A entrevista com Suely Rolnik foi pensada no sentido de um cruzamento das suas formulações conceituais no que se refere à produção de subjetividade, corpo, arte, política com as nossas lentes direcionando tais focos para a questão da cidade.
CIDADE
[Pedro] Entre os efeitos do atual estágio do capitalismo sobre as cidades estão a espetacularização de áreas tornadas turísticas, a militarização/condominização de áreas privadas, ou alargamento de espaços rodoviários “amnésicos” – efeitos que têm em comum o empobrecimento da experiência corporal dos citadinos assim como uma tendência à pacificação e mitigação dos conflitos. Seria o espaço da cidade remodelando-se enquanto plano físico que abriga e dá passagem à política de subjetivação atual?
[Suely] Uma política de subjetivação sempre acompanha um regime cultural/econômico/social – um contexto histórico – em todos os níveis. Porque ela é o dispositivo essencial da consistência existencial de uma maneira do mundo existir, está ligada e é indissociável de todas as dimensões de um contexto. O contexto é uma abstração, só existe numa certa política de desejo, num certo modo de subjetivação, o que implica uma política da cognição, do desejo, da sensibilidade, da consciência, do inconsciente, etc. E é uma política do corpo. Tudo isso vai junto, é inseparável, é isso que dá a forma de como o humano está nesse contexto. Não dá pra separar, essa visão que separa estas dimensões e despreza ou desconhece a indissociabilidade desse plano acaba produzindo destinos bastante desagradáveis. Eu até vou mais longe e diria que o modo de subjetivação que nos estrutura foi criado pela modernidade ocidental do século XV, no momento que a colonização se impôs ao mundo, junto com o nascimento da economia capitalista e da subjetividade “burguesa” – não dá pra dizer burguesa naquela época – mas dessa subjetividade que se caracteriza por hiper-atrofiar a capacidade de percepção. A percepção só capta as formas, ela vem junto com o repertório de representações que a gente tem, porque para se situar no mundo a gente percebe as formas, os sinais, os signos. Estes signos a gente decodifica segundo um repertório de representações, identifica, projeta essas representações que vemos, ouvimos, enfim; e situa o sentido daquilo dentro de uma distribuição cartográfica. Então isso é mais o plano do ego, da consciência, da percepção, da razão, da representação. Mas tem uma outra capacidade poderosa dos órgãos de sentido, de todos eles, que a gente tem como vivo; o olho tem – o olho não tem só a potência da retina – pode ser afetado enquanto vivo pelo mundo e, portanto, enquanto um campo de forças se agitando. Este afeto se incorpora à textura do nosso corpo, dessa capacidade vibrátil do corpo, da nossa sensibilidade. Estes dois movimentos, o movimento que leva a essa projeção e o movimento que te faz ser atravessado pelas forças do mundo, têm lógicas e temporalidades totalmente distintas. É como se fossem dois movimentos, um movimento vem dessa experiência sensível-vibrátil do mundo como um campo de forças e que faz uma pressão, um movimento do vetor de incorporar a cartografia do presente. E esse outro vetor, uma outra dinâmica que vai na direção da conservação desse repertório. Esses movimentos são paradoxais e dependendo do limiar desse paradoxo geram sensações, a sensação desse paradoxo tem que ser enfrentado, ela gera um vazio de sentidos, nos torna frágeis; e é a experiência dessa sensação que nos empurra e nos obriga a criar. Essa criação opera numa política de cognição totalmente distinta da política de cognição própria desse campo da representação, da razão, porque ela não se explica. Não se trata de revelar nada, ela tem que tomar corpo, é performatizada na nossa própria existência e esse modo de existência se transforma na criação de uma obra de arte em qualquer campo da arte que for. E isso produz, o Godard tem uma frase muito bonita que diz “a cultura é a regra e a arte é a exceção”. A cultura, o que ela quer é a morte da exceção, porque a cultura é a manutenção desse código compartilhado e a exceção é o que vem desse movimento, que cria uma diferença nesse campo e faz ele se reordenar, se transformar em nós mesmos. Isso constituiu um espaço fundamental na subjetividade, que é o espaço de uma alteridade em nós mesmos. Não seria a alteridade do outro que está fora, mas seria a alteridade desse campo em que meu corpo é atravessado por essas forças, a alteridade do mundo como um campo intensivo presente na minha subjetividade – uma relação dele com meu código, meu comportamento, minha estrutura nesse código – é isso que propulsa meus devires. Faz com que eu não possa me considerar identitariamente, eu nunca sou eu mesma, porque tem sempre este outro ponto de interrogação que me empurra pra virar outra. Então voltando pra cidade, primeiro eu acredito que essa cultura da Europa Ocidental – que se impôs ao mundo através da colonização, se constituiu junto com o regime capitalista, também se constituiu junto com esse modo de subjetivação – tem uma hipertrofia da percepção da representação, desse plano macropolítico; e tem uma hipotrofia, uma inibição desse acesso ao corpo e à sensação, da possibilidade de se sustentar nesse vazio, para que o conhecimento, o pensamento e a criação – isso tudo pra mim é sinônimo – se produzam impulsionados por isso. O que predomina é uma política de cognição que denega esse movimento. Então isto foi ganhando matizes e até regimes distintos ao longo desses cinco séculos – agora vai pro sexto, né? Com a instalação desse capitalismo contemporâneo que muitos autores não por acaso chamaram de capitalismo cultural, capitalismo cognitivo, informacional, configura-se um novo regime disso, que mantém essa mesma coisa, mas de uma maneira muito mais sutil, complexa e perversa. Porque na verdade esse vazio é convocado, a potência de criação é convocada e mobilizada por esse vazio, que é distinto de acionar em mim uma potência de pensamento no sentido acadêmico que não passa absolutamente pelo corpo. No capitalismo atual, você está constantemente lançado nesse vazio e essa potência de criação, de pensamento – que aí é criação, não é explicação, nem revelação, nem reflexão – é constantemente mobilizada por essa experiência reiterada desse vazio. Tem todo um modo de existência desse regime, a gente está nesse vazio, onde se mantém dissociado do corpo e opera-se uma idéia do contorno estável da subjetividade, que não passa por esses tsunamis. Esses tsunamis são patologizados na nossa cultura, psiquiatrizados. Então quando você está nesse estado, mantendo essa ilusão identitária – mesmo que seja uma identidade que está sempre tentando se reconfigurar, mas que não se reconfigura nunca a partir dessa experiência – é tomado por essa crença. É nesse momento que você busca com todas as tuas forças de cognição, de experiência, de percepção, nas imagens, nas milhões de imagens disponíveis, principalmente na mídia e na publicidade, aquelas que você idealiza e com as quais você pode se identificar. E isso mobiliza você para constituir uma subjetividade naqueles moldes, naquele mundo criado na mídia, você tem que consumir todos os produtos relacionados com aquilo e isso faz gerar consumo. Hoje qualquer multinacional, qualquer grande empresa investe na constituição destas imagens, que são como o mundo “prêt-à-porter” que se oferecem à subjetividade a cada segundo, num assédio permanente e que captura a subjetividade nesse momento do vazio. E aí a cidade evidentemente está formatada nesses moldes; e a nossa experiência da cidade também é dissociada da experiência que o corpo faz dela, fica mais na percepção e na captura dessas imagens. E aí você falou da cidade contemporânea, da gentrificação, por exemplo, eu tenho mais facilidade de falar disso, porque a arte joga um papel super importante nisso. Porque nesse contexto, a arte – as artes plásticas, né? – se transformou num dispositivo do poder, nesse regime infinitamente mais poderoso que sempre foi, porque ela também é provedora de imagens, em primeiro lugar. O sistema da arte investe no sentido de criar imagens que são imagens mais para a classe média e as elites. Imagens, linguagens: uma retórica com a qual essa elite se identifica, porque é ultra glamourizada. Por exemplo, esse turismo das grandes bienais que existe hoje em dia, o turismo das exposições e mesmo o colecionismo que se expandiu muito desempenham esse papel de desenvolver uma linguagem possível, um mundo possível numa imagem super glamourizada e hierarquicamente superior. Muitos investem a arte nessa direção para responder uma carência da subjetividade. Quando uma cidade em qualquer país do mundo vai entrar pra cena do capitalismo globalizado a gente nota que a primeira coisa que tem que ser feita é a criação de um museu espetaculoso de arte contemporânea, com esse grupo de arquitetos que está se prestando – Frank Gehry, por exemplo – a fazer esses imensos monumentos à glamourização da arte. Primeiro se implanta esse museu de arte contemporânea em áreas deterioradas, em geral são os centros históricos que tem um valor de patrimônio cultural, e a partir dessa instalação, começa-se a instalar as galerias no entorno, aí vem todo o consumo de luxo, os “Armanis” e companhia. E isso vai junto com a revalorização dessas áreas – revalorização entre aspas – e o aumento do valor total do solo, dá aqueles saltos; e também muitas vezes essas áreas são habitadas por artistas – como foi o Soho, Vila Madalena – por serem áreas mais baratas e ter o charme do histórico, o charme de uma vida mais de aldeia. E aí a própria presença dos artistas – que é uma coisa que me dói muito – o fato de existir energia de criação nesses espaços compõem o valor econômico que esses espaços passam a adquirir. Os artistas vão ocupar as áreas e os pobres são expulsos para as periferias. Então a arte participa desse projeto urbano e também a burguesia local. Eles não têm como participar da negociação econômica internacional se não adquirem essa linguagem, que significa saber meia dúzia de nomes de artistas, te-los na coleção, duas páginas de retórica e saber como se fala essas coisas em inglês. Com isso ele adquire uma moeda de troca pra mudar o penteado, ele tem que tirar a gomalina e raspar a cabeça, ficar careca ou como antes aqueles cabelos bem curtinhos. Enfim, ele vai se paramentar todo, mas é no campo da arte que ele aprende. Então eu acho que vocês têm toda razão de pensar na cidade, aí vocês tem mais possibilidade de pensar do que eu, pensar na cidade quais são os dispositivos resultantes desse tipo de força, dessa política do desejo, mas que também produzem essa política do desejo, reiteram convocam e a valorizam.
[Pedro] É incrível porque é uma coisa sem fim, na verdade é como você matar a fome com a vontade de comer.
[Suely] Exatamente. E a gente fica atracado nessa coisa totalmente. Todos nós, eu mesma, tem momentos que saio, consumo 10 quilos de creme e duzentas roupas, são momentos desse tipo. Isso no Brasil é patético, porque é o sub do sub do sub. E ainda por cima como tem todo esse super ego modernista, que depois da ditadura permaneceu em pé na arquitetura e no urbanismo, então aí você faz todo mundo com apartamento modernista. E é ridículo, patético. Outro dia o empreiteiro que está reformando minha casa, que é um bahiano, um macho maravilhoso, bahianézimo, lindo, poderoso, inteligente, eu estava querendo colocar cores nas paredes e aí ele falou, “ah não, eu prefiro clean”, eu disse “eu não acredito no que estou ouvindo” (rsrs) falei, “filho a Bahia é colorida, nós somos bahianos”.
[Pedro] Nos países ditos “civilizados” essa homogeneização da subjetividade traduz-se em espaços urbanos pacificados ao extremo, excessivamente organizados, chegando à sensações de assepsia e artificialidade. No Brasil, parece que a cultura do desvio, do jeitinho, da indolência, da informalidade – que está ligada à espacializações urbanas avessas ao saber urbanístico, como as favelas e camelôs – representa uma potência de resistência à essa pacificação dos espaços. Pensando as relações entre produção do espaço e produção de subjetividade, como você vê o potencial de resistência em relação aos modos de vida e corporeidades urbanos no Brasil?
[Suely] Olha, com certeza. Primeiro eu vou contar uma anedota muito engraçada que eu sempre conto porque eu adoro essa história. A minha irmãzinha, que é muito mais nova do que eu, a Raquel¹ – ela é oito anos mais nova do que eu – a gente sempre foi muito ligada a isso que você está descrevendo e esta anedota é de quando ela estava fazendo mestrado. Eu nasci no Belenzinho, na zona leste, meus pais são imigrantes e a gente nunca denegou isso, inclusive se sente melhor nesses ambientes, não nos sentimos bem em ambientes caretas e burgueses. Enfim, tinha um contexto ali e ela foi fazer o mestrado, estava na FAU; ela sempre muito brilhante, aí quis provar que estes modos de habitação, inclusive as casas, o cortiço, o quintal, a favela, não são só soluções de pobreza. Hoje em dia a gente até sabe disso, mas na época na FAU isso era inconcebível – era início dos anos 70 – então ela queria mostrar que isso é uma proposta, uma outra política da habitação das cidades, do convívio e etc. Ela morou em comunidade naquela época, foi pra África, Caribe, Colômbia, países que tem a negritude pra fazer essa tese; foi pro terreiro de Umbanda entrevistar preto-velho pra saber como era a memória desse modo de habitação na África, na escravidão e a FAU não aceitou, “isto não é sujeito de pesquisa, imagina, um sujeito que aparece em transe”. Aí ela foi pra Nova Iorque e defendeu com um daqueles super brasilianistas, que eu até esqueci o nome, já morreu e foi super bacana. A Raquel seguiu nessa visão das coisas. Eu queria dizer outra coisa que eu tenho trabalhado mais recentemente, até falei lá na conferência na Bahia, um insight que eu tive há pouco tempo que ainda precisa de muita pesquisa histórica, mas é o seguinte: as culturas dominadas na colonização – que é toda a África, toda América e toda a Ásia, mas que são também todas as regiões da Europa que não Europa Ocidental, principalmente o Mediterrâneo, as culturas árabes judaicas do mediterrâneo antes da inquisição, as culturas negras e indígenas que habitavam a América – eram culturas cuja política de subjetivação é totalmente distinta e onde o corpo estava muito presente. Na cultura árabe judaica que tem a cabala e estas histórias todas, o conhecimento se dava a partir daí, tanto que eu vou te contar uma outra anedota muito interessante. Meu avó que morreu no holocausto era um sábio da cidade, ele vem daquelas províncias da Polônia onde só tinha judeu religioso, bem provinciano e bem religioso; e a linha dele no judaísmo era o hassidismo. Meu pai sempre me contava, ele era o mais novo dos sete irmãos que acompanhava meu avô pra ir à outra província, à outra aldeia visitar o guru dele, o rabino. Quando eles chegavam lá em geral você tem que lavar as mãos para cumprimentar o rabino e que no caso do meu avô era o rabino que lavava as mãos para recebê-lo. Há uns dois anos atrás eu conheci um artista israelense que é gay, mas que antes tinha feito escola de rabino em Israel e sabe tudo desse negócio. Aí eu contei essa história, porque eu sempre soube que meu avô era uma pessoa bacana, mas eu não entendia porque era isso e ele me contou que nessa tradição o conhecimento que vem do livro é inferior ao conhecimento que vem do corpo. E só acontecia isso quando o rabino que era um ser livresco, que tinha um conhecimento todo por erudição de leitura encontrava o discípulo, aquele que tinha essa potência de leitura do mundo a partir do corpo. Então juntando tudo, isso estava muito presente nessas culturas, muito presente nas culturas africanas que se mantém na prática do candomblé e muito presente nas culturas indígenas. Como eu coloquei lá na conferência, o tipo de trauma coletivo como foi a colonização, a inquisição, o extermínio dos índios são traumas cujo efeito micropolítico é o de inibir esse acesso ao corpo por causa da humilhação. Ele fica tão humilhado àquela cultura que se coloca como superior, que machuca, mata, estupra, expulsa, te deixa totalmente desterritorializado e tem como efeito inibir a capacidade do corpo, isso está inscrito na memória do corpo, fica inscrito o trauma, mas fica inscrito também o que foi traumatizado, as defesas que você desenvolve por conta desse trauma. Então eu acredito piamente, mas quero fazer mais pesquisa pra tornar isso mais complexo. Eu acredito que nós brasileiros trazemos inscrito na memória tudo isso, porque eu também soube recentemente por estudos históricos que 80% dos portugueses que vieram pra cá eram ou árabes ou judeus fugindo da inquisição, refugiados. E você tem isso também na tradição africana e na tradição indígena, então a população brasileira se funda com o corpo que traz essa memória. Eu acho que essa memória rompe por trás desse trauma, esse acesso ao corpo, à sensação e a política de cognição que vem daí, produz o pensamento e ele é criação – nem revelação, nem verdade. Ele busca criar aquilo que o corpo está pedindo, não está explicando uma verdade pré-existente que estaria oculta, não tem essa noção de verdade. A gente traz isso no corpo e isso rompe em toda a história do Brasil e nas artes, essa exceção sempre aparece. O movimento antropofágico foi uma irrupção desse acesso à exceção que sai da humilhação e se mostra, eu até acho que foi importante os caras do movimento antropofágico virem da elite cafeeira. Na elite você fica menos doente de humilhação, você já nasce com certa certeza de si, isso até ajudou, tá? Não atrapalhou. Isso aparece claro nas favelas, nos camelôs, aparece em como Brasília foi re-interpretada pelas vans. Esse é um trabalho maravilhoso que o Rubens Mano fez em Brasília fotografando essas irrupções na cidade modernista de partes da vida, da cidade que não pode ser contida ali – então são aquelas vans, onde todos os pequenos serviços são prestados. Tem isso, mas é Deus e o Diabo na Terra do Sol, porque nós temos tanto uma força que vai nessa direção, como nós temos uma força que vai na direção contrária, de denegar totalmente isso, de se manter colonizada, identificada com o cânone europeu e americano também, do capitalismo internacional, que impede, machuca, domina e humilha essa irrupção. Eu acho o Brasil apaixonante por causa disso, tanto da briga e da resistência que você tem que ter dessas forças reativas poderosíssimas – aqui elas não tem nenhum limite – e também um abismo de classes, que era o segundo no ranking mundial e graças ao governo Lula mudou, foi uma ruptura irreversível na cartografia de classes e de raças consolidada no Brasil nesses 5 séculos. É a primeira vez que isso se desloca e ainda vai produzir uns frutos que a gente sentiu e depende de uma tamanha reestruturação disso tudo, né? A reestruturação da subjetividade é muito distinta de você reestruturar um regime econômico ou tudo que se passa na macropolítica, porque é muito sutil, tudo isso está completamente inscrito no corpo, porque o inconsciente é isso, o inconsciente é corpo e está tudo inscrito, tanto as impossibilidades quanto as possibilidades e é um longo trabalho histórico.
CORPO
[Pedro] Quais as possibilidades de experiência/ existência do corpo vibrátil na cidade? Quais os limites dessa “potência”, considerando os riscos e as emoções inerentes à vida urbana? Como este corpo vibrátil pode ser acionado? Será possível viver na cidade sem nenhuma “vibratilidade”?
[Suely] Não existe vibratilidade zero senão a gente estava morto, alguma sempre existe. Eu acho que não dá pra dar uma resposta geral para isso, não dá para imaginar uma cidade em que isso seja muito forte, porque a cidade, como púlpito da vida humana é sempre, como nos ensinou Nietzsche, um campo de forças da vontade de potência maior e a vontade de potência menor. O que é uma vontade de potência maior? É aquela em que o corpo vibrátil pode respirar mais e a capacidade de absorção das forças é maior sem correr o risco de desagregação. E o que é uma vontade de potência pequena? É um corpo vibrátil muito debilitado por absoluta incapacidade psíquica de absorção de um número maior de forças, de poder lidar com isso recriando a realidade. Isso não é estável, porque eu, você, em alguns momentos estamos com vontade de potência alta, em outros baixa, umas vezes nós somos escravos, outras nobres. Nietzsche ensinou que não existe verdade, é o perspectivismo e o sentido que se cria é sempre o da perspectiva da vontade de potência que o criou. O grau de potência do holocausto, o Hitler, o nazismo é um fenômeno de vontade de potência baixa. Poder alto, vontade de potência baixa, é uma espécie de psicose coletiva, o Agamben coloca uma ideia e eu concordo, que o nazismo é a máxima expressão dessa relação com o outro, nessa cultura inventada na Europa Ocidental. No nazismo, a política de relação com o outro é de tamanha impossibilidade de absorção da alteridade, tamanha, que chega a beira da loucura coletiva: eles inventaram a solução final, que é colocar o outro no forno e assar. Abrir o gás e assar todas as espécies de alteridade que não foram só os judeus, né? Nunca a gente vai ter nem na cidade, nem no museu, nem na escola, nem em canto nenhum, nem na nossa família, um puro paraíso de forças ativas e de altas vontades de potência, o que a gente vive é uma guerra entre os distintos graus de vontade de potência. Tem um conceito do Guattari, antes dele encontrar o Deleuze, que é o de transversalidade, ele falava que quanto maior o grau de transversalidade mais vital está sendo aquilo. E o que é transversalidade? É tudo que está atravessando um campo, quanto mais a tua subjetividade está aberta para essa complexidade de dimensões que estão se atravessando, mais o que você está a criar tem uma consistência vital, é maior. O que eu acho é que cada um pode fazer na sua área, nos lugares onde vive, eu faço na arte, na clínica, na universidade. É você sempre batalhar por uma aliança entre as forças, tentar estar vulnerável a captar, estar farejando onde tem possibilidade de forças ativas para inventar dispositivos que as façam ser mais poderosas que as forças reativas naquele terreno. Mas é o corpo que sabe, não é a obra completa do Deleuze, nem Hegel, sei lá, ou do Kant. Mas é o corpo que sabe quando a vida está vingando e quando ela está minguando. Essa capacidade do corpo, que não é o corpo dos órgãos da medicina, nem do fitness, mas é esse corpo em sua vulnerabilidade ao mundo. Essa capacidade é a nossa principal bússola, é o nosso principal instrumento que como vivos humanos temos – e o animal tem também. Então batalhar pela ativação dessa capacidade é o foco principal de uma luta micropolítica.
[Pedro] Você faz alguma conexão entre o corpo vibrátil e o corpo sem órgãos, conceito trabalhado por D&G?
[Suely] Faço, faço, e eu vou ter que trabalhar isso mais. O que eu posso te dizer, primeiro, é que chamar de vibrátil é mais jogo que chamar de sem órgãos, porque tem o “sem órgãos” do Artaud, que pode sugerir uma distância da experiência imediata da vibratilidade – você pode não fazer a conexão da experiência com a sua vibratilidade. Segundo, porque ele pode ser muito mau interpretado, que a questão é de se arrebentar, a questão é ficar sem órgãos.
[Pedro] Por isso que a gente associou ao risco.
[Suely] E de fato ele é associado ao risco e ele fala muito na obra dele, não no sentido de se dissolver no corpo sem órgãos, toda a questão é o embate entre a construção que se faz permanente do corpo sem órgãos e a estrutura/ as formas que se criam a partir dele. Mas se você tira esse outro lado que é fundamental na vida humana você cai na psicose, na droga até o limite. Então eu acho mais político chamar de vibrátil, mais político no sentido de que pra mim tem mais força de contaminação. Por outro lado, ele leva a um mau entendido, tem um problema, por isso eu fiquei um tempo sem usar, só agora retomei. Porque pode dar a entender que o corpo vibrátil está na nossa interioridade e voltar a uma noção de indivíduo. Mas se você junta ele com a ideia de corpo sem órgãos e de imanência, a gente sabe que o corpo vibrátil é aquele ponto de interrogação em nós que está sempre levando a uma recriação desse espaço, ele é irredutível ao nosso contorno atual, é a presença do mundo no nosso corpo que nos leva a ser mundo e a criar mundo.
POLÍTICA
[Pedro] Você visualiza alguma conexão/agenciamento da dimensão urbana com as atuais implicações entre arte e política? Que forças a cidade constitui dentro da atual “cartografia global da arte”?
[Suely] Já mais ou menos a partir dos anos 90, quando o capitalismo global se instalou nos países da Europa oriental; depois de 68 e na segunda metade dos anos 70 nos países que estavam sob ditadura – que são as ex-colônias, várias, várias, várias, não só aqui, mas em outros países que não eram ex-colônias, mas também assumiram a cultura da Europa ocidental, como a Europa do leste. Na Rússia, a gente encontra muitas similaridades com a gente e os países da Europa do leste, porque eles também trazem o recalque dessa outra capacidade do sensível. As ditaduras, sejam de esquerda ou de direita, do ponto de vista micropolítico não se distinguem, distinguem-se do ponto de vista macropolítico, claro, não é a mesma coisa uma ditadura que privilegia a elite e outra ditadura que distribui a renda, mas no plano das políticas de subjetivação, de desejo, elas são idênticas porque humilham e inibem tal capacidade. Essa inibição – como toda inibição, como o trauma da colonização, da inquisição, da escravidão – leva muito tempo para se elaborar, para amenizar os efeitos, porque enquanto você não elabora, os efeitos vão funcionando, controlando a subjetividade, comandando nossas escolhas, nossa existência. Com a instalação do capitalismo cultural na segunda metade dos anos 70, o incômodo com esse regime começa a acontecer pra valer a partir da geração dos anos 90, principalmente a partir de 94/95, ou seja vinte anos depois. A minha geração se confundiu porque o modo de subjetivação que o capitalismo cultural instaura é o modo de subjetivação criado na contracultura, que é esse acesso ao corpo, essa mobilização da criação e da experimentação. Só que um dos destinos da contracultura – digo “um dos” porque eu não acho que gente fracassou, acho uma balela, não fracassou coisa nenhuma – se inscreveu totalmente aí, está agindo. Aquela força estava ali, inscrita na memória, na atitude, na política de subjetivação, mas ficou muito confundida com a mudança da subjetividade identitária do capitalismo industrial para a subjetividade flexível que cria e experimenta. Até cair a ficha foi toda a geração dos anos 90. Essa geração voltou a ter força na arte, mas precisou chegar ao auge da instrumentalização da arte pelo mercado que realizou a grande virada e Catherine David explicitou na Documenta 10. Ela explicitou uma virada que vinha ocorrendo desde 94, 95, pouco depois que o Guattari morreu, se ele não tivesse morrido em 92 ainda estaria vivo. Ele estava muito deprimido com aquela frustração toda que se perpetuava desde a segunda metade dos anos 70, os anos 80 foram terríveis, ele até publicou aquele livro, os anos de inverno pra falar desse período. A arte é o lugar por excelência de performatizar nas obras ou nas proposições aquilo que o corpo anuncia. E nessa volta, a arte é muito diferente das formas e do exercício disso nos anos 70, porque não diaboliza mais o seu próprio campo institucional. Ela toma esse campo, claro que nos anos 60 o minimalismo tratou de problematizar a incidência do poder da arte na criação, mas restrito ao espaço dos museus, às categorias da história da arte. Já nessa nova geração, a problematização da instituição da arte – inclusive se fala de uma terceira geração de crítica institucional – era vista como uma transversalidade muito maior. Daí não são somente as categorias da história da arte e o espaço museológico, é tudo que está atravessando o sistema da arte e esse passa a ser um campo de incidência, de invenção de dispositivos artísticos para problematizar este campo e deslocar de forma muito importante. Como não tem esse preconceito como instituição, então também não tem uma outra coisa que era muito presente nos anos 60 e 70 e esteve presente por exemplo no trabalho da Lygia Clark de maneira absolutamente contundente e maravilhosa, que é sair totalmente do campo institucional. A Lygia primeiro saiu das galerias e museus e migrou pra Universidade, pra Escola de Artes Plásticas, depois ela migrou para o campo da clínica, pra poder ficar exercendo essa potência enquanto artista. Não porque virou terapeuta, ela sempre disse que não era psicanalista, que nunca deixou de ser artista, mas ela precisou migrar pra essa região pra fazer isso. Essa nova geração de artistas não, ela faz uma deriva extra disciplinar, quem falou dessa deriva é o Brian Holmes num número inteirinho da revista Brumária. Não é mais anti-institucional e anti-disciplinar, é extra e aí essa deriva se constitui de idas e vindas para o campo institucional da arte. Nessas idas e vindas ela se insere muito no campo urbano, muito. É quando começam as intervenções urbanas, tiveram algumas experiências que aconteceram em 60 e 70 no Rio e em São Paulo, por exemplo, mas isso se espalha de maneiras muito variadas no início dos anos 2000 com o movimento de coletivos e dispositivos de intervenção nas cidades. É um movimento que aqui no Brasil começa mais tardiamente, como em todos os países pós ditadura, porque além da relação do capitalismo cultural, ainda havia o trauma da ditadura. Eu acho que a arte pode muito nisso, porque é muito diferente de fazer um trabalho de conscientização de pobres. Quando você faz uma intervenção que promove, que ganha corpo aquilo que está, quando isso se apresenta na experiência urbana tem um poder de contaminação que não é necessariamente de mudar algo ali naquele espaço em que você está intervindo, mas é de mudar algo na subjetividade dos que vivem essa experiencia relâmpago. No meu entender tem um poder muito maior do que tem o poder de convocação mesmo deste espaço proibido, mais que proibido, recalcado, porque se fosse só proibido a gente liberaria. Mas é um espaço recalcado e só tem condição de reativar o que está recalcado se encontra um ambiente de forças ativas que afirma isso e se encontra possibilidade de sustentação para que isso se faça também na subjetividade. É falso problema dizer que são intervenções relâmpagos, sem poder, sempre a famosa pergunta, “mas fulano continuou acompanhando aquele pessoal da favela?; fulano continuou acompanhando qualquer lugar que se tenha trabalhado?”. É um falso problema porque o que essas intervenções urbanas fazem são como guerrilhas culturais, abrem espaços cuja proliferação não tem como prever, são em tempos diferidos, em lugares diferidos, podem promover uma mudança na sexualidade de uma pessoa que viveu aquela experiência e com isso abrir outros espaços. Um dispositivo como a bienal de São Paulo nasceu exatamente como fruto de forças dessa natureza, abriu um espaço tão forte e sustentou essa liberdade de criação fabulosa que a gente tem na arte no Brasil nos anos 50 e 60. Ela participou como um dos elementos fundamentais para que isso pudesse acontecer, mas foi muito machucada durante a ditadura e após a ditadura como todo esse contexto. A arte no Brasil estava muito identificada com o “tititi” do glamour e a inserção no mercado internacional, muito, muito alheia a toda a discussão que volta à acontecer a partir da segunda metade dos anos 90. Então a bienal, um patrimônio – não gosto dessa palavra – enfim, é uma riqueza, um recurso que a gente tem e que faz parte da cidade, tem uma memória. Eu acho que uma exposição como a bienal teria que se inserir completamente na cidade, deveria ser pensada na sua função de ativar o que eu chamo de experiência estética, este outro exercício do sensível, este outro modo de relação e cognição da realidade.
Ela tinha que ser um presente a cidade, voltar a respirar novamente e a própria bienal ser um dispositivo que tivesse ativando isso enquanto experiência pra qualquer espécie de público e não só pro público conhecedor mais ou menos da arte. Ela tinha que acontecer em muitos pontos da cidade, convidar artistas ou grupos de artistas pra trabalhar isso, desde o primeiro segundo que o curador fosse escolhido, durante dois anos sem parar. Isso seria político, não no sentido macropolítico, mas no sentido micropolítico. É diferente de uma arte que informa, inclusive quando o assunto é macropolítico a potência política da arte não está em revelar o assunto macropolítico, mas em performatizar a tensão de vida pelo corpo daquela experiência macropolítica. A obra de Cildo “Desvio para o vermelho” é poderosíssima, nos permite acessar a experiência do terror, fazer um link com a ditadura, mas não fala sobre, e sim, convoca essa possibilidade no nosso corpo, fica embaixo do tapete para ela sobreviver. A relação entre arte e política não pode ser um tema de exposição, o próprio conceito curatorial tem que ser um dispositivo político nesse sentido da potência política da arte, micropolítica. Eu espero que caia essa ficha com o curador da próxima bienal e ele tenha essa capacidade e sensibilidade, a arte cresceu muito no Brasil nestes últimos anos, está se internacionalizando e é chegada a hora da gente ativar essas forças, anima-las. E além do mais é a trigésima bienal, vai fazer exatamente 30 anos que a gente teve a primeira eleição. Esse é um momento muito paradigmático, muito emblemático e seria um grande presente pro Brasil, pra arte, pra nós todos, que a bienal pudesse assumir esse lugar da maneira mais brilhante possível, não é fácil, mas eu gostaria muito que fosse possível. Eu acho que a bienal do Ivo Mesquita foi um dispositivo genial, corajosíssimo, de alto risco, de muita porrada. O vazio que ele instaurou ali é o vazio que estava instaurado na instituição bienal, não só no modo como ela vinha sendo levada, mas na sua própria estrutura econômico-administrativa, absolutamente corrupta, levada por aquele Brasil profundo, o mais ignorante, o mais provinciano, o mais reacionário, reativo e corrupto. Agora a gente tem uma estrutura da nova direção, que é uma empresa com uma consistência maior e a bienal do Ivo foi responsável por uma mudança na estrutura para abrir essas questões. Não é por acaso que ela foi tão poderosa no meio artístico e na própria cultura, o meio artístico se viu confrontado com esse vazio, que está totalmente comandando a arte, mas ao mesmo tempo totalmente inacessível, está lá, no inconsciente. E pra cidade também foi muito duro, ontem conversando com Filipe Arembepe, ele falou isso e eu não tinha pensado, que pra mim o dispositivo do Ivo foi um dispositivo necessário para ao circuito da arte. Eu acho um falso problema dizer que é pro circuito não é pro povo, porque naquele momento se você não fazia um tratamento de choque no circuito não tem arte nem pro circuito, nem pra ninguém, tinha que se fazer essa escolha e eu assino embaixo totalmente. O único equívoco foi com os pixadores, porque também é muito difícil lidar com aquela situação, mas o modo com que ele lidou foi equivocado, justificou e deu argumentos para essas forças reativas. O ódio não era por causa disso, ele vinha da subjetividade que estava sendo confrontada com isso e eu acho que é graças a esse tratamento de choque – na psiquiatria tem horas que dar choque elétrico… na clínica que o Guattari trabalhou se dava, tinha momento que era só com choque elétrico – eu sei que isso é muito controverso, mas eu estou falando de propósito. Nesse momento, diante do choque, a estrutura da bienal mudou, essa nova bienal trouxe mais coisas desse tipo, é um movimento que vem vindo desde a bienal da Lisette, eu acho que cada uma dessas bienais foi um passo nessa direção.
Nessa Bienal se tem acesso a obras poderosíssimas, uma delas que eu aconselho todo mundo a ver é o filme do The Otolith Group, um grupo fabuloso lá de Londres que emergiu mais na década de 90. É um casal, ela é uma indiana, ele é africano, mas eles nasceram em Londres, ou nasceram ou foram pra lá muito pequenos. A questão da arte política é tratada de mil maneiras, mas não tem – e nem estou cobrando que já existisse, porque é um processo em curso e cada um vai fazendo o que pode com todos os seus recursos – uma experiência da potência política da arte pra poder pensar essa relação de outra maneira, que seja fazendo um apanhado geral das várias maneiras de se discutir isso ou de se fazer isso hoje. Eu acho que essa Bienal fez isso com o trabalho de Helmut Batista, do Capacete Entretenimentos no Teatro de Arena. Você sabe que a Arena era uma força ativa poderosíssima naquela década, que ainda permaneceu um pouco, como todo o resto, no começo eles faziam, depois minguou. Era um lugar triste, sombrio e abandonado na rua Teodoro Baima – eu vivi muito aquela rua – um lugar de altíssima potência, muito forte. Eu falo que são as zonas erógenas da cidade, porque ali tinha alta potência de criação, de pensamento. Mesmo sendo o Teatro de Arena de uma linha política no sentido macropolítico, tinha uma experimentação de São Paulo muito bacana. Eu fui muito marcada por “Arena Conta Zumbi” – um monte de histórias – e vivia lá. Ali era tudo escuro, aquela rua abandonada, mas o teatro estava lá. E o Helmut teve essa idéia genial, um dispositivo fantástico de ocupar o Teatro de Arena como o lugar que seria ativado para as propostas que ele foi fazendo, ali rolaram discussões fabulosas, um espaçamento propício a não virar conferência, realmente um encontro de um trabalho coletivo de pensar junto. Teve de tudo ali, o Helmut ocupou o segundo andar com arquivo onde foi juntando os materiais que foram sendo produzidos, na internet também, fez micro-exposições de obras em processo e aquilo realmente funcionou de uma maneira muito poderosa, tanto que eu não perdi um. Teve um dispositivo muito poderoso e bacana na Bienal do Livro – que eu também não perdi um, participei de tudo muito ativamente – começou junto com a Luíza Duarte² que cuidou inclusive dessa parte. Era uma das mesas redondas que começaram cinco meses antes da Bienal todas as quintas-feiras, aconteciam num auditório, um lugar grande que cabia bastante gente. Ele convidava cada vez um artista e outro elemento do circuito como um colecionador, ou diretor de museu, ou galerista, ou curador, os dois tinham que falar, não podiam fazer “conferencinha”, eles tinham que responder três perguntas: O que foi a bienal pra você? como ela está presente na tua memória, no teu imaginário, na tua atividade no campo da arte? Dois: O que você acha que vem acontecendo com as Bienais? Três: O que você imagina que poderia ser? E ele colocou o circuito inteiro – não digo inteiro, 100%, mas muita gente, principalmente da minha geração – que se viram convocados a responder essas três perguntas. E isso tudo foi gravado, tudo estava na internet, foi um dispositivo que movimentou, evitou essa pasmaceira e virou oportunidade de pensar, sabe?! Então eu acho que as consequências disso são imprevisíveis, mesmo se esse é um dispositivo de uma inteligência fabulosa.
Voltando pra cidade, pra encerrar, São Paulo é um lugar pra arte intervir absolutamente fabuloso. Agora eu acho um falso problema dizer que a arte bacana mesmo, política, só se dá nas cidades e as outras que estão nas galerias e nos museus não são. Eu acho isso um falssíssimo problema. Qualquer lugar é lugar de combate entre forças ativas e forças reativas, tem momentos que um determinado lugar é impossível, porque o poder das forças reativas não permite, mas outros momentos, no mesmo lugar, muda tudo. Então eu acho que a Bienal é um lugar incrível pra fazer uma intervenção, pra fazer uma bienal que responda a todas essas questões urgentes e contundentes que se colocam hoje pra gente. É um tesouro o que a gente tem – a Bienal – e se diferencia totalmente desse fenômeno da bienalização do planeta, que nasceu com o capitalismo cultural e desempenha um papel fundamental na aquisição dessa espécie de cartografia comum. Mas pra classe média alta é onde aprendem como é que se fala, como é que se veste, que lugar frequentar, como é que se come, qual é o restaurante contemporâneo, que não pode ficar comendo muito, que é muito feio, tem que comer porções pequenas e bastante estetizadas. Essa Bienal, o pessoal que fez a publicidade, botou “Bienalize-se”. Foi um equívoco triste porque, claro, eles não vão nem saber disso, mas é triste mesmo que não se saiba, porque o mundo inteiro sabe, qualquer vizinho na América Latina já sabe disso há bastante tempo. Muitas dessas bienais trabalham com intervenção na cidade, e muitas vezes estes trabalhos vão nessa direção, compõem a entrada daquela cidade no cenário do capitalismo cultural. Então você chamar de “Bienalize-se” é confessar o que está dominando nessa escolha, ou seja, uma força totalmente reativa identificada de maneira completamente acrítica com esse fenômeno. Eu acho que, pelo contrário, a Bienal de São Paulo, se distingue desse fenômeno, porque nasce antes e com outro tipo de força. Ela tem um papel e até uma obrigação, um dever de se colocar de maneira poderosa no circuito internacional, abrindo outro espaço dentro dessas milhões de bienais que se tem hoje no mundo. Se ela tem alguma proximidade seria com a Documenta, porque a Documenta nasceu depois do fim do nazismo pra lidar com o destroçamento total da arte, da poesia, enfim, da força de criação promovida pelo nazismo e do absoluto estrago da imagem cultural da Alemanha pelo mundo. Inclusive a Documenta numero um, que ainda foi destruída e que esse ano estava se reconstituindo, tinha na entrada um imenso painel de fotos em preto e branco com todos os grandes criadores do século XX. E ninguém diz que estava com cara de glamour, porque ela nasceu como uma intervenção nesse ambiente. E a Bienal de São Paulo nasceu promovendo isso, próxima a época do nascimento da Documenta que agora eu não lembro exatamente qual o ano da Primeira Documenta. Assim, poxa, a gente tem uma obrigação ferrada. A Documenta acontece de cinco em cinco anos, tem mais tempo pra preparar, tem tido coragem de escolher curadores muito interessantes, cumpre esse papel. Enfim, David fez várias intervenções na cidade, mas aquilo ainda não tinha uma potência de acontecimento, agora essa curadora está pensando, inventando um dispositivo de alto risco, não sei se pode contar, ela me contou, mas acho que não é público, ela não consegue nem dizer direito mas eu entendi perfeitamente o que ela quer, e isso pode abrir espaço e circular. Vamos ver, né? Vai depender.
[Pedro] Mas é um potencial.
[Suely] É um potencial.
[Pedro] Queria falar muito rapidamente algo, fica como uma anedota também pra gente te devolver alguma coisa. Eu achei muito gozado quando fui falar com você no final da sua palestra aqui em Salvador, e você perguntou “Você sabe que eu sou irmã da Raquel?” e respondi “claro!” E você disse “minha irmã é a parte visível”. A gente ficou pensando como é curioso, que frente aos assuntos que estamos nos debruçando, o seu estudo dialoga justamente nesse campo da micropolítica e a sua irmã está incrivelmente associada à macropolítica do urbanismo. E sua resposta confirmou essa ideia do macro e do micro.
[Suely] Mas é porque eu e a Raquel temos em comum esse desejo, a gente tem uma ética muito parecida, somos o oposto uma da outra e até isso é super bacana, porque ela realmente tem uma grande inteligência macropolítica. Eu admiro muitíssimo o trabalho dela, a coragem, o trabalho que ela está fazendo agora na ONU é fantástico, ela é muito peituda. E eu sempre trabalhei com essa dimensão micropolítica, então é uma coisa que um pouco contamina, porque a Raquel fazia formas, veio morar comigo em Paris nos anos 70 e conheceu principalmente Foucault e as coisas do Guattari, na época ele trabalhava muito com urbanismo e ela incorporou isso. Tanto que a Raquel, isso também é uma coisa super interessante, quando ela foi fazer esse mestrado, deu um ebó pro Marx, pra ele deixa-la tranqüila. Porque além de ter tido uma formação marxista na FAU, quando a gente era pequena os pais botaram a gente no movimento sionista de esquerda. Eu saí rápido porque era só macropolítica e a Raquel ficou até ela entrar na FAU, então ela tem uma formação marxista hiper sólida. Mas sempre teve essa outra maneira de conceber as coisas, e além do mais é filha de judeu, né? E aí ela teve que dar um ebó pro Marx no candomblé pra ele deixá-la em paz. Eu acho que a idéia é trabalhar entre os dois campos, tem que ter muita persistência nos dois, eu não sou capaz de pensar esses dois campos, eu não consigo. Eu acho que a Raquel também não tem tanta sensibilidade para esse outro, mas eu gosto muito de ter uma irmã assim. Pode botar tudo isso na entrevista, eu quero que ela leia.
NOTAS
- Raquel Rolnik é arquiteta, urbanista, professora da FAU – USP, publicou alguns livros referentes à legislação urbana e uso do solo como “A Cidade e a Lei – legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo” e “O que é cidade”. Foi Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades no governo Lula e atualmente, atualmente é relatora internacional do direito à moradia adequada do Conselho de Direitos Humanos da ONU.
- Crítica de arte e curadora independente.
FONTE
Entrevista publicada originalmente na Revista Redobra Nº 8, 2010. Revista construída pel@s artesãos/artesãs e arquitet@s pertencentes ao grupo de pesquisa Laboratório Urbano do Programa da Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia. O arquiteto e inventor Pedro Dultra Britto é o entrevistador dessa importante conversação.