Para certas pessoas, interrogar-se sobre o “como” do poder seria limitar-se a descrever seus efeitos, sem nunca relacioná-los nem a causas nem a uma natureza. Seria fazer deste poder uma substância misteriosa que, sem dúvida, se evita interrogar em si mesma, por preferir não “colocá-la em questão”. Neste mecanismo, que não se explicita racionalmente, suspeita-se de um fatalismo. Mas sua desconfiança não nos mostra que elas supõem que o poder é algo que existe com sua origem, sua natureza e suas manifestações?
Se provisoriamente atribuo um certo privilégio à questão do “como”, não é que eu deseje eliminar a questão do quê e do porquê. É para colocá-las de outro modo; ou melhor: para saber se é legítimo imaginar um “poder” que reúne um quê, um porquê, e um como. Grosso modo, eu diria que começar a análise pelo “como” é introduzir a suspeita de que o “poder” não existe; é perguntar-se, em todo caso, a que conteúdos significativos podemos visar quando usamos este termo majestoso, globalizante e substantificador; é desconfiar que deixamos escapar um conjunto de realidades bastante complexo, quando engatinhamos indefinidamente diante da dupla interrogação: “O que é o poder? De onde vem o poder?” A pequena questão, direta e empírica: “Como isto acontece?”, não tem por função denunciar como fraude uma “metafísica” ou uma “ontologia” do poder; mas tentar uma investigação crítica sobre a temática do poder.
1. “Como” não no sentido de “Como se manifesta?”, mas “Como se exerce?”, “Como acontece quando os indivíduos exercem, como se diz seu poder sobre os outros?”
Deste “poder” é necessário distinguir, primeiramente, aquele que exercemos sobre as coisas e que dá a capacidade de modificá-las, utilizá-las, consumi-las ou destruí-las — um poder que remete a aptidões diretamente inscritas no corpo ou mediatizadas por dispositivos instrumentais. Digamos que, neste caso, trata-se de “capacidade”. O que caracteriza, por outro lado, o “poder” que analisamos aqui, é que ele coloca em jogo relações entre indivíduos (ou entre grupos). Pois não devemos nos enganar: se falamos do poder das leis, das instituições ou das ideologias, se falamos de estruturas ou de mecanismos de poder, é apenas na medida em que supomos que “alguns” exercem um poder sobre os outros. O termo “poder” designa relações entre “parceiros” (entendendo-se por isto não um sistema de jogo, mas apenas — e permanecendo, por enquanto, na maior generalidade — um conjunto de ações que se induzem e se respondem umas às outras).
É necessário distinguir também as relações de poder das relações de comunicação que transmitem uma informação através de uma língua, de um sistema de signos ou de qualquer outro meio simbólico. Sem dúvida, comunicar é sempre uma certa forma de agir sobre o outro ou os outros. Porém, a produção e a circulação de elementos significantes podem perfeitamente ter por objetivo ou por consequências efeitos de poder, que não são simplesmente um aspecto destas. Passando ou não por sistemas de comunicação, as relações de poder têm sua especificidade.
“Relações de poder”, “relações de comunicação”, “capacidades objetivas” não devem, então, ser confundidas. O que não significa que se trata de três domínios separados; e que haveria, de um lado, o domínio das coisas, da técnica finalizada, do trabalho e da transformação do real; e, do outro, o dos signos, da comunicação, da reciprocidade e da fabricação do sentido; enfim, o da dominação dos meios de coação, de desigualdade e de ação dos homens sobre os homens¹. Trata-se de três tipos de relação que, de fato, estão sempre imbricados uns nos outros, apoiando-se reciprocamente e servindo-se mutuamente de instrumento. A aplicação de capacidade objetiva, nas suas formas mais elementares, implica relações de comunicação (seja de informação prévia, ou de trabalho dividido); liga-se também a relações de poder (seja de tarefas obrigatórias, de gestos impostos por uma tradição ou um aprendizado, de subdivisões ou de repartição mais ou menos obrigatória do trabalho). As relações de comunicação implicam atividades finalizadas (mesmo que seja apenas a “correta” operação dos elementos significantes) e induzem efeitos de poder pelo fato de modificarem o campo de informação dos parceiros. Quanto às relações de poder propriamente ditas, elas se exercem por um aspecto extremamente importante através da produção e da troca de signos; e também não são dissociáveis das atividades finalizadas, seja daquelas que permitem exercer este poder (como as técnicas de adestramento, os procedimentos de dominação, as maneiras de obter obediência), seja daquelas que recorrem, para se desdobrarem, a relações de poder (assim na divisão do trabalho e na hierarquia das tarefas).
Sem dúvida, a coordenação entre estes três tipos de relação não é uniforme nem constante. Não há, numa sociedade dada, um tipo geral de equilíbrio entre as atividades finalizadas, os sistemas de comunicação e as relações de poder. Há, antes, diversas formas, diversos lugares, diversas circunstâncias ou ocasiões em que estas inter-relações se estabelecem sobre um modelo específico. Porém, há também “blocos” nos quais o ajuste das capacidades, os feixes de comunicação e as relações de poder constituem sistemas regulados e concordes. Seja, por exemplo, uma instituição escolar: sua organização espacial, o regulamento meticuloso que rege sua vida interior, as diferentes atividades aí organizadas, os diversos personagens que aí vivem e se encontram, cada um com uma função, um lugar, um rosto bem definido — tudo isto constitui um “bloco” de capacidade-comunicação-poder. A atividade que assegura o aprendizado e a aquisição de aptidões ou de tipos de comportamento aí se desenvolve através de todo um conjunto de comunicações reguladas (lições, questões e respostas, ordens, exortações, signos codificados de obediência, marcas diferenciais do “valor” de cada um e dos níveis de saber) entraves de toda uma série de procedimentos de poder (enclausuramento, vigilância, recompensa e punição, hierarquia piramidal).
Estes blocos onde a aplicação de capacidades técnicas, o jogo das comunicações e as relações de poder estão ajustados uns aos outros, segundo fórmulas refletidas, constituem aquilo que podemos chamar, alargando um pouco o sentido da palavra, de “disciplinas”. A análise empírica de certas disciplinas — de sua constituição histórica — apresenta, por isto mesmo, um certo interesse. Primeiramente, porque as disciplinas mostram, segundo esquemas artificialmente claros e decantados, a maneira pela qual os sistemas de finalidade objetiva, de comunicações e de poder podem se articular uns sobre os outros. Porque eles mostram também diferentes modelos de articulação ora com proeminência das relações de poder e de obediência (como nas disciplinas de tipo monástico ou de tipo penitenciário), ora com proeminência das atividades finalizadas (como nas disciplinas das oficinas ou dos hospitais); ora com a proeminência das relações de comunicação (como nas disciplinas de aprendizagem); como também com uma saturação dos três tipos de relação (como talvez na disciplina militar, onde uma pletora de signos marca, até a redundância, relações de poder fechadas e cuidadosamente calculadas para proporcionar um certo número de efeitos técnicos).
E aquilo que se deve compreender por disciplinarização das sociedades, a partir do século XVIII na Europa, não é, sem dúvida, que os indivíduos que dela fazem parte se tornem cada vez mais obedientes, nem que elas todas comecem a se parecer com casernas, escolas ou prisões; mas que se tentou um ajuste cada vez mais controlado — cada vez mais racional e econômico — entre as atividades produtivas, as redes de comunicação e o jogo das relações de poder.
Abordar o tema do poder através de uma análise do “como” é, então, operar diversos deslocamentos críticos com relação à suposição de um “poder” fundamental. É tomar por objeto de análise relações de poder e não um poder; relações de poder que são distintas das capacidades objetivas assim como das relações de comunicação; relações de poder, enfim, que podemos perceber na diversidade de seu encadeamento com estas capacidades e estas relações.
2. Em que consiste a especificidade das relações de poder?
O exercício do poder não é simplesmente uma relação entre “parceiros” individuais ou coletivos; é um modo de ação de alguns sobre outros. O que quer dizer, certamente, que não há algo como o “poder” ou “do poder” que existiria globalmente, maciçamente ou em estado difuso, concentrado ou distribuído: só há poder exercido por “uns” sobre os “outros”; o poder só existe em ato, mesmo que, é claro, se inscreva num campo de possibilidade esparso que se apoia sobre estruturas permanentes.
Isto quer dizer também que o poder não é da ordem do consentimento; ele não é, em si mesmo, renúncia a uma liberdade, transferência de direito, poder de todos e de cada um delegado a alguns (o que não impede que o consentimento possa ser uma condição para que a relação de poder exista e se mantenha); a relação de poder pode ser o efeito de um consentimento anterior ou permanente; ela não é, em sua própria natureza, a manifestação de um consenso.
Será que isto quer dizer que é necessário buscar o caráter próprio às relações de poder do lado de uma violência que seria sua forma primitiva, o segredo permanente e o último recurso — aquilo que aparece em última instância como sua verdade, quando coagido a tirar a máscara e a se mostrar tal qual é? De fato, aquilo que define uma relação de poder é um modo de ação que não age direta e imediatamente sobre os outros, mas que age sobre sua própria ação. Uma ação sobre a ação, sobre ações eventuais, ou atuais, futuras ou presentes. Uma relação de violência age sobre um corpo, sobre as coisas; ela força, ela submete, ela quebra, ela destrói; ela fecha todas as possibilidades; não tem, portanto, junto de si, outro polo senão aquele da passividade; e, se encontra uma resistência, a única escolha é tentar reduzi-la. Uma relação de poder, ao contrário, se articula sobre dois elementos que lhe são indispensáveis por ser exatamente uma relação de poder: que “o outro” (aquele sobre o qual ela se exerce) seja inteiramente reconhecido e mantido até o fim como o sujeito de ação; e que se abra, diante da relação de poder, todo um campo de respostas, reações, efeitos, invenções possíveis.
O funcionamento das relações de poder, evidentemente, não é uma exclusividade do uso da violência mais do que da aquisição dos consentimentos; nenhum exercício de poder pode, sem dúvida, dispensar um ou outro e frequentemente os dois ao mesmo tempo. Porém, se eles são seus instrumentos ou efeitos, não constituem, contudo, seu princípio ou sua natureza. O exercício do poder pode perfeitamente suscitar tanta aceitação quanto se queira: pode acumular as mortes e abrigar-se sob todas as ameaças que ele possa imaginar. Ele não é em si mesmo uma violência que, às vezes, se esconderia, ou um consentimento que, implicitamente, se reconduziria. Ele é um conjunto de ações sobre ações possíveis; ele opera sobre o campo de possibilidade onde se inscreve o comportamento dos sujeitos ativos; ele incita, induz, desvia, facilita ou torna mais difícil, amplia ou limita, torna mais ou menos provável; no limite, ele coage ou impede absolutamente, mas é sempre uma maneira de agir sobre um ou vários sujeitos ativos, e o quanto eles agem ou são suscetíveis de agir. Uma ação sobre ações.
O termo “conduta”, apesar de sua natureza equivoca, talvez seja um daqueles que melhor permite atingir aquilo que há de específico nas relações de poder. A “conduta” é, ao mesmo tempo, o ato de “conduzir” os outros (segundo mecanismos de coerção mais ou menos estritos) e a maneira de se comportar num campo mais ou menos aberto de possibilidades. O exercício do poder consiste em “conduzir condutas” e em ordenar a probabilidade. O poder, no fundo, é menos da ordem do afrontamento entre dois adversários, ou do vínculo de um com relação ao outro, do que da ordem do “governo”. Devemos deixar para este termo a significação bastante ampla que tinha no século XVI. Ele não se referia apenas às estruturas políticas e à gestão dos Estados; mas designava a maneira de dirigir a conduta dos indivíduos ou dos grupos: governo das crianças, das almas, das comunidades, das famílias, dos doentes. Ele não recobria apenas formas instituídas e legítimas de sujeição política ou econômica; mas modos de ação mais ou menos refletidos e calculados, porém todos destinados a agir sobre as possibilidades de ação dos outros indivíduos. Governar, neste sentido, é estruturar o eventual campo de ação dos outros. О modo de relação próprio ao poder não deveria, portanto, ser buscado do lado da violência e da luta, nem do lado do contrato e da aliança voluntária (que não podem ser mais do que instrumentos); porém, do lado deste modo de ação singular — nem guerreiro nem jurídico — que é o governo.
Quando definimos o exercício do poder como um modo de ação sobre as ações dos outros, quando as caracterizamos pelo “governo” dos homens, uns pelos outros — no sentido mais extenso da palavra, incluímos um elemento importante: a liberdade. O poder só se exerce sobre “sujeitos livres”, enquanto “livres” — entendendo-se por isso sujeitos individuais ou coletivos que têm diante de si um campo de possibilidade onde diversas condutas, diversas reações e diversos modos de comportamento podem acontecer. Não há relação de poder onde as determinações estão saturadas — a escravidão não é uma relação de poder, pois o homem está acorrentado (trata-se então de uma relação física de coação) — mas apenas quando ele pode se deslocar e, no limite, escapar. Não há, portanto, um confronto entre poder e liberdade, numa relação de exclusão (onde o poder se exerce, a liberdade desaparece); mas um jogo muito mais complexo: neste jogo, a liberdade aparecerá como condição de existência do poder (ao mesmo tempo sua precondição, uma vez que é necessário que haja liberdade para que o poder se exerça, e também seu suporte permanente, uma vez que se ela se abstraísse inteiramente do poder que sobre ela se exerce, por isso mesmo desapareceria, e deveria buscar um substituto na coerção pura e simples da violência); porém, ela aparece também como aquilo que só poderá se opor a um exercício de poder que tende, enfim, a determiná-la inteiramente.
A relação de poder e a insubmissão da liberdade não podem, então, ser separadas. O problema central do poder não é o da “servidão voluntária” (como poderíamos desejar ser escravos?): no centro da relação de poder, “provocando-a” incessantemente, encontra-se a recalcitrância do querer e a intransigência da liberdade. Mais do que um “antagonismo” essencial, seria melhor falar de um “agonismo”² — de uma relação que é, ao mesmo tempo, de incitação recíproca e de luta; trata-se, portanto, menos de uma oposição de termos que se bloqueiam mutuamente do que de uma provocação permanente.
3. Como analisar a relação de poder?
Podemos, ou melhor, eu diria que é perfeitamente legítimo analisá-la em instituições bem determinadas; estas últimas constituindo um observatório privilegiado para as atingir — diversificadas, concentradas, ordenadas e levadas, parece, ao seu mais alto grau de eficácia; numa primeira abordagem, é aí que podemos pretender ver aparecer a forma e a lógica de seus mecanismos elementares. Contudo, a análise das relações de poder nos espaços institucionais fechados apresenta alguns inconvenientes. Primeiramente, o fato de uma parte importante dos mecanismos operados por uma instituição ser destinada a assegurar sua própria conservação apresenta o risco de decifrar, sobretudo nas relações de poder “intra-institucionais”, funções essencialmente reprodutoras. Em segundo lugar, ao analisarmos as relações de poder a partir das instituições, nos expomos de nelas buscar a explicação e a origem daquelas; quer dizer, em suma, de explicar o poder pelo poder. Enfim, na medida em que as instituições agem essencialmente através da colocação de dois elementos em jogo: regras (explícitas ou silenciosas) e um aparelho, corremos o risco de privilegiar exageradamente um ou outro na relação de poder e, assim, de ver nestas apenas modulações da lei e da coerção.
Não se trata de negar a importância das instituições na organização das relações de poder. Mas de sugerir que é necessário, antes, analisar as instituições a partir das relações de poder, e não o inverso; e que o ponto de apoio fundamental destas, mesmo que elas se incorporem e se cristalizem numa instituição, deve ser buscado aquém.
Retomemos a definição segundo a qual o exercício do poder seria uma maneira para alguns de estruturar o campo de ação possível dos outros. Deste modo, o que seria próprio a uma relação de poder é que ela seria um modo de ação sobre ações. O que quer dizer que as relações de poder se enraízam profundamente no nexo social; e que elas não reconstituem acima da “sociedade” uma estrutura suplementar com cuja obliteração radical pudéssemos talvez sonhar. Viver em sociedade é, de qualquer maneira, viver de modo que seja possível a alguns agirem sobre a ação dos outros. Uma sociedade “sem relações de poder” só pode ser uma abstração. O que, diga-se de passagem, torna ainda mais necessária, do ponto de vista político, a análise daquilo que elas são numa dada sociedade, de sua formação histórica, daquilo que as torna sólidas ou frágeis, das condições que são necessárias para transformar umas, abolir as outras. Pois, dizer que não pode existir sociedade sem relação de poder não quer dizer nem que aquelas que são dadas são necessárias, nem que de qualquer modo o “poder” constitua, no centro das sociedades, uma fatalidade incontornável; mas que a análise, a elaboração, a retornada da questão das relações de poder, e do “agonismo” entre relações de poder e intransitividade da liberdade, é uma tarefa política incessante; e que é exatamente esta a tarefa política inerente a toda existência social.
Concretamente, a análise das relações de poder exige que estabeleçamos alguns pontos:
- O sistema das diferenciações que permitem agir sobre a ação dos outros: diferenças jurídicas ou tradicionais de estatuto e de privilégio; diferenças econômicas na apropriação das riquezas e dos bens; diferenças de lugar nos processos de produção; diferenças linguísticas ou culturais; diferenças na habilidade e nas competências etc. Toda relação de poder opera diferenciações que são, para ela, ao mesmo tempo, condições e efeitos.
- O tipo de objetivos perseguidos por aqueles que agem sobre a ação dos outros:
manutenção de privilégios, acúmulo de lucros, operacionalidade da autoridade estatutária, exercício de uma função ou de uma profissão.
- As modalidades instrumentais: de acordo com o fato de que o poder se exerce pela ameaça das armas, dos efeitos da palavra, através das disparidades econômicas, por mecanismos maia ou menos complexos de controle, por sistemas de vigilância, com ou sem arquivos, segundo regras explicitas ou não, permanentes ou modificáveis, com ou sem dispositivos materiais etc.
- As formas de institucionalização: estas podem misturar dispositivos tradicionais, estruturas jurídicas, fenômenos de hábito ou de moda (como vemos nas relações de poder que atravessam a instituição familiar); elas podem também ter a aparência de um dispositivo fechado sobre si mesmo com seus lugares específicos, seus regulamentos próprios, suas estruturas hierárquicas cuidadosamente traçadas, e uma relativa autonomia funcional (como nas instituições escolares ou militares); podem também formar sistemas muito complexos, dotados de aparelhos múltiplos, como no caso do Estado que tem por função constituir o invólucro geral, a instância de controle global, o princípio de regulação e, até certo ponto também, de distribuição de todas as relações de poder num conjunto social dado.
- Os graus de racionalização: o funcionamento das relações de poder como ação sobre um campo de possibilidade pode ser mais ou menos elaborado em função da eficácia dos instrumentos e da certeza do resultado (maior ou menor refinamento tecnológico no exercício do poder) ou, ainda, em função do custo eventual (seja do “custo” econômico dos meios utilizados, ou do custo em temos de reação constituído pelas resistências encontradas). O exercício do poder não é um fato bruto, um dado institucional, nem uma estrutura que se mantém ou se quebra: ele se elabora, se transforma, se organiza, se dota de procedimentos mais ou menos ajustados.
Eis por que a análise das relações de poder numa sociedade não pode se prestar ao estudo de uma série de instituições, nem sequer ao estudo de todas aquelas que mereceriam o nome de “política”. As relações de poder se enraízam no conjunto da rede social. Isto não significa, contudo, que haja um princípio de poder, primeiro e fundamental, que domina até o menor elemento da sociedade; mas que há, a partir desta possibilidade de ação sobre a ação dos outros (que é co-extensiva a toda relação social), múltiplas formas de disparidade individual, de objetivos, de determinada aplicação do poder sobre nós mesmos e sobre os outros, de institucionalização mais ou menos setorial ou global, organização mais ou menos refletida, que definem formas diferentes de poder. As formas e os lugares de “governo” dos homens uns pelos outros são múltiplos numa sociedade: superpõem-se, entrecruzam-se, limitam-se e anulam-se, em certos casos, e reforçam-se em outros. É certo que o Estado nas sociedades contemporâneas não é simplesmente uma das formas ou um dos lugares — ainda que seja o mais importante — de exercício do poder, mas que, de um certo modo, todos os outros tipos de relação de poder a ele se referem. Porém, não porque cada um dele derive. Mas, antes, porque se produziu uma estatização contínua das relações de poder (apesar de não ter tomado a mesma forma na ordem pedagógica, judiciária, econômica, familiar). Ao nos referirmos ao sentido restrito da palavra “governo”, poderíamos dizer que as relações de poder foram progressivamente governamentalizadas, ou seja, elaboradas, racionalizadas e centralizadas na forma ou sob a caução das instituições do Estado.
4. Relações de poder e relações estratégicas.
A palavra estratégia é correntemente empregada em três sentidos. Primeiramente, para designar a escolha dos meios empregados para se chegar a um fim; trata-se da racionalidade empregada para atingirmos um objetivo. Para designar a maneira pela qual um parceiro, num jogo dado, age em função daquilo que ele pensa dever ser a ação dos outros, e daquilo que ele acredita que os outros pensarão ser a dele; em suma, a maneira pela qual tentamos ter uma vantagem sobre o outro. Enfim, para designar o conjunto dos procedimentos utilizados num confronto para privar o adversário dos seus meios de combate e reduzi-lo a renunciar à luta; trata-se, então, dos meios destinados a obter a vitória. Estas três significações se reúnem nas situações de conforto — guerra ou jogo — onde o objetivo é agir sobre um adversário de tal modo que a luta lhe seja impossível. A estratégia se define então pela escolha das soluções “vencedoras”. Porém, é necessário ter em mente que se trata de um tipo bem particular de situação; e que há outros em que se deve manter a distinção entre os diferentes sentidos da palavra estratégia.
Ao nos referirmos ao primeiro sentido indicado, podemos chamar “estratégia de poder” ao conjunto dos meios operados para fazer funcionar ou para manter um dispositivo de poder. Podemos também falar de estratégia própria às relações de poder na medida em que estas constituem modos de ação sobre a ação possível, eventual, suposta dos outros. Podemos então decifrar em termos de “estratégias” os mecanismos utilizados nas relações de poder. Porém, o ponto mais importante é evidentemente a relação entre relações de poder e estratégias de confronto. Pois, se é verdade que no centro das relações de poder e como condição permanente de sua existência, há uma “insubmissão” e liberdades essencialmente renitentes, não há relação de poder sem resistência, sem escapatória ou fuga, sem inversão eventual; toda relação de poder implica, então, pelo menos de modo virtual, uma estratégia de luta, sem que para tanto venham a se superpor, a perder sua especificidade e finalmente a se confundir. Elas constituem reciprocamente uma espécie de limite permanente, de ponto de inversão possível. Uma relação de confronto encontra seu termo, seu momento final (e a vitória de um dos dois adversários) quando o jogo das reações antagônicas é substituído por mecanismos estáveis pelos quais um dentre eles pode conduzir de maneira bastante constante e com suficiente certeza a conduta dos outros; para uma relação de confronto, desde que não se trate de luta de morte, a fixação de uma relação de poder constitui um alvo — ao mesmo tempo seu complemento e sua própria suspensão. E, em troca, para uma relação de poder, a estratégia de luta constitui, ela também, uma fronteira: aquela onde a indução calculada das condutas dos outros não pode mais ultrapassar a réplica de sua própria ação. Como não poderia haver relações de poder sem pontos de insubmissão que, por definição, lhe escapam, toda intensificação e toda extensão das relações de poder para submetê-los conduzem apenas aos limites do exercício do poder; este encontra então sua finalidade seja num tipo de ação que reduz o outro à impotência total (uma “vitória” sobre o adversário substitui o exercício do poder), seja numa transformação daqueles que são governados em adversários. Em suma, toda estratégia de confronto sonha em tornar-se relação de poder; e toda relação de poder inclina-se, tanto ao seguir sua própria linha de desenvolvimento quanto ao se deparar com resistências frontais, a tornar-se estratégia vencedora.
De fato, entre relação de poder e estratégia de luta, existe atração recíproca, encadeamento indefinido e inversão perpétua. A cada instante, a relação de poder pode tornar-se, e em certos pontos se torna, um confronto entre adversários. A cada instante também as relações de adversidade, numa sociedade, abrem espaço para o emprego de mecanismos de poder. Instabilidade, portanto, que faz com que os mesmos processos, os mesmos acontecimentos, as mesmas transformações possam ser decifrados tanto no interior de uma história das lutas quanto na história das relações e dos dispositivos de poder. Não serão nem os mesmos elementos significativos, nem os mesmos encadeamentos, nem os mesmos tipos de inteligibilidade que aparecerão, apesar de se referirem a um mesmo tecido histórico e apesar de que cada uma das duas análises deve remeter à outra. E é justamente a interferência das duas leituras que faz aparecer estes fenômenos fundamentais de “dominação” que a história apresenta em grande parte das sociedades humanas. A dominação é uma estrutura global de poder cujas ramificações e consequências podemos, às vezes, encontrar, até na trama mais tênue da sociedade; porém, e ao mesmo tempo, é uma situação estratégica mais ou menos adquirida e solidificada num conjunto histórico de longa data entre adversários. Pode perfeitamente acontecer que um fato de dominação seja apenas a transcrição de um dos mecanismos de poder de uma relação de confronto e de suas consequências (uma estrutura política derivada de uma invasão); também pode ocorrer que uma relação de luta entre dois adversários seja o efeito do desenvolvimento das relações de poder com os conflitos e as clivagens que ela encadeia. Porém, o que toma a dominação de um grupo, de uma casta ou de uma classe, e as resistências ou as revoltas às quais ela se opõe um fenômeno central na história das sociedades é o fato de manifestarem, n u m a forma global e maciça, na escala do corpo social inteiro, a integração das relações de poder com as relações estratégicas e seus efeitos de encadeamento recíproco.
NOTAS
1 – Quando Habermas distingue dominação, comunicação e atividade finalizada, ele não vê aí, acredito, três domínios diferentes, mas três “transcendentais”.
2 – O neologismo usado por Foucault está baseado na palavra grega que significa “um combate”. O termo sugeriria, portanto, um combate físico no qual os opositores desenvolvem uma estratégia de reação e de injúrias mútuas, como se estivessem em uma sessão de luta. [Nota da tradutora]
FOUCAULT, M. Como se exerce o poder? In: DREYFUS, H.; RABINOW, P. Michel Foucault, uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. Tradução de Vera Porto Carrero.