta objetivada” – que não se confunda com uma escuta “objetiva”! Falo da escuta que opera um zoom, um foco no interior de um conjunto de sinais, ação muito diferente de uma “escuta flutuante”, que mantém junto uma série de variáveis, uma nebulosa heterogênea na qual se dão associações livres, móveis, incertas, inconstantes. Entre um “tempo flutuante” e um “tempo objetivado” já fica claro que o campo da escuta se apreende, que o ponto de observação se desloca, que a prática da escuta é ativa e o quanto a dimensão que se queria informativa, “realista”, se elabora necessariamente por uma separação, uma franja na qual opera a copla emissor–escutador. Isto já suscita a questão de um ponto de observação relativo e de um processo subjetivo de escuta: onde e como se posiciona a própria escuta?
E do ponto de vista daquilo que, por assim dizer, se dá a ouvir, o que se passa? Por hábito, evocamos o sinal sonoro como que se referindo a algo de conhecido, um instrumento, uma voz, ruídos. Identificamos os sons concretos da vida real porque lembram algo localizável: o som dos sinos, o ruído do trem. No entanto, uma multidão de variáveis entra em ação para constituir o som que chega a mim como sendo o deste trem, conforme seja lento ou rápido, escutado do interior ou do exterior. Cada sinal sonoro é um evento específico, produto de circunstâncias e de determinações que se desdobram em um espaço e um tempo particulares. Os sinais sonoros são indissociáveis das condições que os provocam: forças, tensões, energias, materiais, estruturas, bem como o meio físico em que estes sons são emitidos e se propagam: exterior, interior, segundo superfícies mais ou menos densas, lisas ou porosas, nas quais eles são refletidos ou absorvidos. O conjunto de tais fatores constitui uma cadeia de determinações espaciais e temporais que concorrem para a especificidade de uma informação sonora. O som é uma realidade essencialmente heterogênea, uma multiplicidade feita de contingências e determinações, de grandezas, de dimensões que crescem e decrescem de acordo com o evento que está sendo produzido. A multiplicidade acústica, tal como eu gostaria de propor aqui, integra o conjunto dos fatores que modelam o som, na mais aberta acepção de tudo o que é audível – antes mesmo da música.
Estas qualidades e dimensões físicas no seio das quais os sinais sonoros se propagam, natural ou artificialmente, estão em interação constante com as operações de escuta processuais e subjetivas. O ouvido mais ou menos prevenido se desloca e se posiciona, pratica ativamente certas operações tais como extrair, associar, dissociar, constituir planos, navegar de um plano ou de um ponto a outro, escavar a nebulosa ruidosa por estratos ou se infiltrar na profundeza de seus planos, apreciar sua simultaneidade, provocá–la, entrecortá–la, enfim toda uma mobilidade da escuta que eu chamaria de ubiquidade do ouvido, “o ouvido ubíquo”¹. Pois como diria Deleuze, o ouvido impensável, aquele que nos interessa para a composição musical, ou a intensidade de uma escuta “emergente”, se constrói com a elaboração de nossas relações com os signos, em um processo preciso que os torna audíveis. E paradoxalmente o ouvido experimenta uma espacialidade muito diferente daquela do olho (mesmo se o olho está sempre a confirmar o que se ouve). A espacialidade auditiva não provém de um plano frontal, ela é um espaço pluridimensional capaz de associar simultaneamente o mais próximo e o mais distante, o fora e o dentro, o acima e o abaixo: a natureza propagativa e dinâmica do som nos permite desconstruir – deslocar – o espaço, recompô–lo, e projetar–se na imbricação de um “espaço membrana” de densidades múltiplas, reversíveis, extensíveis, percorríveis do interior ao exterior.
Da observação ao esboço temporal
A escuta deste tempo, fugaz, múltiplo, este da observação das coisas enquanto se dão, é talvez aquilo que assombre a música. A natureza do som leva–nos para dentro de uma territorialidade sensorial passageira, que implica outros modos de relação com o espaço e o tempo, e oculta outras maneiras de sermos afeta- dos. O som é propagação, transmissão. Energia não delimitada em um espaço que se espalha e se instala de modo efêmero nas coisas, nos objetos, nas formas que o envolvem, o acolhem e o absorvem. O som passa e se ralenta nas densidades mais ou menos propícias da materialidade do mundo. Acelerado na água, cor- rendo ao longo da corda tensionada, reverberado pelas superfícies lisas e densas, ressonante nas madeiras e nos metais, captado nas caixas fechadas, revoluto nos poços e tubos, retido nas fibras. O som é uma energia interdependente, uma pura composição móvel com a qual entramos em modalidades temporais de simultaneidade, acopladas e recíprocas. Pois o som está sempre ligado a uma pluralidade encaixada de emissores–captadores–receptores–filtros. Será que o som existe em si mesmo? Ele não passa de condição de produção e processo de subjetivação, acontecimento apreendido segundo um ponto de escuta forçosamente parcial, local, por um dispositivo que é ele mesmo necessariamente um filtro, o aparelho auditivo, o aparelho de transmissão, o aparelho de difusão.
A observação das coisas enquanto se fazem desdobra–se em uma atividade sensorial e uma cena semiótica complexa, que associa o corpo, o olho, a pele, os ossos, o movimento, a impulsão cinestésica e as velocidades abstratas de projeção. A música vai mais rápido que as palavras, assombra o local sensível dos acontecimentos mudos, sem voz, testemunho íntimo das relações silenciosas, dos acontecimentos fugazes, nem sempre compreensíveis – o desenrolar do tempo, as diferenças de luzes –, dos acontecimentos que passam sem que nos apercebamos, em parte imaginados, tal como os microdramas que a infância observa em seus jogos: um combate de insetos, as velocidades da aranha ao tecer sua teia, o andar inquieto e furtivo de um lagarto, uma frágil embarcação de papel que seguimos soprando e que pende perigosamente em uma pequena poça d’água. Talvez exista aí um exercício de observação, algo a meio caminho entre o devaneio e a análise, a antecipação, a constatação e a memorização, uma frequentação atenta de todo tipo de pequenos (ou grandes) acontecimentos que preparariam, de algum modo, para o exercício de uma cena temporal: incorporar as durações, “contrair” os movimentos, associar as sensações, detectar os dinamismos, as velocidades, as intensidades, decifrar a inflexão das vozes, seu agrupamento e sua separação, apreender as formas e as forças em seu martelar, em seu escoamento, seu desenrolar.
A observação dinâmica é uma cena inesgotável de pequenas (ou grandes) histórias, de cenários retomados mil vezes com inumeráveis variações, uma cena na qual a imaginação vem tomar parte agenciando variáveis, atribuindo preferências de continuidade, de ruptura e de reencadeamento. Da observação ao esboço temporal é possível manejar as distâncias, as grandezas, os dinamismos com uma necessária atividade associativa, conectando, afastando, tecendo o fio do tempo. Ou seja, tudo o que seria da ordem desta função territorializante–desterritorializante, que Deleuze e Guattari atribuem ao ritornelo e ao seu devir música, e que parte de uma ligação intensiva (apercepção territorializante) e vai em direção à sua transformação, sua virtualidade mutante. Tudo ao modo das cenas que se refazem (em loop) ora em sentido direto ora em sentido inverso (inversão), que se desenrolam sobre um percurso (desenvolvimento), que voltam por fragmentos (motivos), que se desdobram (espelho), que se distribuem em jogos mais ou menos simétricos (desencaixes, quebras), cujas escalas são modificadas (transposição), traços que se caracterizam (figuras), que se autonomizam (ornamentos), que se encadeiam (linhas melódicas, rítmicas), frequências que se associam (timbres, harmonias), complexos que se transformam (morfologias), estados que se superpõem (texturas), velocidades que se modulam (tempi)…
Com certeza dirão que isto (entre outras coisas) não é ainda a música. Não, de fato não é, mas é de certo modo aquilo que, sob a música, a liga ao mundo. São suas raízes pré–musicais (os jogos de forças, tensões, pulsões que estão sob a música), o que já requer um mínimo de forma. A música lhes dá voz. Ela elabora um teatro particular – mental, móvel, imaterial e, no entanto, bem atual, uma cena para acontecimentos, signos e figuras temporais em vias de serem vividas, escutadas: formas do tempo.
Nesta relação simultaneamente íntima e aberta, impessoal, elaborar a escuta é um modo de voltar–se para a acontecimentidade temporal em todas aquelas modalidades que se podem tornar audíveis². E sem dúvida, a vontade de entrar neste jogo de signos com o espírito de um agrimensor, prestes a contar compassos, a produzir, a traçar um esboço temporal, já constitui um lugar compartilhável e um prazer de músico.
Do sonoro ao musical: construir uma cena de escuta
Podemos provocar, de modo legítimo, uma cena de escuta, ter a intenção estratégica de criar um cinema para os ouvidos, desfazer, religar. Como a multiplicidade acústica pode ser apreendida (declinada) enquanto campo de configuração para experiências de escuta e relações sonoras não preestabelecidas? As invenções técnicas revolucionaram nossa representação do espaço e do tempo; do telefone à gravação sonora, da difusão em alto–falantes à sua transmissão telemática. Doravante, sabemos que o som não está sistematicamente associado à sua fonte e que as simultaneidades reais, partilháveis, não respondem mais necessariamente à unidade de tempo e de lugar. Tais simultaneidades os excedem e se conectam para além da presença concreta e imediata do evento. Trata–se, nesta zona indiscernível de comunicações heterogêneas, latentes, de passar a uma escuta “emergente”. Este ponto de vista pluridimensional e móvel supõe um campo paradigmático no qual as categorias do sonoro, do musical, do ruído, da harmonia, do ritmo, da melodia, do material acústico, do audível, do inaudível etc. são redefinidas. E, sem dúvida, teremos necessidade de uma escuta “analítica”, ativa e discernente. Mas esses diferentes níveis de escutas que evoquei, aliás, não exaustivos – escuta “objetivada”, “flutuante’, “emergente”, “analítica” –, não são exclusivos…
São tendências que se cruzam e trabalham juntas na aquisição cultural da escuta, tanto quanto no que se daria em um projeto musical aberto sobre a multiplicidade acústica. As revoluções das técnicas eletrônicas e da informática musical deram acesso à totalidade das relações de frequências, e a digitalização do som renovou sobretudo a concepção do sonoro e de sua representação. Graças a uma descrição bem mais precisa das componentes do som e de sua distribuição, torna–se possível situar–se no nível da organização do sonoro. Ou seja, pode–se dizer que o dispositivo sonoro, agora, é parte integrante da escritura musical: do estado inicial das condições de emissão do som aos regimes de energia que o sustentam (instrumentos acústicos, mecânicos, elétricos, eletrônicos), de sua projeção – da difusão, propagação, até sua recepção no espaço acústico. Neste espaço, apreendido segundo uma infinidade de pontos, o compositor elabora sua relação com o sonoro a partir de um plano que não é mais dado segundo regras hierárquicas preestabelecidas. Tal pensamento crítico – e inventivo – das relações sonoras torna–se um pressuposto necessário para a composição, uma “escritura das variáveis”.
No campo das determinações sonoras, a música se coloca no nível acontecimental do som: compor, decompor, recompor as relações sonoras até que se modelem novas concreções e comportamentos temporais que não dizem mais res- peito aos objetos identificáveis da percepção. Configurações de variáveis, mistos, hibridações, os artefatos de escritura se valem da variabilidade das frequências e das componentes acústicas. É possível remontar às condições da experiência de escuta, à organização do som, da sua fatura, de seu espaço de relação – em vista a construir uma cena de escuta. É possível colocar–se no nível dos micro– acontecimentos, aquém da identidade da nota musical. Esta “molecularização” do som abre–se para variações ínfimas, para técnicas instrumentais específicas e para uma nova expressividade. Com Objectiles para quatro violões³, por exemplo, tomei por base as qualidades de comportamento acústico próprias das cordas, aquelas oriundas das variações do modo de tocar raspado–glissado. Essa técnica instrumental específica permite a coexistência de duas linhas divergentes: ouve– se simultaneamente a frequência da raspagem (excitação) e seu percurso no próprio meio excitado, segundo uma curva invertida.4 É necessário um dispositivo de microfonação para amplificar e chamar a atenção para tais relações acústicas, ora muito tênues, e fazer aparecer a resposta “complementar” da corda – uma espécie de sombra do som, aqui essencialmente presente no nível da escritura. Trata–se de criar (configurar) uma experiência de audição no limite da percepção e de tocar no nível do grão sonoro, de sua plasticidade e mobilidade5. Neste contexto, toda a atenção está voltada para as condições de modelagem do som, do gesto à sua codificação (script). Esse princípio permitiu–me trabalhar sobre os graus de “elasticidade” de um material atravessado por velocidades, dinamismos divergentes, coexistentes: uma superfície múltipla, comunicante, sem localização estável, propícia a matérias múltiplas e mutáveis.
Espaço múltiplo / escuta móvel
Coloquemos agora a questão da diferença, não aquela voltada ao molecular e às pequenas unidades contíguas, mas aquela voltada para o outro lado da cadeia de propagação do som, para as escalas heterogêneas imbricadas. Como habitar um espaço de modo plural? Como construir a cena auditiva de um espaço múltiplo e simultâneo? O ponto de escuta (ponto de observação) é uma variável que pode ser espacializada segundo proposições diversas a ponto de se “autonomizar”. Esta ideia remonta à infância e à expectativa de entrar e atravessar as coisas, os corpos, os materiais (o homem invisível, a ubiquidade etc.)… Como estender, por exemplo, a experiência da escuta para uma representação plural de um lugar ou de uma arquitetura? Quais experiências de distância, de volumes e de materiais, a música pode colocar em jogo para sensibilizar novas formas de escuta e de concerto?
Gostaria de falar aqui de uma experiência que se deu em uma vila construída por Le Corbusier nos anos 1930, a Villa Savoye6. Esta construção, destinada à vida de uma família, apresenta uma configuração fechada em um volume unificado; os cômodos, numerosos e de diversos tamanhos, exibem, cada um, características diferentes, são ladrilhados ou assoalhados, mobiliados com alvenaria ou não. Neste edifício sem móveis ou pintura, nada vem “colorir” os espaços antes de tudo reverberantes. Escolhi diferenciar a escuta em cada cômodo e constituir uma coleção de escutas qualitativas. Ao invés de um sistema de difusão sonora homogênea, equipei cada cômodo com um sistema de difusão particular, conservando o caráter alveolar do conjunto. Atentei para que os níveis sonoros se equilibrassem de um cômodo para outro e pudessem assim formar um “todo comunicante”, componível e recomponível segundo os cenários de difusão. Conservei também os espaços “vazios”: os corredores, as saídas, a escada central, todos foram reservados como “caixas de ressonância” permitindo efeitos de fronteira no centro da vila. Tratava–se, para mim, de uma experiência de escuta em um espaço múltiplo que se dá em uma fragmentação do espaço global, a possibilidade de uma escuta móvel graças a uma concepção múltipla da difusão, audível em pontos diversos7. Tomei por base um diagrama de tensões percorrendo o prédio por seus eixos direcionais (alto–baixo, fora–dentro, próximo–distante) e por suas relações contínuas (contiguidade, extensão, transições). Esta rede de relações permitiu jogar com diferentes configurações espaciais sobre cenários acionáveis que permitiram reconfigurar o espaço, realocar as fontes sonoras, esculpir o acontecimento em tempo real. Tratava–se, neste espaço múltiplo, desconstruído, de tirar partido das potencialidades acústicas, de criar uma dramaturgia espacial própria para o lugar. Privilegiei, assim, as situações paradoxais, jogando com a ilusão, a surpresa, o aparecimento e desaparecimento das fontes reais ou dos seus duplos em um espaço fictício. Neste espaço de relação contraditório e no entanto presente, vivido no instante, o ouvinte busca fazer–se uma ideia, ou simplesmente mudar seu ponto de escuta. Tomado entre a realidade e o paradoxo, ao modo das ficções de Borges em que camadas de tempo diferentes se sobrepõem, o ouvinte deverá construir (tecer) sua própria escuta, na qual disputam a questão do ponto de vista e do ponto de escuta. Com isto, a espacialidade não se limita à questão da difusão espacial, ao movimento espacial de um ente físico identificável, mas se compreende na reciprocidade das condições espaciais e da projeção sonora, em um entrelaçamento móvel do olhar e do ouvir8.
O que chamo então de concerto fora de cena não é mais o da escuta em um sentido tradicional do termo, nem o da atividade controlada, estática. Um passeio tanto sonoro quanto visual, experiência dinâmica das configurações, das posições de uma escuta em movimento, engaja a subjetividade nas emoções estéticas que se sobrepõem e se justapõem. O acontecimento musical advém junto à transfiguração do lugar no qual ele se dá – heterotopia ligada à deambulação deliberadamente aberta às conexões do olhar e do ouvir, lançada às múltiplas solicitações que a assaltam por todos os lados. Este “teatro dos sons” é um espaço projetivo no qual o ouvido ubíquo – um ouvido impossível – se desloca, sonha e joga com espaços, distâncias e dimensões.
Escuta sólida: escutar de outro modo
Foi experimentando as possibilidades de uma tal escuta, em relação com o espaço acústico de uma arquitetura e de seus materiais, que desenvolvi novas técnicas de captação e difusão e que, também, empreguei sistemas de propagação sonora nos próprios materiais. Criei então – em colaboração com laboratórios de pesquisa em acústica9 – dispositivos que permitem escutar pelo toque, pelas transmissões ósseas. Diferentemente do alto falante, que põe o ar em movimento, tais dispositivos transmitem a informação sonora via o próprio material. Produzimos assim “mesas sonoras” e “estações de escuta” em que os estados vibratórios se propagam pelo sólido. Pode–se então ouvir os sons com o corpo. A escuta através da condução óssea é impressionante: as estações de escuta, por exemplo, são feitas de modo a permitir que uma informação sonora muito precisa – a voz, o ruído, a música – seja recebida pelo simples contato da testa ou do queixo. O som, transmitido à região craniana ou ao esqueleto, se manifesta por uma sensação de escuta “interna” ao corpo. De certo modo, já conhecemos esta sensação quando ouvimos nossa própria voz, propagada pelo conduto auditivo e pelas cavidades ósseas da cabeça e do tórax. Esta sensação é aqui fortemente ampliada e a configuração corpo/espaço habitual é colocada em questão. Esta escuta levanta diversas questões relativas à representação psicofísica do espaço ligado ao som, pois as referências de distância e de proximidade, bem como as fronteiras entre dentro/fora, si/outro, não são mais fisicamente pertinentes.
Trabalhos de estúdio me permitiram medir o quanto é grande a surpresa para todo mundo e como tais dispositivos sensibilizam novas sensações e representações para cada pessoa, qualquer que seja a idade e as aptidões. Pude particular- mente explorar mais tais jogos com jovens surdos e notar o modo como tais dispositivos provocam, para aqueles surdos de nascença, tanto uma alegria ativa, com verdadeiro prazer da processualidade propagativa, quanto uma escuta meditativa, os olhos fechados, acompanhados de movimentos corporais. É grande a surpresa com a descoberta de matérias expressivas desconhecidas, percepções vibratórias “sólidas” associadas à visão: tatear uma voz, um farfalhar de papel. Não se trata de reencontrar a audição, mas de associá–la a diferentes modalidades sensoriais. De fato, esta recepção provém sobretudo de competências hápticas e intermodais do “tatear”, no entanto suficientes aqui para estabelecer um jogo e uma reciprocidade. E foi sobre essa base que tivemos por projeto a realização de “histórias sensíveis” com os jovens do Instituto Nacional dos Jovens Surdos10.
Do lado dos ouvintes, a escuta “sólida” acentua a continuidade dentro/fora não como lugar totalizado ou único, mas como meio comunicante no qual a representação do próximo e do longínquo, em relação com um si “dentro”, se encontra de algum modo incorporada e não distinta. Este deslocamento provoca uma experiência de simultaneidade que confunde de algum modo a escuta habitual (convencionada) de um dado de escuta exterior ao sujeito. Este ponto de escuta transitivo desvela uma nova posição no espaço “membrana”, uma outra possibilidade de circulação. A característica desta escuta revela, sem dúvida, uma maior continuidade, susceptível de favorecer emergências de si ligadas às experiências de descentramento, de deslocamento do ponto de escuta e de “translocalização”. Pois a escuta pela via óssea interroga a incorporação das representações espaciais ligadas aos sinais sonoros e provavelmente seu escoramento precoce. Geneviève Haag11, psiquiatra infantil, especialista em desenvolvimento da criança autista, retoma a hipótese de Suzanne Maiello12 e reforça a possibilidade de formação de representações do espaço e da alteridade ligadas à transmissão sonora óssea desde o estado pré–natal (os tímpanos só se abrem por volta dos últimos três meses de gestação). Esta hipótese é retomada e desenvolvida em certas abordagens do autismo que elaboram análises clínicas e práticas terapêuticas atentas ao senti- mento de continuidade e descontinuidade vibratória13.
A título pessoal formulo aqui a hipótese de que a escuta sólida oferece uma experiência que relativiza a fronteira entre um corpo continente – comunicante ou não, receptivo ou fechado, susceptível de ser invadido – e um corpo–membrana disposto à modulação coextensiva dos fluxos interiores–exteriores. Longe das representações enclausuradas e estanques, pareceria que a polimodalidade implicada nesta escuta, por uma mobilização mais direta do corpo, contém subjetivações transientes ainda pouco reconhecidas. Ouvir com os dedos, as costas ou o queixo, ver com os pés, tatear ruídos com as articulações, como valorizar esta mobilidade transiente? Da complementariedade das atitudes sensoriais à recepção – em nós mesmos, uns com os outros e em nossas relações com o mundo – da- quilo que habitualmente é separado e ignorado: aquela parte que em nós é cega, surda, afásica… Sem dúvida a intermodalidade sensorial encoraja a perspectiva de experiências subjetivas inéditas, não menos do que os usos, as práticas mistas e a concepção de suportes materiais que as tornarão possíveis.
Para concluir, ter–se–á notado, no curso desta viagem ao país do “ouvido ubíquo”, que o deslocamento do ponto de escuta nos oferece numerosas experiências de simultaneidade e descentramento.
NOTAS
- A ubiquidade se diz daquilo que pode estar simultaneamente em diversos.
- Criton, P. Dynamismes et expressivité. Musique, esthétique, sciences, société. “Nouvelles sensibilités”, número organizado por Jean–Marc Chouvel, n. 4, nov. 2006. Versão online disponível em: <http://revues.mshparisnord.org/filigrane/index.php?id=370>
- Objectiles (2002) para quatro violões (encomenda de Alla breve Radio–France, Edições Jobert).
- Para ilustrar esta realidade, consideremos, por exemplo, um dedo apoiado sobre o braço de um Conforme a posição do dedo da mão esquerda no braço do instrumento, o comprimento da corda se encontra alongado ou encurtado e produz assim sons de alturas mais ou menos graves ou agudas. No entanto, a parte restante da corda, a parte “morta”, situada do outro lado do dedo, emite uma frequência própria, de pouca amplitude, que varia igualmente segundo a posição do ponto de contato. A presença desta componente acústica “complementar” – sempre descartada por ser considerada incômoda – de fato desdobra a realidade sonora.
- Os diferentes movimentos de Objectiles são: I – Affleurant, II – Ondulant, III – Flexible, IV – Plastique, V –
- A Villa Savoye, chamada “As horas claras”, foi construída por Le Corbusier em Poissy (Yvelines, França) entre 1928 e
- O dispositivo sonoro foi realizado em parceria com Hugues Genevois (responsável científico da Équipe Lutherie – Acoustique – Musique, LAM, Paris) e põe em jogo tecnologias inovadoras no domínio da captação e difusão
- Criton, P. Mobilité et hétérotopies sonores. Musique, esthétique, sciences, société. “Mu- sique et lieu”, número organizado por Jean–Marc Chouvel, n. 12, 2010. Versão online disponível em: <http://revues.mshparisnord.org/filigrane/index.php?id=307>
- LAM (Équipe Lutherie – Acoustique – Musique, Institut Jean Le Rond d’Alembert, UPMC, Paris), e LAUM (Laboratoire d’Acoustique de l’Université du Maine, CNRS, École Nationale Supé- rieure d’Ingénieurs du Mans, Le Mans).
- Histoires sensibles é um projeto de criação artística e pedagógica que realizarei com as classes do INJS (Paris) no período escolar de 2012–2013, como parte do programa da Agence Nationale de la
- Haag é psiquiatra infantil e psicanalista, autora de “L’enfant autiste et l’objet sonore pré–natal” publicado em Castarede, M. F.; Konopczynski, G. (eds). Au commencement était la voix. Paris, Tolouse: ERES, 2005 e do artigo “Réflexions de psychothérapeutes de formation psychanalytique s’occupant de sujets avec autisme” publicado pela Revue française de psychosomatique. “La folie pro- tège–t–elle de la maladie?”, n. 27, 2005; e pela revista Le Carnet PSY, Boulogne, n. 97, 2005, esta última disponível em: <http://www.cairn.info/revue–le–carnet–psy–2005–2–page–28.htm>
- Maiello, S. Trames sonores et rythmiques primordiales: réminiscences auditives dans le travail Bulletin du Gerpen, Le Plessis Trévise, v. 39, p. 2–24, 1998; e L’Oracolo, Un esplora- zione allé radici della memoria auditiva, Analysis. Rivista Internazionale di psicoterapia clinica, Roma, Anno 2, n. 3, p. 245–268, 1991 (trad. francesa: L’objet sonore. L’origine prénatale de la mémoire auditive: une hypothèse. Journal de la psychanalyse de l’Enfant. Les corps, Paris, n. 20, p. 40–66, 1991).
- Lheureux–Davidse, C. Jouer avec les mouvements, les vibrations et les rythmes dans l’émer- gence de la voix. Champ psychosomatique. “La Voix”, Paris, n. 48, p. 185–203, 2007, e L’autisme infantile ou le bruit de la rencontre. Contribution à une clinique des processus thérapeutiques. Paris: L’Harmattan, 2003.
Conferência apresentada no dia 6 de setembro de 2011, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, a convite de Peter Pál Pelbart e Denise Sant’Anna.
Pascale Criton é musicóloga e compositora francesa de música contemporânea. É conhecida por explorar escalas microtonais e seus efeitos sobre a percepção. Compôs, entre outros, Territoires imperceptibles e La Ritournelle et le galop. Foi aluna, amiga e consultora de Gilles Deleuze.
FONTE
Cadernos de Subjetividade, n.14, 2012. Tradução de Silvio Ferraz.