ETNOLOGIA E LOUCURA – por Peter Pál Pelbart

“Não fique louco, mas se for preciso, manifesta tua loucura desta forma. . . e não de outra. Se te afastares deste comportamento não passarás por louco, mas por criminoso, feiticeiro ou herético”¹. Em toda e qualquer sociedade, seja ela primitiva ou complexa, é esse, segundo o etnopsiquiatra Georges Devereux, o mandamento implícito em relação aos seus loucos potenciais.

Um comportamento desviante não basta para configurar uma loucura socialmente reconhecida como tal: pode significar crime, feitiçaria, heresia ou rebeldia, todos eles passíveis de punições diversas, conforme a cultura. Mas para ter acesso ao status de louco e a todas as vantagens, privilégios e especificidades daí decorrentes, o indivíduo deve conformar-se a um modelo de comportamento louco, tradicional a sua cultura. A tese de Devereux pode ser resumida numa fórmula simples: há maneiras corretas de ser louco, e de ser reconhecido como tal. Numa expressão feliz, Ralph Linton chamou essas maneiras de “modelos de inconduta”. Consistem de certos traços culturais que uma sociedade reserva para configurar sua psicopatologia, e que ela coloca à disposição de seus membros, de forma organizada e estruturada, para ser utilizada quando preciso.

Um belo exemplo de “modelo de inconduta” oferecido como forma hegemónica — e bem estruturada — de loucura, ainda que não beneficie sua vítima com qualquer privilégio advindo do reconhecimento do status de louco, a não ser simbólico, como veremos, é a corrida do amok entre os malásios. Trata-se de uma crise de loucura furiosa e assassina, onde o sujeito sai em corrida desenfreada, com um punhal (/cm) na mão, podendo atingir um membro de seu próprio grupo. Um corredor de amok, mesmo transpassado por uma lança, ainda é capaz de se aproximar de seu adversário e matá-lo. Um grito de “Amok! Amok!” constituía um sinal social ao qual os malásios reagiam um pouco como nós reagimos a uma sirene de alarme². A maneira clássica de acabar com uma crise de amok consistia em matar o corredor. Conta-se que o exército americano adotou a pistola calibre 45, ao invés de 38, pois esta era insuficiente para derrubar um corredor de amok, ainda que o atingisse no ventre ou no tórax.

Em muitas cidades malásias as autoridades colocavam nos cantos das ruas bastões em forma de garfo para que a população pudesse controlar os corredores de amok sem deixá-los se aproximarem demais. Quando da chegada dos holandeses, ao não mais se oferecer aos corredores de amok a morte gloriosa que eles buscavam, passando-se a condená-los a trabalhos forçados, a incidência das crises diminuiu sensivelmente.

Uma crise de amok pode ter causas diversas, diz Devereux: delírio provocado por febre alta, humilhação por algum insulto, desejo de perecer na glória sobre um monte de cadáveres, submissão às ordens de um superior hierárquico, fascínio exercido pelo kris, grave depressão reacional, antecipação intencional da conduta do amok (espécie de precipitação ritual numa crise de amok que o indivíduo sente estar chegando; o que a psicanálise chamaria de atitude contrafóbica), auto-hipnose em forma de litania sobre o destino mortal do homem, e muitas outras causas.

Que uma única manifestação — o amok — seja o escoadouro de tamanha diversidade etiológica não surpreende a etnopsiquiatria. Ela sustenta que múltiplos problemas e tensões subjetivas podem encontrar expressão num único complexo de sintomas, desde que ele seja culturalmente estruturado, na trama de uma configuração étnica. Sua forma será necessariamente tributária da cultura que lhe deu origem. A louca temeridade do corredor de amok é a manifestação paroxística da coragem, valor supremo do guerreiro malásio. O “modelo de inconduta” toma a forma, muitas vezes, de uma caricatura do modelo cultural total (voltaremos a esse ponto na questão da esquizofrenia e as sociedades contemporâneas).

A crise de amok é exclusiva da sociedade malásia. Não se poderá considerar a corrida desembestada de um cidadão americano disparando sua metralhadora no centro de Los Angeles e matando dezenas de civis indefesos como uma crise de amok. Tampouco o Ajax de Sófocles, que trucidou animais pensando matar seus adversários, é um corredor de amok. O amok só tem sentido no interior da cultura em que surge. Um europeu entre os malásios pode ter febre, ser humilhado, estar deprimido, receber ordens — ele jamais será acometido por uma autêntica crise de amok. A paixão do médico europeu exilado na Malásia e as extravagâncias a que o submete Stefan Zweig no conto intitulado Amok3 fazem dele um apaixonado enlouquecido segundo o modelo europeu, e não um corredor de amok, em que pesem as expressões do autor. Elas devem ser entendidas mais como recurso literário do que como testemunho etnográfico.

O amok, como vimos, é um tipo de desordem étnica, isto é, socialmente estruturada com um material cultural dado de antemão. Integram essa categoria várias outras manifestações primitivas, como o Cão-Louco-Que-Quer-Morrer dos índios das Planícies, nos Estados Unidos, o Windigo dos Algonquins, no Canadá, o Berserek dos Vikings, e outros. A lista é extensa e as formas muito diversas. Diferentes dessas desordens étnicas, porém, são as desordens sagradas, que constituem outra categoria e que Devereux analisa separadamente.

O personagem-tipo da desordem sagrada é o xamã. Os Mohave, que Devereux conheceu bem, consideram o xamã um louco. Devereux confirma o diagnóstico, e especifica: o xamã é psicologicamente enfermo por razões convencionais e de um modo convencional. O que o diferencia de um psicótico é a elaboração secundária convencional de um material inconsciente idêntico ao do psicótico. A comparação entre as alucinações de um psicótico paranóide “privado” (isto é, passível de assistência num ambulatório psiquiátrico ocidental) entre os Sedang Mói e as experiências sobrenaturais de qualquer xamã desta mesma tribo, diz Devereux, revela uma nítida comunidade de elementos, e as diferenças entre os dois situam-se sobretudo na estruturação destes elementos, que no caso do xamã é de tipo convencional (isto é, culturalmente codificado), e no caso do psicótico é não-convencional (idiossincrático)4.

Com essas observações sobre a psicose do xamã, Devereux pretende contestar as teorias relativistas que fazem do xamanismo uma norma cultural, com uma função social definida e necessária. Também combate a teoria de Akerknecht, para quem o xamã seria um autonormal e um heteropatológico. Não podemos entrar nos detalhes dessa discussão. Apenas lembraremos o argumento principal de Devereux, que consiste na distinção entre crença e experiência, mais precisamente entre crença tradicional e experiência subjetiva. Uma coisa, diz Devereux, é, para uma tribo uta acreditar que o xamã abriga em si mesmo um Homúnculo-Devorador-do-Mal, e outra coisa é um xamã uta sentir a presença deste homúnculo nele mesmo. Devereux conclui que o “xamã não é um neurótico porque partilha as crenças de sua tribo, ele é neurótico porque no seu caso particular, e somente no seu caso, essa crença se transforma, por razões neuróticas (sic), numa experiência subjetiva, ainda que culturalmente estruturada, de tipo alucinatório”5. Isto é, o xamã experimenta subjetivamente um sobrenatural que para os demais não passaria de uma crença. Pode-se imaginar aonde essa tese nos levaria se aplicada, por exemplo, ao caso das pitonisas, ou às mães-de-santo, para quem é improvável que o rito e a crença não constituam ao mesmo tempo uma experiência subjetiva. Mas não nos antecipemos.

Há um terceiro tipo de desordem estudado por Devereux, além da desordem étnica e da sagrada, já mencionadas — a idiossincrática. Ele insiste muito sobre a diferença entre os três tipos. A desordem étnica se utiliza de traços culturais para estruturar uma sintomatologia, a desordem sagrada é uma síndrome restitucional convencional referente a uma experiência sobrenatural originada num incidente psicótico, enquanto a desordem idiossincrática provém de um traumatismo não necessariamente recorrente na sociedade em questão, e portanto atípica, tanto na sua etiologia quanto na sua forma e evolução. Essa desordem insólita é estranha à psicopatologia da cultura em que aparece, de modo que o louco, neste caso, vê-se obrigado a inventar seus sintomas, improvisando-os de acordo com suas necessidades. Não é raro que essa improvisação se dê a partir da deformação de certos itens culturais, ou até de uma deculturação, através da qual o indivíduo se exclui da cadeia de significações de sua cultura, privatizando sua existência a ponto de torná-la ininteligível para si e seu grupo. Às vezes a desordem idiossincrática pode tomar emprestados elementos do “modelo de inconduta”, ou até mesmo confundir-se com ele.

A tipologia construída por Georges Devereux, tal como foi exposta até aqui, constitui um esforço sério no sentido de organizar a diversidade de material etnográfico que as culturas primitivas oferecem com respeito à loucura, e agrupá-lo segundo suas características maiores. Não pretendo discutir os critérios que presidem a categorização proposta por Devereux. No momento basta notar que, se por um lado a etnopsiquiatria nos abre para as formas múltiplas de manifestação do desatino, ela nos conduz, por outro, a um etnocentrismo cujo postulado central merece ser colocado em discussão.

Devereux acredita que por trás de diferentes sintomatologias étnicas há doenças similares. Seu interesse se volta para o tipo de instrumentos, defesas e recursos que cada cultura oferece para manifestar ou solucionar conflitos e desordens psíquicas universais. “… Os processos psíquicos fundamentais (têm) caráter universal mesmo quando se expressam sob formas extremamente diversificadas. Normal ou anormal, pertencendo a tal ou qual cultura, o indivíduo recorre a mecanismos de defesa que são fundamentalmente iguais. O normal difere do anormal, e o esquimó do beduíno, em função não da presença ou da ausência de certos mecanismos de defesa, mas da estruturação do conjunto destas defesas e da importância relativa atribuída por sua cultura a cada uma delas. . .”6

Devereux não esconde suas cartas. Sua etnopsiquiatria é psicanalítica, e é com esta nosografia que ele se propõe a entender o mundo primitivo. Daí a desenvoltura em falar de processos psicodinâmicos universais, mecanismos de defesa universais, em concluir que um xamã é um psicótico, que a maior parte das loucuras primitivas são de caráter histérico devido à solidariedade orgânica que caracteriza essas comunidades (ao contrário das sociedades modernas, ditas de solidariedade mecânica, que produzem a loucura de tipo esquizofrênico), que entre os primitivos há neuróticos de guerra, como os que se tornam travestis para fugirem à batalha, ou que a loucura divina grega se caracteriza pela glossolalia etc. Por debaixo das diversas manifestações patológicas e por detrás das psicopatologias das diferentes culturas, Devereux encontra, em última análise, a nossa própria nosologia. Para ele não há relativismo possível nesse campo. Assim, indivíduos julgados loucos por suas culturas e tratados como tal — Devereux se dá o direito de diagnosticá-los como normais. Indivíduos normais para a cultura em que vivem, desempenhando funções insólitas (para nós) mas socialmente reconhecidas — Devereux os carimba de psicóticos ou neuróticos ou histéricos ou psicopatas, em função de nossa psicopatologia.

Ele o admite claramente: louco é aquele que a sociedade reconhece como tal — é um status etnológico —, enquanto psicótico (isto é, verdadeiramente louco segundo o olhar clínico último e científico do psiquiatra, ainda que ele seja psicanalista) é aquele que ele, Devereux, diagnostica como tal. A grade de leitura psicanalítica serve para todas as culturas. Trata-se de ver apenas como cada cultura organiza o material étnico para manifestar essa psicopatologia. O postulado básico que atravessa esse método, já o vemos, é tão evidente quanto contestável, qual seja o da unidade e universalidade antropológica e psíquica do objeto de estudo — o homem. Devereux passeia pelas culturas primitivas com esse passaporte teórico, munido de um instrumental forjado na Viena do nosso século e ostentando a segurança de quem às vezes mais parece um psiquiatra de primitivos do que um etnólogo.

Feitas essas ressalvas, de peso, podemos felicitar Devereux por não ter sido fiel a esses postulados e, na sua pesquisa, ter excedido em muito, pela inteligência, fineza de observação e riqueza do material, o enquadre teórico fixado de forma explícita. Só podemos admirar sua análise sobre a esquizofrenia nas sociedades contemporâneas (precursora das teses antipsiquiátricas), da qual extrairemos algumas reflexões.

***

Para Devereux haveria uma homologia entre a estrutura da psicose e a da sociedade contemporânea: o homem moderno é esquizóide fora dos muros manicomiais, e esquizofrênico no interior deles. O modelo de comportamento esquizóide, descrito a seguir, é valorizado pelo social, e constitui a base estrutural da atitude esquizofrênica. O esquizofrênico intensifica e concentra traços de comportamento típicos da civilização que o rodeia, e que são:

– sexualidade restrita à fornicação, sem conteúdo afetivo, ou, mais prosaicamente, incapacidade de amar;

– fragmentação das relações humanas e do engajamento social; atividades compartimentadas, parciais, por vezes incompatíveis entre si, que geram a impessoalidade e o esfacelamento;

– pseudo-racionalismo cientificista que encobre ou justifica o imaginário;

– puerilização do comportamento (a sociedade prolonga ao máximo a infância e cria adultos dóceis e infantis);

– perda do sentimento de identidade, despersonalização (inclusive borramento das diferenças sexuais).

Enfim, penalização da autonomia do homem, com o sentimento de se estar cada vez mais “possuído”, “manipulado”, “dependente” de forças que escapam ao nosso controle — e legitimação exclusiva dos antíconformismos estandartizados, que não passam de um conformismo a mais.

Em seu comentário sobre essa tese, Roger Bastide confirma a homologia existente entre esses traços e as características estruturais da esquizofrenia identificados desde Bleuler até Minkowski (1953)7. Não é à toa, pois, conclui Devereux, que a esquizofrenia é quase incurável; seus principais sintomas são sustentados pelos valores mais característicos de nossa civilização. A esquizofrenia é a desordem étnica tipo, privilegiada, da sociedade ocidental. É seu “modelo de inconduta”, assim como, segundo o autor, a histeria o era para as sociedades primitivas.

Entendamos corretamente. O esquizofrênico não se comporta como todo mundo. No seu comportamento individual ele é um desviante, mas a estrutura de sua doença é homóloga à estrutura social onde ela aparece. A homologia dá-se ao nível da doença, não do doente.

Mas o que significa que a esquizofrenia tornou-se o “modelo de inconduta” da sociedade contemporânea? Implica que hoje em dia, para manifestar uma perturbação qualquer ou fazer-se reconhecer como louco (e não como criminoso, por exemplo), ou simplesmente comunicar que “algo não anda bem”, o indivíduo “esquizofreniza”. É a sintomatologia dominante, assim como a histeria o era na virada do século. Por detrás das histéricas de Charcot escondiam-se todo tipo de perturbações mentais; na época esperava-se do louco que se comportasse como histérico, e o louco sabia “como deve-se comportar um louco”. Devereux escreveu várias páginas sobre a simulação da loucura, seja na Bíblia, na Grécia (a volta de Ulisses) ou entre os Mohave, mostrando como qualquer cultura conhece e usa os “modelos de inconduta” hegemónicos de seus loucos.

Daí a importância, para Devereux, da etnopsiquiatria na formação do psiquiatra, a fim de que ele possa atravessar a linguagem semântica dominante e chegar ao diagnóstico correto.

O fio desta análise de Devereux é claro: a sintomatologia das psicoses (que, como lembra Bastide, não passa de um esforço de comunicação) varia em função das estruturas sociais e de suas transformações. A loucura seria ao mesmo tempo cópia e desvio em relação à sociedade que lhe dá origem. Como vimos no exemplo da esquizofrenia na civilização contemporânea ou do amok entre os malásios, cópia ao nível da estrutura da doença, e desvio ao nível do comportamento do doente.

Embora simples e tentadora, essa fórmula, que também sintetiza o pensamento da sociologia das doenças mentais inaugurada por Bastide, é fruto de um debate longo e espinhoso, que atravessou a psiquiatria social, a sociologia psiquiátrica, a etnopsiquiatria ou qualquer outro nome que se queira dar às disciplinas que se ocupam das relações entre loucura e sociedade. Tentarei contextualizar a discussão para dar a essa tese de Devereux a dimensão que lhe é própria.

Roger Bastide lembrou com muita propriedade que a questão fundamental dessas disciplinas é a da delimitação entre o normal e o anormal, e atribuiu a um célebre artigo de Ruth Benedict (Anthropology and the Abnormal) o papel de disparador deste debate8. Referindo-se a certos fenômenos colhidos pelos etnólogos, como a normalidade do transe nas sociedades xamânicas, a homossexualidade nas sociedades de berdaches (status feminino atribuído aos homens não guerreiros), o caráter paranóico das culturas melanesianas (Dobu) e os traços megalomaníacos dos Kwakiutl, Benedict concluiu que a normalidade é relativa, uma vez que nós consideramos patológicos comportamentos que outras culturas vivem como normais. A suspeita excessiva, por exemplo, que para nós é um traço persecutório, sintoma paranóico, formação imaginária, é tida pelos Dobu como elemento essencial de uma cultura mágica onde cada qual deve estar constantemente atento à ameaça de ataque por parte do feiticeiro. Ali, quem não é desconfiado não é normal. A normalidade tem por único critério os traços dominantes da cultura em questão. Ruth Benedict complementa esse relativismo cultural com a hipótese da loucura como desvio em relação a essa norma. A doença mental manifestaria, as virtualidades antropológicas negligenciadas ou reprimidas pela cultura em que surge. Numa cultura do corpo e agressiva como dos índios Grow, por exemplo, estudados por Lowie, um homem de virtudes intelectuais é tido por irresponsável, incompetente e, finalmente, um doente9. O desvio patológico expressaria a dimensão humana e cultural inexplorada pelo grupo social em que aparece.

Michel Foucault observou a similitude entre essas teses de Ruth Benedict e as de Durkheim sobre o patológico. Durkheim, antes dos etnólogos americanos, e de certo modo servindo-lhes de modelo teórico, estabeleceu que pode ser considerado mórbido o fenómeno que se afasta de um tipo médio esquemático, que reúne as características dominantes de uma cultura. Veremos como os que entraram neste debate seguiram efetivamente, de uma forma ou de outra, essa trilha aberta por Durkheim e redescoberta por Benedict.

John Folley, por exemplo, tentou dar um caráter mais científico ao relativismo cultural de Benedict, e forjou o critério estatístico. É normal o comportamento dominante e hegemônico em determinada sociedade e determinado momento, e é anormal aquele comportamento que, estatisticamente falando, desvia desta norma. De aplicação relativamente fácil numa sociedade primitiva, esse critério é inoperante numa sociedade altamente diferenciada como a nossa, onde o leque de comportamentos legítimos é amplo e comporta um espectro graduado, e onde a fixação do comportamento médio nem sempre é possível.

A partir daí esse debate tomou outro rumo. Tratava-se de demonstrar que o estatisticamente desviante não era necessariamente patológico. Wegrocki, por exemplo, defendeu a tese de que o único critério válido para identificar um fenômeno patológico é, não sua anormalidade, mas sua etiologia. Uma alucinação só é uma perturbação patológica se resultar de um conflito psíquico — caso contrário não passa de um fenômeno cultural e normativo. A palavra final, como se vê, cabe ao psiquiatra, não ao etnólogo.

Outros, mais ecléticos, tentaram conciliar os três critérios, o cultural, o estatístico e o psiquiátrico, desde que fossem aplicados a domínios diferentes: o primeiro às psiconeuroses, o segundo aos desvios sexuais e o último às psicoses funcionais.

Ralph Linton fez outro tipo de composição entre as várias tendências em debate. Forjou o conceito de personalidade de base, culturalmente constituída, que serviria de referência para se medir os comportamentos desviantes. Mas não se desfez da nosografia psiquiátrica. Distinguiu as anormalidades absolutas, de origem constitucional e existentes em qualquer sociedade, das anormalidades relativas, desviantes em relação a esta personalidade de base. “Num grande número de sociedades, diz ele, alucinações e ataques histéricos são considerados como indícios de contato íntimo do indivíduo com o sobrenatural.” E conclui: “Muitos dos indivíduos atualmente internados em nossos manicômios estariam não só livres, mas ocupando as mais elevadas posições se tivessem nascido em algumas outras sociedades”10. Embora concorde que o desajustamento é uma questão de grau, Linton não trata a doença com o mesmo relativismo. Para ele também, como, aliás, para muitos outros etnólogos, a doença mental é um fato — e não um problema. Mesmo Devereux — a quem Bastide atribui o mérito de ter demonstrado que a adaptação social não pode ser critério de saúde mental, já que há sociedades doentes, como foi o caso da Alemanha nazista — não problematiza de forma radical seus próprios pressupostos sobre a doença mental. Logo mais veremos como enfrenta essa questão. Antes disso esquematizemos o recorrido a partir do debate iniciado com Ruth Benedict.

Podemos dizer que num primeiro momento estabeleceu-se a evidência de que diferentes sociedades comportam diferentes desvios e têm atitudes distintas para com seus próprios desviantes. A esse relativismo, cultural ou estatístico, seguiu-se uma nova constatação: de que diversas culturas, em épocas diferentes, apresentam fenômenos recorrentes que o pesquisador percebe como patológicos; é a volta do critério psiquiátrico. Num terceiro momento se entende que esses fenômenos “patológicos” nem sempre são desviantes e que os comportamentos desviantes nem sempre são patológicos. Discrimina-se desvio cultural de desvio patológico (por exemplo, nem todo mendigo — que é um desviante social — é por isso um doente mental). A discussão, que começara com a questão da norma, do desvio e da adaptação, se desloca para a natureza do patológico.

Essa inflexão teórica não é sem consequências. A reflexão sobre a natureza da saúde e da doença coloca em xeque, necessariamente, mesmo que de forma involuntária, a nosografia psiquiátrica. Há uma certa ironia neste avanço epistemológico. Ao devolver à psiquiatria a jurisdição sobre um tipo de material etnográfico, os etnólogos foram levados a se perguntar sobre a essência do patológico e a questionar os postulados da própria “ciência psiquiátrica” à qual recém haviam delegado a palavra final sobre seu objeto de estudo. Ainda que o problema continue sendo o das relações entre o normal, de um lado, e o anormal, o desviante e o patológico, de outro, bem como a demarcação entre esses três últimos, a questão central agora vai girar em torno da própria noção de patológico.

Michel Foucault tem toda razão em situar o impasse da etnologia americana, nessa questão, na forma como encarou a doença. Tanto Durkheim quanto Benedict e seus sucessores, por vias diferentes, encaram a doença como um dado negativo Q virtual. “Negativo”, diz Foucault, já que é definida em relação a uma média, a uma norma, a um pattern, e que neste afastamento reside toda a essência do patológico: a doença seria marginal por natureza, e relativa a uma cultura somente na medida em que é uma conduta que a ela não se integra. Virtual, já que o conteúdo da doença é definido pelas possibilidades, em si mesmas não mórbidas, que nela se manifestam: para Durkheim, é a virtualidade estatística de um desvio em relação à média; para Benedict, a virtualidade antropológica da essência humana. Nas duas análises, a doença ocorre entre as virtualidades que servem de margem à realidade cultural de um grupo social.”11

A tendência dos estudiosos que fizeram do desvio e do afastamento a própria natureza da doença será duramente criticada por Foucault. Ele verá nela mais do que um erro: uma resistência cultural. “Nossa sociedade não quer reconhecer-se no doente que ela persegue e encerra.” Para Foucault, uma sociedade se exprime positivamente nas doenças mentais que seus membros apresentam (mais tarde o surgimento histórico dessa noção foi amplamente estudado por ele, como se sabe), seja qual for o status que ela dê a essas formas mórbidas, situando-as no centro de sua vida religiosa, como entre os primitivos, ou expatriando-as da vida social, como o faz nossa cultura.

Ao sustentar que não se pode pensar o patológico tendo por base a noção negativa de virtualidade marginal, estatística ou antropológica, Foucault trilhou um caminho semelhante ao de Devereux, que na época realizava suas pesquisas etnopsiquiátricas nos Estados Unidos. A afirmação de que uma sociedade se manifesta nos seus doentes (e que eles não constituem, como se pensava, o seu negativo), feita por Foucault, é similar à tese que presidiu a análise de Devereux sobre a esquizofrenia que resumimos acima: a sociedade contemporânea é esquizóide e a esquizofrenia é sua caricatura. Entre a doença e a cultura, portanto, não há oposição, mas homologia. Situada no interior desse debate, a tese da homologia ganha todo seu sentido e relevância, pois abre perspectivas novas para se pensar a relação entre loucura e sociedade.

Se as teses do filósofo e do etnopsiquiatra coincidem nesse ponto, bifurcam em outros. Mesmo porque Devereux, com todo seu brilhantismo e exuberância de pesquisador imaginativo, não prima pela coerência teórica. Para comprová-lo, basta recapitular seu percurso. Para fugir tanto ao relativismo quanto ao etnocentrismo, forjou sua própria concepção de saúde, próxima à de Canguilhem, da qual trato no próximo apêndice. Paralelamente continuou utilizando a nosologia psicanalítica com a maior desenvoltura, e, quando preciso, justificando esse uso de forma encarniçada, sem receio de incorrer no etnocentrismo que pretendia combater ou de violar a noção de saúde que ele próprio inventara.

Na coexistência pacífica entre a teoria da homologia estrutural, da saúde e sua nosografia não podemos ver somente falta de rigor, justaposição de níveis de análise diferentes (cultural, filosófico e psicológico), ou indecisão entre o psiquiatra e o etnólogo que o habitam. Trata-se, a meu ver, de um impasse epistemológico que tem origem nos pressupostos metodológicos da etnopsiquiatria, que ao risco do relativismo cultural (suscitado pela diversidade das formas de loucura) contrapõe a segurança da nosografia psiquiátrica ou psicanalítica. Georges Devereux faz seus ricos exemplos desembocarem num postulado que a própria etnologia tem-se esforçado em demolir — a saber, o da universalidade e identidade fundamentais do psiquismo humano. A etnopsiquiatria remete à variedade sintomatológica das loucuras tal como aparecem nas diferentes sociedades, aos conflitos psíquicos universais tal como a psicanálise os postulou em pleno século XX. Ao reduzir a heterogeneidade do desarrazoado à homogeneidade psíquica do homem, a etnopsiquiatria perde na conclusão o que colheu na pesquisa de campo: um olhar sobre o plural da loucura.

_____________________________________________________________

NOTAS:

1. Georges Devereux, Essais d’etnopsyquiatrie génerale, Paris, Gallimard, 1970, p. 251.

2. ‘The Amok of Dato Kaja Biji Derja”, in The Funher Side of Silence, N.Y.. 1922, citado por Devereux, op. cit., p. 33.

3. Stefan Zweig, “Amok”, in A Corrente, Obras Completas, trad. Odilon Gallutti, Rio de Janeiro, Ed. Delta, 1956.

4. Devereux, op. cit, p. 19.

5. Jurandir Freire Costa discute essa questão em Violência e Psicanálise. Rio de Janeiro, Graal, 1984, pp. 73-78.

6. Devereux, op. cit., p. 25.

7. Bastide, Sociologle dês maladies mentales, op. cit., caps. XI e XII.

8. Idem, pp. 80 e ss.

9. Foucault, Doença Mental e Psicologia, trad. L. R. Shalders, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984, p. 72.

10. Ralph Linton, O Homem, uma Introdução à Antropologia, São Paulo, 10.a ed., Livraria Martins Fontes Editora, 1976, p. 476.

11. Foucault, op. cit., p. 73.

____________

FONTE:

In: Da clausura do fora ao fora da clausura: Loucura e Desrazão, Brasiliense, 1989.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima