LACAN, O “LIBERTADOR” DA PSICANÁLISE – ENTREVISTA COM MICHEL FOUCAULT (1981)

J. Nobécourt: Tem-se o hábito de dizer que Lacan foi o protagonista de uma “revolução da psicanálise”. O senhor acha que esta definição de “revolucionário” é exata e aceitável?

M. Foucault: Acho que Lacan teria recusado este termo de “revolucionário” e a própria ideia de uma “revolução em psicanálise”. Ele queria apenas ser “psicanalistas”. Isso supunha, aos seus olhos, uma ruptura violenta com tudo o que tendia a fazer depender a psicanálise da psiquiatria, ou a fazer dela um capítulo sofisticado da psicologia. Ele queria subtrair a psicanálise da proximidade da medicina e das instituições médicas, que considerava perigosa. Ele buscava na psicanálise não um processo de normalização dos comportamentos, mas uma teoria do sujeito. Por isso é que, apesar de uma aparência de discurso extremamente especulativo, seu pensamento não é estranho a todos os esforços que foram feitos para recolocar em questão as práticas da medicina mental.

J. Nobécourt: Se Lacan, como o senhor disse, não foi um “revolucionário”, é certo, contudo, que suas obras tiveram uma grande influência sobre a cultura dos últimos  decênios. O que mudou depois de Lacan, também, no modo de “fazer” cultura?

M. Foucault: O que mudou? Se remonto aos anos 50, na época em que o estudante que eu era lia as obras de Lévi-Strauss e os primeiros textos de Lacan, parece-me que a novidade era a seguinte: nós descobríamos que a filosofia e as ciências humanas viviam sobre uma concepção muito tradicional do sujeito, e que não bastava dizer, ora com uns, que o sujeito era radicalmente livre e, ora  com outros, que o sujeito era determinado por condições sociais. Nós descobríamos que era preciso procurar libertar tudo o que se esconde por trás do uso aparentemente simples do pronome “eu” (je). O sujeito: uma coisa complexa, frágil, de que é tão difícil falar, e sem a qual não podemos falar.

J. Nobécourt: Lacan teve muitos adversários. Ele foi acusado de hermetismo e de “terrorismo intelectual”. O que o senhor pensa sobre essas acusações?

M. Foucault: Penso que o hermetismo de Lacan é devido ao fato de ele querer que a leitura de seus textos não fosse simplesmente uma “tomada de consciência” de suas ideias.  Ele queria que o leitor descobrisse, ele próprio, como sujeito de desejo, através dessa leitura. Lacan queria que a obscuridade de seus Escritos¹ fosse a própria complexidade do sujeito, e que o trabalho necessário para compreendê-lo fosse um trabalho a ser realizado sobre si mesmo. Quanto ao “terrorismo”, observarei apenas uma coisa: Lacan não exercia nenhum poder institucional. Os que o escutavam queriam exatamente escutá-lo. Ele não aterrorizava senão aqueles que tinham medo. A influência que exercemos não pode nunca ser um poder que impomos.


NOTAS

  1. Lacan (J.). Écrits, Paris, Ed. du Seil, 1966. ((N.T.) Há tradução brasileira da Jorge Zahar Editora).

Publicado originalmente em: “Lacan, il ‘libertatore’ della psicanalisi” (“Lacan, o ‘libertador’ da psicanálise”; entrevista com J. Nobécourti; trad. A. Ghizzardi). Corriere della sera, vol. 106, nº 212, 11 de setembro de 1981, p.1.

Fonte: FOUCAULT, M. Problematização do sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise (Ditos e Escritos: vol.1). Tradução: Vera Lucia Avellar Ribeiro; organização Manoel Barros da Motta. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.

Transcrição: Anderson dos Santos.

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