O COMUNISMO DA IMANÊNCIA: Félix Guattari entrevistado por Toni Negri

TONI NEGRI: Gostaria de começar por uma questão que também fiz, recentemente, a Gilles Deleuze, a propósito de Mil Platôs. Nesse livro, que considero um dos grandes ensaios filosóficos do século, acreditei perceber uma nota trágica. Os pares conflitantes que nele se desenham (processo/projeto, singularidade/sujeito, composição/organização, linhas de fuga/dispositivo e estratégia, micro/macro, etc.), tudo o que, em suma, constitui um sistema aberto encontra-se, por outro lado, não re-enclausurado, mas contido como numa tensão insolúvel e num esforço sem fim. É nisso que me parece consistir o elemento trágico desse livro.

FÉLIX GUATTARI: Alegria, tragédia, comédia … os processos que gosto de qualificar como maquínicos trançam um futuro sem garantia – é o mínimo que podemos dizer! Estamos ao mesmo tempo “presos numa ratoeira” e destinados às mais insólitas e exaltantes aventuras. É impossível levar-se a sério, mas também impossível não “se enganchar”. Essa lógica da ambiguidade, eu não a vejo tanto como uma “tensão insolúvel”, mas como o jogo multívoco, polifônico, de escolhas paralelas, por vezes antagônicas, que não lhe deixa outro recurso senão o da má-fé, a bifurcação interrompendo todo o resto. Como “lidar” com essas constelações insustentáveis de universos de referência? O esquecimento pode ser de grande ajuda, mas ele não está ao alcance de todos!

NEGRI: Nas Cartographies Schizoanalytiques, mas a partir daí em todos os seus textos, para caracterizar o período histórico atual, você utiliza a expressão “era informática planetária”. Esta categoria ecoa com os discursos foucauItiano e deleuziano sobre a era da comunicação, especificando-os. A aceitação dessa categoria em filosofia tem efeitos metodológicos fundamentais: ela lhe permite resolver a genealogia na epistemologia e vice-versa, e construir os agenciamentos de enunciação de um ponto de vista histórico. No entanto, esta redução não pode ter também efeitos perversos no caso de uma epistemologia de referência informática? Não há risco de achatamento da determinação ou do agenciamento genealógico no universo das relações transversais, lineares e indiferentes características desta epistemologia? Como romper a indiferença do horizonte informático?

GUATTARI: A subjetividade capitalística implica uma binarização e uma desqualificação sistêmica de todas as “mensagens”. Ela coroa o reino de um equivaler generalizado que tem, além disso, estendido suas coordenadas nos domínios do Espaço, do Tempo, da Energia, do Capital, do Significante, do Ser … Trata-se ao mesmo tempo de um horizonte histórico, cujo surgimento é datado, e de uma vertigem axiológica que remonta a tempos imemoriais. Por toda parte sempre houve ameaça de abolição da complexidade qualificada, desde o interior. O caos habita o complexo; o complexo habita o caos. O que implica que este último seja composto de entidades animadas a uma velocidade absoluta – deixando que a ciência “reduza” essas velocidades com constantes tais como c, h (constante de Planck), o instante zero do bigue-bangue, o zero absoluto, etc … O que legitima uma perspectiva de “revolução molecular” é que esta entropia capitalística da subjetividade se instaura em todos as escalas e renasce constantemente de suas cinzas. Uma periodização como a que encadeia a passagem das sociedades de soberania para as sociedades disciplinares, para resultar nas sociedades de controle, é ao mesmo tempo genealógica e ontogenética. Todos esses regimes de territorialização do poder, do saber e da subjetividade se decompõem e se recompõem na subjetividade contemporânea. O que faz com que, por exemplo, não se possa falar hoje, com a escalada dos integrismos e dos racismos, de “regressão arcaica”, mas antes de progressismo fascista ou, a rigor, de neo-arcaísmo, sendo entendido que eles reinventam com todas as peças formas de inteligência e de sensibilidade do mundo contemporâneo. Recomeçar a história desde o começo ou dobrá-la em direção a finalidades progressistas: este não é mais, verdadeiramente, o problema! Trata-se antes de recompor, sobre outras bases, os agenciamentos de subjetivação e, neste momento, recriar de um modo pático as diversas figuras da subjetivação histórica, das quais a subjetividade capitalística é a mais vertiginosa por seu vazio, sua banalidade, sua vulgaridade …

NEGRI: Nós vivemos num mundo em que a pluralidade dos processos de subjetivação se constitui através de uma pluralidade de equipamentos coletivos, bem como de mercados e de instituições. Esse processo é muito rico e impossível de ser encaixado nas velhas categorias da democracia ou do socialismo. Para não falar nas velhas categorias do capitalismo liberal. Mas esse processo é também atravessado por dinâmicas de globalização e de subordinação que relativizam e sobrecodificam a intensidade dos processos de subjetivação. Por vezes, tenho a impressão que o processo molecular, uma vez tomado hegemônico, foi consumido e digerido por uma potência molar que não reconhece mais seu oposto como existente. Nesse contexto as saídas metafísicas e políticas não são interessantes. Como na multidão molecular se pode reconstruir uma oposição molar?

GUATTARI: Substituída pela mídia de massa, pelas sondagens, pela publicidade, pelas consultorias em comunicação, a democracia política toma-se não só cada vez mais formal, cada vez mais cortada da realidade, mas também cada vez mais delirante. O que não significa que ela perca toda relação com a subjetividade capitalística. Os líderes políticos rivalizam com os apresentadores de televisão para penetrar sempre mais na pseudo-intimidade dos lares. É o reino do show de variedades substituído pelo psico-show. O vertiginoso, em tudo isso, é a capacidade que tem esse tipo de produção de subjetividade de capturar toda imanência processual, toda mutação molecular. Existiria, contudo, uma prova de verdade capaz de discriminar-se do engodo, do fingimento, do simulacro, já que estes podem também tomar-se o lugar de uma autêntica territorialização existencial? Veja, por exemplo, o gestual estereotipado de uma estrela da cultura rock, cujos traços são, contudo, objetos de reapropriação por crianças e adolescentes em momentos cruciais de sua existência. Mas a prova da verdade não engana, ela é de ordem pática: é ela que encadeia uma espécie de adesão existencial que cria o acontecimento.

É bem verdade que todos esses focos de resistência molecular contra a serialidade da subjetividade capitalística se encarnam, frequentemente, como retornos à transcendência, ao misticismo, ao culto do “natural”. Isso me incomoda menos que a você. Eu me digo que Deus encontrará aí os seus! Há algo de tão artificial nesses neo-arcaísmos … Eles nunca implicam mais que um estrato dentre outros das formações de subjetividade. Sabemos muito bem que os integristas tomam um trago e assistem filmes pornôs às escondidas. O que não desculpa nada! Resumindo, o microfascismo está sempre renascendo, mas não forçosamente o macrofascismo.

A oposição molar passa ainda e sempre pela constituição de máquinas de guerra social. Chegou a hora, porém, de pensar em outra coisa que não nas máquinas leninistas. Acabamos de ver nascer máquinas molares conhecidas no terceiro mundo, com o integrismo iraniano e depois o nacionalismo iraquiano. Houve durante oito anos guerra de modelos, seleção artificial e depois colocação à prova! Uma vez que a sobrecodificação das relações internacionais pelo antagonismo Leste-Oeste se enfraqueceu, podemos esperar ver nascer e proliferar toda uma série de máquinas molares. Não há apenas exemplos catastróficos: o PT no Brasil autoriza esperanças reservadas… mas veja bem que eu não tenho programa, modelo de referência! Tudo o que posso dizer é que me parece legítimo, inevitável, que as revoluções moleculares sejam “duplicadas” por máquinas de grande escala trabalhando no seio das relações de forças sociais que, longe de se apagar, irão se endurecer, mesmo que se diferenciando.

NEGRI: Você sustenta o direito fundamental à singularidade. Você o ilustra como um recentramento das finalidades da divisão do trabalho e das práticas sociais emancipadoras, como exercício de uma ética da finitude. Como a partir daí um processo de singularização pode tornar-se antagonista? Ou ainda, como a resistência das singularidades oprimidas pode tornar-se eficaz? Há ainda um intolerável? Ou ele próprio foi reabsorvido no mecanismo da pluralidade crescente dos mercados? Existe a possibilidade de construir uma ideia filosófica do comunismo e de liga-la ao processo de subjetivação? Ainda é possível fazer tudo isso sem cair nas armadilhas do positivismo, do dogmatismo e da utopia?

GUATTARI: Tenho a impressão que você se esforça em me fazer falar. Você sabe tanto quanto eu que um processo de singularização é uma pura afirmação que ignora o antagonismo, a opressão ou mesmo simplesmente a interação. Trata-se justamente aí de sair mais uma vez das metáforas dinâmicas e energéticas. Um comunismo da imanência conduziria constantemente o cursor sobre práxis ético-políticas dando suporte a seus próprios universos de referência. Fora com os paradigmas científicos que assediaram o marxismo, o freudismo, o estruturalismo, etc … Todo um pensamento da transcendência, toda uma sentimentalidade da eternidade transformaram o progressivismo em uma imensa fobia, um evitamento sistemático da finitude, da inutilidade última da existência magnificamente ilustrada por Samuel Beckett. No lugar de fazer disso uma doença, constituir uma razão pragmática. Há aí um salto estético que expropriaria o salto religioso de Kierkegaard. Por que mudar? Por que a revolução e não o nada? Porque isso tem uma cara melhor! Mas, no fundo, por nada, por um prazer imaterial, uma palpitação imperceptível na superfície das coisas.

NEGRI: Conheço sua paixão pelo acontecimento e seu prazer pela vida. Mas quando filosofa, você parece querer distanciar-se disso. Como você consegue gerir a esquizofrenia estrutura-acontecimento? Você não tem sempre tendência de antecipar a estrutura subjacente ao acontecimento, correndo risco de não o deixar falar? Esta questão pode ser encontrada em seu trabalho com Deleuze? Qual é sua teoria do acontecimento? Como imaginar hoje não o processo, mas o acontecimento revolucionário, não as condições da revolução, mas o poder constituinte?

GUATTARI: O acontecimento é um dom de Deus. Temos sempre a impressão de que nada acontece, de que nada mais acontecerá. E, então, surgem os “acontecimentos do Golfo”. Mesmo neste caso eu pensei que, no fundo, nada aconteceria. A máquina mass-mediática planetária lamina todas as asperidades, todas as singularidades. Não encontramos mais as zonas de mistério. A questão agora é fazer um acontecimento com o que se apresenta. Não como os jornalistas que são obrigados, o que quer que se passe, a fazer seu “serviço”. Mas de modo mais poético. Trata-se aqui, portanto, de um poder constituinte, de uma produção ontológica sui generis. Lidar com a serialidade. Nem que seja sonhando com os militares americanos cozinhando nos seus tanques, com a confusão dos reféns, com o júbilo dos jovens árabes, com o delírio sistemático de Sadam … Essas cenas, sem limites precisos, para que enfim aconteça alguma coisa!

Quanto à questão que você levanta, relativa à estrutura, eu gostaria de descentrá-Ia. Eu nunca pretendo descrever um estado de fato, um estado da história ou da subjetividade. Eu procuro apenas demarcar as condições de possibilidade dos diversos modos de descrição possíveis. Para apreender ou para contornar as problemáticas da enunciação coletiva, todo sistema de modelização – quer seja ele teórico, teológico, estético, delirante … – é levado a posicionar o que chamo de fatores ontológicos (os Fluxos, os Phylums maquínicos, os Territórios existenciais, os Universos incorporais). Assim, encontra-se conjurada ou assumida parcialmente a questão, para mim essencial, do pluralismo ontológico. Há escolha de constelações singulares de Universos de referências, encarnados em Territórios existenciais, eles próprios marcados por uma precariedade, uma finitude que faz oscilar o Ser numa irreversibilidade criacionista. Nessas condições, uma ontologia só pode ser cartográfica, metamodelização de figuras transitórias de conjunções intensitárias. O acontecimento reside nessa conjunção: de uma cartografia enunciadora e essa tomada de ser precária, qualitativa, intensiva. Essa relação de fundação recíproca entre o que exprime e o expresso, o que dá e o dado, encontra sua expressão exacerbada na criação estética precisamente considerada como poder constituinte ontológico.

Digamos que existam três tempos: o do estado inicial, o do retorno a zero e o da retomada de processualidade. O segundo tempo não é dialético. Nele, nunca se termina com a finitude, com o não-senso. E, no entanto, trata-se de um tempo rico, de uma recarga de complexidade através de um banho caótico. O tempo zero sempre reserva surpresas; a partir de pontos de singularidade podem dar partida novas linhas de possível. O terceiro tempo seria o dos imaginários, ou seja, da retomada das ambiguidades. Como definir um comunismo, ou simplesmente um amor bem-sucedido, escapando de fato às ilusões de um desejo de eternidade. A potência de viver, a alegria spinozista só escapa à transcendência, à lei mortífera por seu caráter de modalidade fragmentar, polifônica, multirreferencial. A partir do momento em que uma norma pretende unificar a pluralidade dos componentes éticos, a processualidade criativa se oculta. A única verdade última é a do caos como reserva absoluta de complexidade. O que constituiu a força e a pureza das primeiras “reprises” de socialismo e de anarquismo foi justamente ter mantido reunidos, ao menos parcialmente, um imaginário comunista ou libertário e um sentido agudo da precariedade dos projetos individuais e coletivos que os suportavam. Desde então, a finitude tornou-se insípida, a subjetividade mass-mediatizada e coletivizada se infantilizou. A finitude do segundo tempo de “fio-terra” não está dada de uma vez por todas. Sem cessar, ela deve ser reconquistada, recriada nos seus ritornelos e na sua textura ontológica. A reconstrução do comunismo passa hoje por uma ampliação considerável dos modos de produção de subjetividade. Donde a temática de uma junção entre a ecologia do meio ambiente, a ecologia social e a ecologia mental por uma ecosofia.


Tradução ROGÉRIO DA COSTA


FONTE

Cadernos de Subjetividade, n. 11 (2003): O reencantamento do concreto.

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