As homossexualidades funcionam, no campo social global, um pouco como movimentos, capelas, com seu cerimonial particular, seus ritos de iniciação, seus mitos amorosos, como diz René Nelli¹. Apesar das intervenções dos agrupamentos de caráter mais ou menos corporativista, como Arcadie², a homossexualidade continua ligada aos valores e aos sistemas de interação da sexualidade dominante. Sua dependência da normalidade heterossexual se manifesta por uma política do segredo, uma clandestinidade alimentada pela repressão e também por um sentimento de vergonha ainda vivo nos meios “respeitáveis” (particularmente entre os homens de negócio, de letras e de espetáculos, etc.) sobre os quais a psicanálise reina hoje em dia. Ela rege uma normalidade mais sofisticada, não moral, mas científica. A homossexualidade não é mais um caso de moral, mas de perversão. A psicanálise a transformou em doença, em atraso de desenvolvimento, em fixação na fase pré-genital, etc.
Num outro nível, mais minoritário, mais vanguardista, encontramos uma homossexualidade militante, do tipo FHAR³. A homossexualidade contesta o poder heterossexual em seu próprio terreno. Agora quem vai ter que prestar contas é a heterossexualidade. O problema está deslocado, o poder falocrático tende a ser questionado. Em princípio, uma conexão torna-se então possível entre a ação das feministas e a dos heterossexuais.
No entanto, conviria destacar um terceiro nível, mais molecular, em que não se distinguiriam mais de uma mesma maneira as categorias, os agrupamentos, as “especialidades”, em que se renunciaria as oposições estanques entre os gêneros, em que se procuraria, ao contrário, os pontos de passagem entre os homossexuais, as travestis, os drogados, os sadomasoquistas, as prostitutas; entre as mulheres, os homens, as crianças, os adolescentes; entre os psicóticos, os artistas, os revolucionários. Digamos, entre todas as formas de minorias sexuais, desde que se saiba que neste domínio só se pode ser minoritário. Neste nível molecular, nos deparamos com paradoxos fascinantes. Por exemplo, pode-se dizer ao mesmo tempo: 1) que todas as forma de sexualidade, todas as formas de atividade sexual, se revelam fundamentalmente aquém das oposições personológicas homo/hetero; 2) que no entanto elas estão mais próximas da homossexualidade daquilo que se poderia chamar de um devir feminino.
Ao nível do corpo social, a libido encontra-se efetivamente tomada pelos dois sistemas de oposição de classe e de sexo: ela tem que ser machona, falocrática; ela tem que binarizar todos os valores – oposições forte/fraco, rico/pobre, útil/inútil, limpo/sujo, etc.
Ao nível do corpo sexuado, a libido está empenhada, pelo contrário, num devir mulher. Para ser mais exato, o devir mulher serve de referência, eventualmente de tela aos outros tipos de devir (exemplo: um devir criança, como em Schumann, um devir animal, como em Kafka, um devir vegetal como em Novalis, um devir mineral, como em Beckett).
Por não estar tão longe do binarismo do poder fálico, o devir mulher pode desempenhar este papel intermediário, este papel de mediador frente aos outros devires sexuados. Para compreender o homossexual, dizemos que é um pouco “como uma mulher”. E muitos dos próprios homossexuais entram nessa jogada um tanto normalizadora. O casal feminino-passivo/masculino-ativo permanece assim uma referência tornada obrigatória pelo poder, para permitir-lhe situar, localizar, territorializar, controlar as intensidades do desejo. Fora dessa bipolaridade exclusiva, não há salvação: ou então é a caída no absurdo, o recurso à prisão, ao asilo, à psicanálise, etc. O próprio desvio, as diferentes formas de marginalismo são codificadas para funcionar como válvulas de segurança. Em suma, as mulheres são os únicos depositários autorizados do devir corpo sexuado. Um homem que se desliga das disputas fálicas, inerentes a todas as formações de poder, se engajará, segundo diversas modalidades possíveis, num tal devir mulher. É somente sob esta condição que ele poderá, além do mais, devir animal, cosmos, carta, cor, música.
A homossexualidade, por força das circunstâncias, é portanto inseparável de um devir mulher – até mesmo a homossexualidade não edipiana, não personológica. O mesmo é válido para a sexualidade infantil, a sexualidade psicótica, a sexualidade poética (exemplo: a coincidência em Ginsberg4 de uma mutação poética fundamental e de uma mutação sexual). De modo mais geral, toda organização “dissidente” da libido deve assim compartilhar de um devir corpo feminino, como linha de fuga do socius repressivo, como acesso possível a um “mínimo” de devir sexuado, e como última tábua de salvação frente a ordem estabelecida. Se insisto nesse ponto é porque o devir corpo feminino não deve ser assimilado à categoria “mulher” tal como ela é considerada no casal, na família, etc. Tal categoria, aliás, só existe num campo social particular que a define! Não há mulher em si! Não há pólo materno, nem eterno feminino… A oposição homem/mulher serve para fundar a ordem social, antes das oposições de classe, de casta, etc. Inversamente, tudo que quebra as normas, tudo que rompe com a ordem estabelecida, tem algo a ver com a homossexualidade ou com um devir animal, um devir mulher, etc. Toda semiotização em ruptura implica numa sexualização em ruptura. Não se deve, portanto, a meu ver, colocar a questão dos escritores homossexuais, mas sim procurar o que há de homossexual em um grande escritor, mesmo que ele seja, além disso, heterossexual.
Parece-me importante explodir noções generalizantes e grosseiras como as de mulher, homossexual… As coisas nunca são tão simples assim. Quando as reduzimos a categorias branco/preto ou macho/fêmea, é porque estamos com uma ideia de antemão, é porque estamos realizando uma operação redutora-binarizante e para nos assegurarmos de um poder sobre elas. Não podemos qualificar um amor, por exemplo, de modo unívoco. O amor em Proust nunca é especificadamente homossexual. Ele comporta sempre um componente esquizo, paranóico, um devir planta, um devir mulher, um devir música.
Uma outra noção maciça cujos danos são incalculáveis, é a de orgasmo. A moral sexual dominante exige da mulher uma identificação quase histórica de seu gozo com o do homem, expressão de uma simetria, de uma submissão a seu poder fálico. A mulher deve seu orgasmo ao homem. Se ela o “recusa”, se torna culpada. Quantos dramas imbecis são alimentados em torno disso! E atitude acusadora dos psicanalistas e dos sexólogos sobre esta questão não serve para resolver a situação. De fato, é comum que mulheres bloqueadas, com parceiros masculinos, cheguem facilmente ao orgasmo masturbando-se ou fazendo amor com outra mulher. Mas aí o escândalo é muito maior se as coisas chegam a ser descobertas!
Consideramos um último exemplo, o do movimento das prostitutas5. No começo, quase todo mundo exclamou: “muito bem, as prostitutas têm razão em se revoltar. Mas, atenção, é preciso separar o joio do trigo. As prostitutas, tudo bem. Mas dos cafetões não queremos ouvir falar!” E todo mundo se pôs a explicar às prostitutas que elas deveriam se defender, que elas são exploradas, etc. Tudo isto é absurdo! Antes de explicar qualquer coisa seria preciso primeiro procurar compreender o que se passa entre a prostituta e seu cafetão. Há o triângulo prostituta-cafetão-dinheiro. Mas há também toda uma micropolítica do desejo, extremamente complexa, que está em jogo entre cada pólo deste triângulo e diversos personagens tais como o cliente e a polícia. As prostitutas têm certamente coisas interessantes a nos ensinar a respeito disso. E ao invés de persegui-las, tinha-se mais é que subvencioná-las, como se faz com os laboratórios de pesquisa! Quanto a mim, estou convencido de que é estudando toda esta micropolítica da prostituição que se poderia esclarecer, sob uma nova luz, pedaços inteiros da micropolítica conjugal e familiar – a relação de dinheiro entre marido e a mulher, os pais e os filhos, e, mais além, o psicanalista e seu cliente. (seria preciso também retomar o que os anarquistas da belle époque escreveram a este respeito).
NOTAS
- N. da Trad.: René Nelli é autor de L’Erotique des Troubadours (10/18), onde faz uma análise do amor cortês.
- N. da Trad.: Arcadie foi a primeira revista homossexual publicada na França, por volta de 1954.
- N. da Trad.: Frente Homossexual de Ação Revolucionária, movimento dos homossexuais muito ativo nas décadas de 70.
- N. da Trad.: Allen Ginsberg, poeta da Beat Generation.
- N. da Trad.: Em 1975, quando foi escrito este artigo um grupo de prostitutas estava em pleno movimento de ocupação de igrejas, principalmente em Paris e Lyon, protestando contra aquilo que elas chamavam de “Estado-cafetão”. Estado que por um lado praticamente legaliza a prostituição – as prostitutas devem por exemplo submeter-se a exames médicos – e, por outro lado, as castiga constantemente com multas por prática ilegal de trottoir. Enfim, Estado que só as reconhece enquanto corpo a ser mantido em bom estado para que dele possa extrair mais-valia.
FONTE
GUATTARI, Félix. IN: Revolução Molecular. São Paulo, Brasiliense. Tradução: Suely Rolnik.