Esquizoanálise: Clínica e Subjetividade - por Sandra Lourenço Corrêa
O artigo pretende pensar a subjetividade como processo constituído por múltiplas linhas de possibilidades de existência, típicas do devir, que pela experimentação pode produzir processos de singularização. A esquizoanálise recusa qualquer lógica binária, dualística ou identitária da noção de subjetividade, compreendendo que esses aspectos correspondem a um domínio histórico-filosófico específico. O processo analítico será afirmado em sua potência revolucionária e criadora, pois a esquizoanálise, ao proceder com a análise do inconsciente, nada espera encontrar em termos de prefiguração do desejo.
A esquizoanálise, criada por Deleuze e Guattari, propõe pensar a clínica a partir de suas possibilidades de agenciamentos¹, pois acredita em sua capacidade de operar transformações para além das formas instituídas. Isto não significa ignorá-las, pelo contrário, a esquizoanálise trabalha conhecendo esses modos de subjetivação² instituídos. Para Guattari, a clínica deve operar na ordem das micropolíticas, sabendo que os aspectos da macropolítica sempre estarão presentes e passíveis de transformação. No âmbito clínico, estaríamos muito mais na ordem estética do que na ordem interpretativa. Neste sentido, são fundamentais os seguintes questionamentos que envolvem a prática clínica: Que tipos de agenciamentos podem ser construídos? E que visão de sujeito permeia esta prática?
As respostas para estas questões têm início com a aposta que se faz na contribuição da esquizoanálise para o plano clínico, que já se configura com uma certa noção de sujeito que se pretende desconstruir, produzido a partir de perspectivas identitárias, causalistas, em que a natureza de sua essência está dada, faltando apenas um modo de investigação mais preciso que desvende seus mistérios mais profundos. Para tanto, busca-se romper com as interpretações fundamentadas em princípios psicológicos e demasiadamente “humanos”. Deleuze e Guattari (2004a, p. 114), comentando Nietzsche, afirmam que não se está diante de pessoas, mas de forças e quereres: “Sabe-se que, em Nietzsche, a teoria do homem superior é uma crítica que se propõe denunciar a mistificação mais profunda ou perigosa do humanismo”.
A clínica se faz necessária a partir do momento em que se acredita em um fazer clínico fundamentado na diferença e não em princípios do idêntico. Nesta nova proposta clínica não se busca um eu, um indivíduo ou seus conflitos edipianos, por exemplo. Trata-se de uma noção de clínica não comprometida com figuras familialistas. Não se buscam encontrar os elos perdidos de um tempo passado estruturado miticamente. A clínica, então, passa a ser lugar da diferença, do novo, do intempestivo3. Não haveria história para se remontar, nem um conflito para se superar, nem muito menos uma memória para se resgatar.
A tarefa da esquizoanálise é desfazer incansavelmente os egos e seus pressupostos, libertar as singularidades pré-pessoais que eles encerram e recalcam, fazer escorrer os fluxos que eles seriam capazes de emitir, de receber ou de interceptar, estabelecer sempre mais finamente as esquizas e os cortes, bem acima das condições de identidade, montar as máquinas desejantes que recortam cada um e o agrupam com outros (DELEUZE; GUATTARI, 1976, p. 460).
É possível que, no exercício clínico, movimentos de desterritorialização4, juntamente com o surgimento de novos territórios, sejam produzidos em sua absoluta imanência, sem que se perca de vista a força e a especificidade deste exercício. O que a psicanálise iniciou deve ser perseguido em sua forma estratégica, ampliando seus espectros de transformação social. Inclusive, o próprio Guattari (1987, p. 166) acreditava no processo analítico pela natureza desse processo, ou seja, ele pode se constituir como lugar de passagem, de visita a outras paragens, sendo o próprio movimento nômade, tão necessário à tarefa do viver.
Não há como investigar a subjetividade na clínica sem que esta não se coloque na interface com outros domínios do conhecimento, domínios compostos por diversas linhas que:
[ … ] vêm ora da arte, ora da política, ora da filosofia, ora de outro domínio qualquer que esteja em processo de nomadização, transmutando-se em devir, sendo minoritário, rompendo-se enquanto totalidade, abandonando seus sujeitos-objetos disciplinados em prol da criação (PASSOS; BARROS, 2000, p. 78).
Passos e Barros (2000) referem-se ao projeto transdisciplinar5 de clínica, onde o analista, além de criar “intercessores”, ou seja, novos elementos para as eventuais desterritorializações, provocando passagens de um território a outro, ele mesmo, o analista, se faz um intercessor. Por clínica transdisciplinar os autores entendem um certo tipo de plano, onde ocorrem constantes ressonâncias entre sistemas de toda ordem.
Não se trata de abandonar o movimento criador de cada disciplina, mas de fabricar intercessores, fazer série, agenciar, interferir. Frente às ficções preestabelecidas, opor o discurso que se faz com os intercessores. Não uma verdade a ser preservada e/ou descoberta, mas que deverá ser criada a cada novo domínio. Os intercessores se fazem, então, em tomo dos movimentos, esta é a aliança possível de ser construída quando falamos de transdisciplinaridade, quando falamos de clínica (PASSOS; BARROS, 2000, p. 77).
Trata-se de produzir e manter uma tensão constante entre os processos de subjetivação molares e moleculares, até porque é impossível qualquer prática sem tais comprometimentos, ainda que não explícitos. Portanto, este plano clínico não é o plano das universalidades, nem muito menos das constâncias, mas um plano sempre instável – o plano do devir6, o que toma possível os processos de criação, ou de singularização7.
Pensar a clínica sob a perspectiva de Deleuze e Guattari é, sem dúvida alguma, permitir-se a novos modos de semiotização que requerem movimentos de fluxos de toda natureza, sem, no entanto, cair em um campo clínico indiferenciado, apesar de todas as perturbações que a perspectiva desses dois pensadores provoca em certas familiaridades do pensamento.
De acordo com Rolnik (2000), a esquizoanálise vem ocupando um espaço significativo de interesse nos âmbitos da clínica psicanalítica institucional e nos acadêmicos, sobretudo entre aqueles que procuram desenvolver uma dimensão crítica da clínica. Considerando que para à esquizoanálise a subjetividade sofre modulações ao longo da história e que uma das últimas invenções do homem moderno foi a subjetividade centrada no indivíduo, pode-se supor, então, a possibilidade de criar formas heterogêneas e singulares totalmente diferentes dos regimes identitários desses últimos tempos.
É neste sentido que a esquizoanálise pode ser pensada como resistência aos modelos individualizantes da subjetividade que a normalizaram através de técnicas de conhecimento, controle e poder. A resistência traz o novo e provoca efeitos de toda sorte. Mas, como operacionalizar, ou melhor, como fazer uso de uma máquina (esquizoanálise) que não possui “manual de instrução?” Como se permitir, no exercício clínico, a experiência do devir, sem cair no rótulo da “loucura ultrapassada” da década de 60? Ou de ainda viver “sem lenço e sem documento?” Ou ser identificado como “bicho-grilo?” Ou talvez, ainda pior, como parte da categoria de profissionais que não fazem a menor diferença por não apresentarem um caminho útil, metodologicamente científico, que dê conta dos transtornos psíquicos?
Estes questionamentos retratam algumas das ideias que aparecem com frequência diante da proposta esquizoanalítica de clínica, manifestadas nas faculdades de psicologia, ou no próprio campo de trabalho “interdisciplinar”. Como respondê-los sem, necessariamente, usar recursos dos tempos da ditadura, ou da “geração do desbunde” tal como Cazuza se autodenominou afirmando que, “pra mudar alguma coisa a gente teve que gritar, se drogar, ir pra rua enfrentar a nossa própria fraqueza“?
Para que a clínica não respire e inspire esse tipo de ar contaminado da exploração pela dominação da subjetividade, é necessário que ela, com sua principal arma, o processo analítico, se transforme em máquina de guerra8. Para tanto, as ideias dos autores aqui investigadas servem como ferramentas de forte potência, se propagadas enquanto tais, antes mesmo de serem capturadas na máquina alienante das estratégias capitalistas. A esquizoanálise corre esse perigo se for compreendida como um novo modelo estruturante dos procedimentos clínicos, como um novo idealismo a ser seguido. Neste sentido, pode-se afirmar que a esquizoanálise não tem um território definido, já que sua proposta é exatamente levar as linhas para mais longe, pois “somente quando um fluxo é desterritorializado ele consegue fazer sua conjugação com outros fluxos, que desterritorializam por sua vez e vice e versa.” (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 63).
Na esquizoanálise não se representa nada, engendra-se e percorre-se.
Seria preciso opor dois tipos de ciências, ou de procedimentos científicos: um que consiste em ‘reproduzir’, o outro que consiste em ‘seguir’. Um seria de reprodução, de iteração e reiteração; o outro, de itineração, seria o conjunto das ciências itinerantes, ambulantes. Reduz-se com demasiada facilidade a itineração a uma condição da técnica, ou da aplicação e da verificação da ciência. Mas isto não é assim: seguir não é o mesmo que reproduzir, e nunca se segue a fim de reproduzir (DELEUZE; GUATTARI, 2002c, p. 39).
Não há dúvida de que Deleuze e Guattari são ícones de um tempo de beligerância dos anos 60, marcados pelos movimentos dos anos contraculturais, quando a forma de luta se manifestava, sobretudo, por uma posição anti. Vive-se um outro momento que requer modulações coerentes com este novo plano de consistência. Pelbart (2004, p. 19), investigando as transformações do tempo9, afirma:
Há aqui urna topologia que lembra a Deleuze o que os matemáticos chamam de ‘a transformação do padeiro’. Dois pontos, por mais próximos que estejam num quadrado, resultarão distantes ao cabo de algumas transformações em que o quadrado é estirado em retângulo, dividido em duas metades, formando novamente um quadrado etc. É assim que um acontecimento é constantemente remanejado na ‘massa do tempo’, corno um ponto aí assinalado que se divide em dois, fragmentando-se, distendendo-se, conforme o lençol de passado em que é jogado, ou no qual nos colocamos, abrindo-se a urna variação infinita.
Ainda que a questão do tempo não possa ser discutida mais amplamente neste artigo, ela perpassa, de um modo ou de outro, todos os questionamentos apresentados até aqui. lsto porque, mesmo com as modulações operadas, não é de um tempo cronológico a que se está reportando, mas de um tempo do devir em oposição ao tempo arborescente10, hierarquizado e genealógico.
Contrariamente à história, o devir não se pensa em termos de passado e futuro. Um devir-revolucionário permanece indiferente às questões de um futuro e de um passado da revolução; ele passa entre dois. Todo devir é um bloco de coexistência (DELEUZE; GUATTARI, 2002b, p. 89).
A resistência aparece onde os imperialismos reinam, e ela tem sempre a mesma natureza: desestabilizar a hegemonia. Portanto, mesmo que os tempos sejam outros, é importante ressaltar que não se pode situar-se num tempo linear da história. Trata-se de combater as perspectivas dominantes de subjetividade, que não só ignoram os processos de singularização, como os rechaça, e isto em qualquer momento da história.
Como Pelbart (2004) afirma, os remanejamentos são feitos, e o que parece longínquo se torna próximo e vice-versa. E é sempre de um certo lugar que se reporta ao passado. Nem Deleuze nem Guattari negligenciaram estas “críticas temporais”, inclusive, distinguiram o momento do “O Anti-Édipo” do trabalho realizado em “Mil Platôs“.
Do mesmo modo, pode-se pensar a questão do tempo na clínica que, de acordo com as ideias esquizoanalíticas, não se prende ao princípio cronológico de passado, presente e futuro. Tal como a arte, na visão deleuziana, a clínica não obedece ao tempo organizado, estratificado, pois não haveria “um passado a descobrir, mas a inventar segundo o dobramento a que estará submetido e que o irá situar num feixe de relações insuspeitado” (PELBART, 2004, p.19).
Se forem novos tempos, como fazer uso das ideias de Deleuze e Guattari no plano clínico? É evidente que os aspectos históricos e os agenciamentos são diferentes, mas só o fato de se ter esta compreensão já justifica as contribuições desses dois pensadores. É sempre de uma lógica dos fluxos que um acontecimento é produzido. E quando se trata de máquina e de devir, também a questão temporal linear é colocada de lado.
Trata-se então de propor uma escuta apoiada no pensamento da diferença, no qual a noção de subjetividade é pensada. Está-se diante de um novo olhar sobre a subjetividade que produz novos desafios e possibilidades na clínica. De um modo geral, o trabalho analítico consistiria em escapar de todos os reducionismos, criar linhas de fuga11 capazes de produzir novas cartografias12, resistir aos confinamentos teóricos que cegam os olhos de quem procura compreender as construções dos universais e suas consequências no comportamento humano. Barros (1994, p. 379) esclarece:
Aí estaria o trabalho que chamamos de analítico, aquele que não nega a molaridade dos modos de funcionamento, mas põe a funcionar outros modos, inventa fugas, penetra no plano molecular de constituição de outras formas. O singular emergiria, assim, do coletivo-multiplicidade, as identidades seriam convidadas ao mergulho na agitação das diferenças.
A clínica esquizoanalítica visa a favorecer a vida (subjetividade), que não cabe nos estratos (organismo, significância, subjetivação), sem que se perca um plano que, ao mesmo tempo em que existe, também precisa ser construído. Isto não significa que o processo analítico na esquizoanálise não tenha nenhuma direção e, por isso, seja classificado como um trabalho inconsistente e ilógico. Trata-se de uma outra perspectiva uma outra lógica uma lógica máxima, mas que não reconduz à razão ou ao exercício de uma pura recognição.
O pensador é antes de tudo clínico, decifrador sensível e paciente dos regimes de signos produzidos pela existência, e segundo os quais ela se produz. Seu ofício é construir os objetos lógicos capazes de dar conta dessa produção e levar assim a questão crítica a seu mais alto ponto de paradoxo [ …] (ZOURABICHVILI, 2004, p. 107)
A máquina analítica é louca sim, mas por refutar qualquer fundamento transcendente, por buscar o inesperado de um encontro e por afirmar a lógica das contradições e dos paradoxos. Está-se diante de um outro domínio que comporta as sínteses disjuntivas, ou seja, a positividade da coexistência de elementos que, aparentemente (na ordem molar das identidades), seriam classificados como excludentes. Aqui se afirma a diferença e não a negação.
Consideremos os pares vida-morte, pai-filho, homem-mulher: os termos aí só têm relação diferencial, a relação é primordial, é ela que distribui os termos entre os quais se estabelece. Por conseguinte, a experiência do sentido está no duplo percurso da distância que os liga: não se é homem sem devir-mulher etc.; e ali onde a psicanálise vê uma doença, trata-se, ao contrário, da aventura viva do sentido ou do desejo sobre o ‘corpo sem órgãos’13, da saúde superior da criança, da histérica, do esquizofrênico (ZOURABICHVILI, 2004, p. 104).
A noção de multiplicidade14 acompanha todo o raciocínio desta nova lógica, onde as dualidades não são negadas, mas recolocadas em uma outra ordem – ordem molar. O processo analítico, então, é produzido no plano molecular, no qual as linhas de fuga são inventadas e novas cartografias percorridas. Assim, não se buscam curas nem recuperação de algum estado por não se considerarem estruturas preestabelecidas. É por esta razão que não se podem definir neuroses, perversões e esquizofrenias pelo destino das pulsões, mas pelo modo e espaço que elas ocupam num determinado campo social.
Seria inexato guardar para as neuroses uma interpretação edipiana, e reservar às psicoses uma explicação extra-edipiana. Não há dois grupos, não há diferença de natureza entre neuroses e psicoses. Porque de qualquer maneira é a produção desejante que é causa, causa última, seja das subversões psicóticas que quebram Édipo ou o submergem, seja das ressonâncias neuróticas que o constituem (DELEUZE; GUATTARI, 1976, p.164).
Tudo depende do modo pelo qual cada um se posiciona diante dos códigos sociais. Especificamente, quanto à esquizofrenia e à neurose, parece que o esquizofrênico não suporta a edipianização enquanto o neurótico se deixa edipianizar.
A esquizoanálise é ao mesmo tempo uma análise transcendental e materialista. Ela é crítica, no sentido em que efetua a crítica de Édipo, ou leva Édipo até o ponto de sua própria autocrítica. Ela se propõe a explorar um inconsciente transcendental, em vez de metafísico; material, em vez de ideológico; esquizofrênico, em vez de edipiano; não figurativo, em vez de imaginário; real, em vez de simbólico; maquinístico, em vez de estrutural; molecular, microfísico e micrológico, em vez de molar ou gregário; produtivo, em vez de expressivo. Trata-se aqui de princípios práticos como direções da ‘cura’ (DELEUZE; GUATTARI, 1976, p. 143).
Há, pois, uma esquizofrenia que diz respeito ao fracasso de alguém que não suportou o regime existente, mas não encontrou saída, malogrou, assim como o drogado pode se precipitar à morte ou a uma repetição improdutiva por querer desfazer os estratos apenas com a droga, por desestratificar muito rápido. Daí a prudência, a arte de viver, de manter doses de estratificação que permitam a experiência e a passagem para outros estados ou territórios. Perguntou-se a Guattari, quando ele esteve no Brasil, sobre a ideia de prudência referida em “Mil Platôs“. Esta pergunta diz respeito aos riscos do trabalho esquizoanalítico, pois poderia levar a viagens15 perigosas que desembocassem em territórios improdutivos ou indiferenciados. Um trabalho que, mesmo muito criativo, não levaria ninguém a lugar algum. A resposta dada por Guattari é muita clara e simples:
Então, ao invés de viagem, eu falaria, de um modo mais prosaico, de processo. Não existe, a meu ver, nível indiferenciado da subjetividade. A subjetividade está sempre tomada em rizomas, em fluxos, em máquinas etc.; ela é sempre altamente diferenciada, sempre processual. Portanto, um empreendimento, digamos, esquizoanalítico, um agenciamento criador, produtor de sentido, produtor de atos, produtor de novas realidades, é algo que conjuga, associa, neutraliza, monta outros processos. Mas os efeitos não são necessariamente cumulativos. Processos podem se apoiar uns aos outros para chegar em territórios mortos. É infelizmente o que costuma acontecer muito, o que acontece frequentemente, na economia conjugal, na economia doméstica. Duas pessoas estão envolvidas num processo amoroso e esse processo acaba desembocando num fechamento territorial, que neutraliza toda e qualquer possibilidade de riqueza (inclusive o desejo sexual), todas as aberturas. O mesmo pode acontecer com todos os outros modos de processo de expressão (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 332).
É neste sentido que a clínica esquizoanalítica não pode ser pensada como uma prática espontaneísta, ou o oposto, uma nova abordagem em clínica com procedimentos metodológicos fechados, uma nova identidade de procedimentos. Trata-se de um exercício clínico rizomático16. Ele é perigoso? Sim, mas não por ser a improvisação de qualquer coisa, um “libere-se”. Se assim fosse, poder-se-iam temer os procedimentos estratificados, pois os regimes despóticos também trazem seus perigos de manipulação, de exploração, de mais-valia. O problema é lidar com as rupturas, e estas são inevitáveis. Elas são sempre produzidas por processos moleculares, maleáveis, destituídos de implicações meramente pessoais, psicológicas, mas que também não ocorrem em um profundo abismo da indiferenciação. Quando um novo agenciamento é produzido, tudo muda, é da natureza dos processos rizomáticos: em cada rizoma ocorrem agenciamentos de naturezas, ou regimes distintos. As rupturas são irreversíveis e não estão restritas a cadeias semióticas, ou seja, está-se falando de planos17, de diferentes platôs18.
Mas, ao buscar novas possibilidades no plano clínico, correm-se alguns riscos em decorrência dos deslocamentos de sentidos provocados pelos rizomas e suas linhas de fuga. Seria como um “ato-perigoso”, tal qual alertou Foucault em “As palavras e as coisas” (1999, p. 453):
Antes mesmo de prescrever, de esforçar um futuro, de dizer o que é preciso fazer, antes mesmo de exortar ou somente alertar, o pensamento, ao nível de sua existência, desde sua forma mais matinal, é, em si mesmo, uma ação – um ato perigoso. Sade, Nietzsche, Artaud e Bataille o souberam, por todos aqueles que o quiseram ignorar; mas é certo também que Hegel, Marx e Freud o sabiam.
Enfim, o que se pretende é supor a subjetividade em sua relação com o Fora19, encontrar novos ares na exterioridade, e não na interioridade, onde o ar, por não circular, está envenenado e condenado, assim, à morte.
A esquizoanálise ou a pragmática não tem outro sentido: faça rizoma, mas você não sabe com o que você pode fazer rizoma, que haste subterrânea irá fazer efetivamente rizoma, ou fazer devir, fazer população no teu deserto. Experimente (DELEUZE; GUATTARI, 2002b, p.35).
Este é o desafio da esquizoanálise: manter a prudência e a suavidade mesmo que enfrentando as batalhas e as resistências dos modos cristalizados de subjetivação.
Parece que Deleuze e Guattari concordam plenamente com Fernando Pessoa quando afirma: navegar é preciso, viver não é preciso!!
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NOTAS:
1. Estão para além da noção de estrutura, ao englobarem elementos de toda ordem material, social, biológica etc.
2. Diz respeito aos processos pelos quais um modo de subjetividade é produzido, sendo radicalmente oposto à ideia de indivíduo, sendo o indivíduo um dos modos de subjetivação possível de um determinado momento histórico. São as relações constituídas no e pelo registro social. Guattari relacionou particularmente esses processos aos modos capitalísticos de produção social.
3. Sobre esta noção, Deleuze e Guattari (2002b, p. 95), apoiados em Nietzsche, definiram: “[…] o intempestivo, outro nome para a hecceidade, o devir, a inocência do devir (isto é, o esquecimento contra a memória, a geografia contra a história, o mapa contra o decalque, o rizoma contra a arborescência)”. Estas ideias serão definidas mais adiante.
4. São movimentos que desfazem territórios delimitados, lugares familiares pertinentes aos processos de subjetivação de uma determinada condição social, econômica, cognitiva etc. Estão sempre acompanhados dos processos de reterritorialização. Os processos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização caminham juntos e estão presentes em todos os momentos históricos da humanidade.
5. A proposta transdisciplinar pretende romper com as barreiras dos especialismos e dos territórios fechados para alcançar uma conjugação global entre os saberes, indo muito mais além de uma dimensão dialógica.
6. Este conceito não se reduz à ideia de imitação, nem muito menos a qualquer modelo. Ele diz respeito à economia do desejo que opera no real e nos processos de desterritorialização. Nunca se deixa de ser algo para ser outra coisa como é o caso das identificações ou imitações.
Os fluxos de desejo procedem por afetos e devires, independentemente do fato de que possam ser ou não rebatidos sobre pessoas, sobre imagens, sobre identificações. Assim um indivíduo, etiquetado antropologicamente como masculino, pode ser atravessado por devires múltiplos e, aparentemente, contraditórios: devir-feminino que coexiste com um devir-criança um devir-animal, um devir-invisível etc. (GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 382).
7. Os processos de singularização estão no centro de interesse da esquizoanálise, afinal, singularizar é afirmar a potência, o sentido positivo da ruptura, a criação de outros modos de existência pela experimentação. Esses processos são os únicos capazes de romper com os modos de subjetivação capitalísticos. Trata-se de uma verdadeira lógica dos devires lógica das multiplicidades que estão sempre colocando em xeque qualquer tentativa de eternidade pelas universalizações.
8. Segundo Deleuze e Guattari a máquina de guerra não tem a guerra como objeto, sendo uma noção muito próxima à noção de linha de fuga, onde está presente um agendamento social que nunca se fecha em uma interioridade, mas é constituído pelos movimentos nômades (ZOURABICHVILI, 2004, p. 66).
9. Pelbart (2004, p. 19) investiga uma outra dinâmica do tempo, o tempo como massa modulável, onde “uma perpétua mistura vai tornar próximo o que estava afastado e longínquo o que era próximo, num tempo não cronológico”.
10. Os sistemas arborescentes estão presentes em um certo tipo de imagem do pensamento que obedecem a uma ordem hierárquica “que comportam centros de significância e de subjetivação, autômatos centrais como memórias organizadas” (DELEUZE e GUATTARI. 2000, p. 26). Tais sistemas se contrapõem à noção de rizoma.
11. A linha de fuga é uma desterritorialização.
12. Cartografar não é o mesmo que mapear. O primeiro, segundo os geógrafos, é um procedimento que se altera de acordo com as mudanças das paisagens, enquanto que o segundo representa de modo estático uma determinada configuração.
13. O termo CsO aparece em Antonin Artaud corno um corpo sem imagem, onde o organismo é inimigo do corpo, ou seja, determinada estratificação do corpo. Trata-se de urna experiência onde o CsO é a superfície de toda maquinaria do desejo. Rompe-se com toda ideia de organismo, de prefiguração do desejo ou de imagens humanizadas. Este conceito se opõe muito mais à ideia de organismo do que à de órgãos, por estar o primeiro relacionado a um “funcionamento organizado dos órgãos em que cada um está em seu lugar, destinado a um papel que o identifica.” (ZOURABICHVILI, 2004, p. 32).
14. “Uma multiplicidade não tem nem sujeito, nem objeto, mas somente determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mude de natureza (as leis de combinação crescem então com a multiplicidade).” (DELEUZE e GUATTARI, 2000, p. 16).
15. A noção de viagem referida é aquela típica dos movimentos anticulturais – trip americana, “com todo o pano de fundo quase místico que essa noção de viagem tomou, digamos, em toda a Nova Cultura.” (GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 332).
16. A noção de Rizoma é definida em Mil Platôs (2000, p. 32-33). A noção surgiu da botânica, onde é definido como um caule subterrâneo responsável pela produção de ramos aéreos com características de raízes. Deleuze e Guattari ampliam a noção articulando-a a uma rede conectiva de vários sentidos.
17. Trata-se de um certo tipo de plano: o de imanência. Tal plano difere do plano de referência, das organizações, das idealidades transcendentais, pois são processos onde operam toda ordem de fluxos em constantes mutações e engendramentos.
18. “Um platô é um pedaço de imanência. Cada CsO é feito de platôs. Cada CsO é ele mesmo um platô, que comunica com os outros platôs sobre o plano de consistência, ou imanência. É um componente de passagem.” (DELEUZE e GUATTARI, 1999, p. 20).
19. Este conceito impõe um contraponto radical com a noção de transcendência, quando mostra que a experiência não está submetida a representação. Trata-se de uma outra ordem a da impessoalidade – no domínio das forças.
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FONTE:
CORRÊA, Sandra Lourenço. Esquizoanálise: Clínica e Subjetividade. Avesso do Avesso, Araçatuba, v. 4, n. 4, p. 33 – 51, 2006.