Repetir, repetir – até ficar diferente.
Manoel de Barros
Pensar a esquizoanálise é pensar um rio que corre sem cessar. Em cada espaço, flui, fazendo diferentes passagens tanto pela superfície da Terra quanto por linhas subterrâneas, em movimentos que desembocam em outro rio, mar ou lago. É como uma dobra da natureza. Desse modo, em nosso território latino-americano, a esquizoanálise chegou como uma corrente. Não uma corrente que aprisiona ou forma uma escola, como alguns capturados pelo poder neoliberal esperavam que fosse, mas uma corrente tal como a água de um rio que escoa construindo fluxos e agenciamentos entre os campos da saúde mental, da análise institucional, das psicanálises, psicologias, filosofias, antropologias, ciências sociais, artes e outros tantos campos.
Encontramos entre seus inventores, um psicanalista, Félix Guattari, e um filósofo, Gilles Deleuze. Eles sabiam que cada um já era muitos e, a partir da coletividade que os habita, foi possível a fabricação de um pensamento rizomático – mediante o qual, através de linhas moleculares, se indicava raízes polimorfas e percursos intensivos – como forma de resistência às estruturas arborescentes e às linhas molares. Assim, pelas veias abertas de múltiplos mundos, a esquizoanálise nasceu nômade e molecular, produzindo uma dobra, uma torsão e uma tensão onde o pensamento se encontrava sedentarizado, sendo um destes lugares a psicanálise edipiana e institucionalizada, visto que muitos psicanalistas deixavam de lado o exercício do agir, do caminhar, do experimentar.
Quando alguns psicanalistas passaram a abordar o modo de vida neurótico e edipianizado como o mais aceitável para a vida social e individual, contribuíam – mesmo sem saber – para a produção de um mundo conformista, no qual o sistema capitalista, racista, familista e heteronormativo continuou prevalecendo sem
questionamentos. Diante disso, foi preciso um pouco de possível para não sufocar, um diferente modo de germinar entre terras e mares, um novo florescer em que os mapas eram redesenhados. O desejo foi, então, tomado como produção e não mais como falta, e a diferença recebeu seu devido lugar nestas leituras – e inexoravelmente o rizoma, por ser mola propulsora de movimento do desejo. No âmbito da esquizoanálise, é por esses caminhos de mobilidade e produção do desejo que exercemos um nomadismo.
Há incontáveis profissionais da psicologia, da psiquiatria e da psicanálise que souberam fazer um bom uso das ferramentas esquizoanalíticas, tais como: Suely Rolnik, em sua prática onde pensa uma psicanálise implicada com a cartografia e com a descolonização do inconsciente-colonial-capitalístico; João Perci Schiavon, ao aliar a filosofia da diferença ao pragmatismo pulsional da clínica psicanalítica; e Gregório Baremblitt, que, desviando-se da psicanálise, forjou uma nova prática intitulada esquizodrama, sendo considerada sua maior proposta através da esquizoanálise. Embora não seja nossa intenção determo-nos nesse assunto, sem dúvida há outras ramificações e experimentações de esquizoanálise pelo Brasil afora.
Temos como objetivo destacar a esquizoanálise como um agenciamento possível da psicanálise, como uma dobra desta prática analítica, pensando seu caráter heterogêneo, múltiplo e transversal – em que a escuta exercida em sua radicalidade possibilita a presentificação da força de uma via intempestiva em uma vida. Todavia, por mais que tentem reduzir O anti-Édipo(1972) a uma antipsicanálise, sua produção jamais chegará a esse ponto, pois esta obra, além de marcar o surgimento da esquizoanálise em nossos territórios, encontra-se em um plano de “agenciamento intensivo, de modo a estabelecer encontros desses corpos-conceitos que possam conduzir a um aumento de potência das respectivas obras”. Desse modo, consideramos que ambas perspectivas são necessárias ao nosso pensamento. Por isso, não se trata de pensar a redução da esquizoanálise como antipsicanálise ou como mera abordagem psicológica, mas como uma ferramenta ética, analítica e política a ser executada por toda comunidade. Vale salientar que não observamos em silêncio as antiproduções realizadas em seu nome ou aliadas ao capitalismo neoliberal, nas quais aparece e prevalece a figura do empreendedor de si, o qual se vende e se vangloria por uma abordagem que se supõe superior a todas as outras.
Em vista disso, atualmente, um dos perigos em nosso campo é a tentativa de tornar a esquizoanálise como sendo meramente uma abordagem psicoterapêutica, uma vez não ter sido concebida por Guattari “como uma nova especialidade, que seria chamada a colocar-se nas fileiras do domínio psi”, o qual afirmou que se a esquizoanálise chegou a existir algum dia, é porque já existia “um pouco por toda parte, de maneira embrionária, sob diversas modalidades”. Exemplo disto foi o fenômeno das rádios livres nos anos 1970-80, na França e Itália, com o qual Guattari esteve envolvido, tendo considerado o movimento como “uma espécie de esquizoanálise dos meios de comunicação de massa”. Nesse sentido, segundo ele, não seria preciso fazer um discurso sobre a esquizoanálise, bastaria fazer rádio livre, ou seja, a esquizoanálise precisa ser inventada, fabricada, praticada – acontecer em ato – em diversos espaços e por diferentes pessoas.
Portanto, por meio desse fazer existir, dessa fabricação e implicação esquizoanalítica, não há necessidade de fundações institucionais, nem mesmo a criação de protocolos esquizoanalíticos que normalizariam certa prática. Mas, apesar disso, Guattari apresentou, nos anos 1980, uma regra fundamental, uma antirregra, que consiste em produzir constantemente questionamentos “dos agenciamentos analisadores, em função de seus efeitos de feedback sobre os dados analíticos”. Desse modo, reiteramos que a esquizoanálise é “essencialmente excêntrica em relação às práticas psi profissionalizadas, com suas corporações, sociedades, escolas, iniciações didáticas, ‘passe’, etc.”, definindo-se provisoriamente como “a análise da incidência dos agenciamentos de enunciação sobre as produções subjetivas, em um contexto problemático dado”.
Em síntese, para Guattari, a esquizoanálise é “algo que nos propõe uma reflexão sobre formas analíticas reais da maneira como aparecem”. Logo, considerar a esquizoanálise como especialidade “psi” seria um verdadeiro golpe contra as produções de Guattari e Deleuze, os quais se dedicaram em não a tornar uma “especialidade” repleta de mestres e doutores com seus certificados, diplomas e carteirinhas de poder.
Guattari e Deleuze não almejavam propor uma ruptura de psicanalistas com sua prática, mas, sim, com a concepção de neutralidade e relação com o outro que imperava no campo psicanalítico. Dessa forma, no momento em que se configurou uma psicanálise dominante na França dos anos 1960-70, a crítica desses autores foi endereçada como dinamite aos psicanalistas que se deslocavam da micropolítica, os quais aparentemente se sentiam (e alguns ainda se sentem) confortáveis em suas poltronas, trancafiados entre quatro paredes, com suas janelas fechadas, apenas observando os outros colocarem as mãos na realidade que também lhes diz respeito. Entretanto, ao mesmo tempo que certa horda de psicanalistas se retiravam da linha de frente, eles monopolizavam “o campo da problemática da análise das formações do inconsciente, quando essa problemática é, exatamente, um dos elementos fundamentais de que o conjunto do campo social deveria se reapropriar”.
Vale lembrar que Guattari, em sua obra (com e sem Deleuze), apontou a existência da problemática do inconsciente no campo social como um problema não apenas para psiquiatras, psicanalistas e psicoterapeutas, mas para toda uma comunidade, coletividade ou grupo de militantes, pois isso atravessa cada um de nós e nos leva a questões políticas. Resulta disso que a preocupação com os problemas das formações do inconsciente é, a um só tempo, pessoal e extrapessoal, de modo que não devemos deixar de dar a devida atenção à luta de classes, às questões raciais, de sexualidade, gênero, ecossistema, do desejo etc.
FOUCAULT E A ESQUIZOANÁLISE
O capitalismo e sua macro e micropolítica reativa se efetivaram no mundo como um controle disciplinar sobre os corpos e, como destacou Foucault, onde há poder, há resistência, consequentemente, por toda parte e a todo momento há uma batalha acontecendo entre libertar-se de algum modo desses sistemas de controle, sobreviver, e permitir a tomada de poder cada vez mais perversa do neoliberalismo. Ainda com esse filósofo, não esquecemos que o humor ácido utilizado pelos autores de O anti-Édipo para com Sigmund Freud, entre outros, não foi produzido com o intuito de “difamar os velhos ídolos”, mas de nos incitar, de modo radical, a ir mais longe.
De acordo com Foucault, “seria um erro ler O anti-Édipo como a nova referência teórica (sabem, essa famosa teoria que nos foi anunciada com tanta frequência: aquela que vai englobar tudo, que é absolutamente totalizante e tranquilizante e da qual, conforme nos garantem, ‘temos tanta necessidade’ nessa época de dispersão e de especialização, em que a ‘esperança’ desapareceu)”.
Se alguns analistas e militantes ainda permanecem adormecidos, ou apenas sonhando, O anti-Édipo nos desperta com “questões que se ocupam menos com o porquê das coisas do que com seu como. Como se introduz o desejo no pensamento, no discurso, na ação? Como o desejo pode e deve desdobrar suas forças na esfera do político e se intensificar no processo de reversão da ordem estabelecidas? Ars erotica, ars theoretica, ars política”. Por isso, aliados ao pensamento de Foucault, tomamos O anti-Édipo como um livro de ética, um modo de vida, uma prática de vida antifascista.
ESQUIZOANÁLISE E PSICANÁLISE
Ainda realizamos um excessivo uso do conceito de “esquizoanálise” em nossos trabalhos, porém, cabe ressaltar que, na sequência de O anti-Édipo, Guattari e Deleuze escreveram, em Mil Platôs, que somente empregavam palavras que funcionavam como platôs, sendo Rizomática = Esquizoanálise = Estrato Análise = Pragmática = Micropolítica, e podemos acrescentar = Filosofia da Diferença = Filosofia das Multiplicidades = Avaliação das Forças = Revolução Molecular. Nota-se, por conseguinte, que há inúmeras nomeações para essa perspectiva. Nada de binarismo. Nada de isto ou aquilo. Trata-se de uma pragmática-política de composições, em que pese a existência de confrontações esteja pelo caminho.
Estes autores não tinham nenhuma pretensão de torná-la um estatuto de ciência, nem mesmo reconheciam cientificidade ou ideologia além de agenciamentos. Todavia, em outros momentos, Guattari disse desejar construir uma ciência menor, uma ciência na qual seria possível misturar “buchas de limpeza e panos de pratos com outras coisas ainda mais diversas”, e, deslocando esses instrumentos de seus contextos habituais, sabia que poderiam se tornar uma outra coisa. Em vista disso, afirmou que “devemos estar preparados para aceitar de bom grado que buchas de limpeza se diferenciem em devires singularizados”.
Consideramos a esquizoanálise como uma caixa de ferramentas, sem pretender apresentá-la como melhor que outras, mas reconhecendo sua potência. Após a explosão de Maio de 68, Guattari e Deleuze se unem, e juntos colocam o dedo na ferida psicanalítica, no capitalismo, no colonialismo – isso sem abandonar sua composição com a psicanálise, implicando-se em um campo transdisciplinar. Assim, atravessados por essa máquina revolucionária, encontramos algumas chaves para a desinstitucionalização (em processo) da psicanálise edipiana, burocrática, colonial e liberal, rompendo com discursos e ciências instituídas, produzindo uma “transferência do paradigma científico para um paradigma estético no domínio da psicanálise”.
Evidentemente Guattari e Deleuze pensaram para além de Édipo, dado que, por meio da desedipianização do inconsciente, se chega aos verdadeiros problemas, ou seja, atinge-se as regiões “do inconsciente órfão, precisamente ‘para além de toda lei’, ali onde o problema nem mesmo pode ser levantado”. Esses autores observaram que a grande problemática era a da redução do inconsciente ao estado de crença em Édipo, não que esta seja uma falsa crença, porém, este sedentarismo e enraizamento edipiano sufoca a produção desejante. Eles não cessaram de dizer que a junção de Édipo com o desejo é uma das grandes porcarias dos últimos tempos, pois condena-se o desejo por existir em sua potência, tornando-o impotente.
O que pode o desejo que se liga ao Édipo? Pode limitar a vida, uma vez que reduzir Édipo ao desejo é simplesmente traí-lo e com isso aprisioná-lo em um território ligado ao indivíduo, à família, à propriedade, à burguesia, ao capitalismo. Desse modo, de acordo com Deleuze e Guattari, “a psicanálise só se tornará uma disciplina rigorosa quando puser a crença entre parênteses, ou seja, quando fizer uma redução materialista de Édipo como forma ideológica”.
Por conseguinte, o imperialismo edipiano precisa ser destruído tanto quanto o imperialismo capitalista. Logo, renunciar ao mito e destruir as crenças é encontrar um pouco de possível. Vale ressaltar que Guattari e Deleuze não deixam de lembrar que também Lacan pensou para além de Édipo, destacando as advertências deste ao dizer que a psicanálise não é o rito do Édipo e um mito não se preserva se ele não sustentar algum rito. Portanto, segundo estes autores, “será sempre esta a força de Lacan, ter salvo a psicanálise da edipianização furiosa a que ela ligava seu destino”.
O inconsciente como produção do campo social apresenta a psicanálise à política e à descolonização do inconsciente. Contudo, Deleuze e Guattari, desde o início, apontaram que uma subversão desse nível não pode acontecer somente fora da psicanálise, pois acredita-se na possibilidade de uma subversão interna que retire os analistas de suas capelas para contribuírem com a construção de uma máquina analítica que possa vir a se tornar uma peça indispensável dos dispositivos revolucionários.
PSICANÁLISE… E… ESQUIZOANÁLISE
Todo discurso é um ato e todo ato se localiza em determinado espaço geográfico e tempo histórico-social. Para quem ainda busca abordar a esquizoanálise como antipsicanálise, relembramos o ano de 2012, quando se completaram 40 anos da publicação de O anti-Édipo. Nessa ocasião, Vladimir Safatle, com uma escrita-molotov, declarou que este foi um livro muito comentado, mas ao mesmo tempo pouco lido; trata-se de um livro que os críticos da filosofia francesa contemporânea não leram e, “quando leem, eles o fazem como quem entra em um ringue munido de luvas de boxe. Afirmam que o estilo é impenetrável, que tudo é uma grande impostura e acham que, com isso, resolveram tudo”.
Este é um comentário acerca da obra de Guattari e Deleuze, mas podemos incluir nestas linhas o trabalho de Freud e Lacan. Afinal, ouvimos críticas da mesma ordem, provenientes de meios fechados e sectários, de ambas as partes. Não obstante, quem se aprofundou de fato em seus trabalhos soube acompanhá-los e criticá-los em suas propostas equivocadas. Dessa forma, não nos concerne criar políticas de confrontação, mas de composição, senão adentraremos somente em um universo onde se forma uma política paranoica, a qual seguirá perpetuando a lógica de uma guerra entre nós e paz aos Senhores.
O anti-Édipo ressoa vivamente em nosso tempo, em nossas práticas analíticas, assim como no exercício de incontáveis analistas, tanto no olhar sobre a psicose quanto acerca da relação entre capitalismo e esquizofrenia, como pensaram os autores desta obra. De acordo com Guattari, “muitas lutas internas no movimento psicanalítico seriam compreendidas se a hostilidade fundamental de Freud em relação à psicose fosse finalmente reconhecida”.
Após O anti-Édipo, eles sabiam que era necessário lidar com as condições concretas da luta esquizoanalítica, uma luta política em todas as frentes da produção desejante, e produzir um deslocamento da discussão em torno de um único campo. Dessa forma, pouco antes da publicação de Mil Platôs, Guattari afirmou que não podemos esquecer que “o problema da psicanálise é o problema do movimento revolucionário; o problema do movimento revolucionário é o problema da loucura; o problema da loucura é o problema da criação artística”.
Em vista disso, em O anti-Édipo, introduziram a questão da ação política não para romper totalmente com a psicanálise, mas para mostrar que o psicanalista e o militante devem se misturar e passar longe de qualquer espécie de neutralidade, pois esta é sempre falaciosa. Além do mais, consideravam a psicanálise também como um importante dispositivo de intervenção, assim, fabricaram um furo na bolha psicanalítica e, na sequência, em decorrência de diversas problemáticas advindas de leituras equivocadas de O anti-Édipo, Guattari e Deleuze apresentaram, em 1980, na obra Mil Platôs, a multiplicidade da prudência em nossa prática clínica, militante e política. Estes autores seguem pensando de outro modo, mais além da psicanálise, porém sem perdê-la de vista.
O slogan esquizoanalítico foi descrito como a procura de nossos buracos negros e muros brancos, onde há uma possibilidade de conhecer nossos rostos, e, sem isso, não haveria possibilidade em desrostificar ou traçar linhas de fuga. Portanto, temos aí o objetivo prático da esquizoanálise, pois como análise do desejo, trata-se de uma prática, de um exercício que não cessa de colocar questões desta ordem: “qual é o seu corpo sem órgãos? quais são suas próprias linhas, qual mapa você está fazendo e remanejando, qual linha abstrata você traçará, e a que preço, para você e para os outros? Sua própria linha de fuga? Seu CsO que se confunde com ela? Você racha? Você rachará? Você se desterritorializa? Qual linha você interrompe, qual você prolonga ou retoma, sem figuras nem símbolos?”.
Ainda nesse ponto, a esquizoanálise não deixa de aliar-se com a psicanálise, a qual está ciente de que o movimento do desejo é o caminho do saber. Trata-se da ética dos devires, da diferença. Neste sentido, Schiavon salienta que “a via ativa garante a persistência do desejo através de todas as figuras e sentenças, revertendo-as a cada vez, em favor de novas condições de vida ativa”, em outras palavras, “a análise é uma via ativa que determina, todo o tempo, graças à ética que a anima, uma reversão às condições de vida ativa – o que Lacan chamou de retificação das relações do sujeito com o real”.
Antes mesmo de Mil Platôs, Guattari e Deleuze já haviam dito que a esquizoanálise seria, ao mesmo tempo, “uma psicanálise política e social, uma análise militante: não porque generalizaria Édipo na cultura, o que se tem feito atualmente de maneira tão ridícula, mas, ao contrário, porque ela se propõe a mostrar a existência de um investimento libidinal inconsciente da produção social histórica, distintos dos investimentos conscientes que existem com ele”. Portanto, em nossa leitura se sustenta uma esquizoanálise ainda como uma psicanálise, produzida sob uma perspectiva mais radical, porém não como uma “abordagem psi” e antipsicanalítica – como alguns, atualmente, pretendem vendê-la, em nome de poder e capital.
Freud passou sua vida cartografando, realizando novas leituras dos fenômenos subjetivos, descobrindo novos mundos, explorando de maneira apaixonada os novos continentes que havia encontrado. Segundo a perspectiva de Guattari, “a obra de Freud se constitui de uma só peça, como Dionísio que nasceu todo pronto da coxa de Zeus”. Foi através de suas navegações e escavações que Freud pôde constituir o dispositivo analítico conhecido como Psicanálise. Por outro lado, encontramos em seu trajeto a criação de uma máquina de referência com a qual buscava construir uma psicanálise científica.
De acordo com Guattari, nas obras Interpretação dos sonhos, Psicopatologia da vida cotidiana e Moisés e o monoteísmo, é possível notar o trabalho de cartografia das formações do inconsciente, observando que o trabalho de mapeamento e classificação realizado por Freud acerca das singularidades do inconsciente obteve, nesse processo, maior grau de relevância. Diante disso, a construção de novas perspectivas é um dos modos de funcionamento encontrado na extensa relação entre psicanálise e esquizoanálise, assim como a obra aberta de seus inventores, a qual localizamos em uma espécie de devir nas (d)obras. A partir das diferenças e composições, pode acontecer um devir-esquizoanalista que possibilite advir uma psicanálise menor.
Segundo Rolnik, além de encontrarmos na obra de Freud o início de um desvio na Medicina e na Psicologia, encontramos “uma linha de fuga que, embora jamais nela se explicite, é seu ponto de virada mais radical – uma espécie de potência clandestina portadora de um desvio também na Filosofia e, mais amplamente, na cultura e na política de desejo dominantes na tradição moderna ocidental colonial-capitalística”. Para a autora, se pensarmos através dessa perspectiva da linha de fuga, podemos verificar que Freud “favoreceu a reconexão com o saber próprio de nossa condição de viventes, cujo acesso e a prática existencial guiada por esse saber haviam sido interrompidos no modo de subjetivação que predomina nessa tradição”. Também considera que, na produção freudiana, é indissociável a teoria e a pragmática, introduzindo um novo ritual no mundo.
Sendo assim, uma psicanálise implicada, no mínimo, se encontra através das ações nas quais se percebe que as coisas não estão dadas de antemão, muito menos em triângulos familiares. Como bem salienta Rolnik, “cabe a nós descolonizar a psicanálise, ativando a potência clandestina e expandindo a linha de fuga presente em sua fundação não só no âmbito restrito das práticas psicoterapêuticas e mais restrito ainda nos consultórios, mas em todo o campo social. Isso implica em assumir a prática psicanalítica como um dispositivo essencial da insurreição micropolítica”.
Entre as muitas ferramentas encontradas em O anti-Édipo, destacamos a ideia de “raspagem”, a qual não se trata meramente de um conceito, mas de uma das tarefas da esquizoanálise, consistindo em fazer a crítica do modo de vida atual, de toda espécie de representação de algo que, sob um estado de servidão voluntária, acabamos por reproduzir. Com essa tarefa, somos levados, então, a produzir novos dispositivos que proporcionem linhas de fuga, permitindo atravessar muros, escapar cada vez mais do estado colonial capitalístico. Desse modo, caminhar sem aliar clínica e crítica é algo problematizado tanto pela esquizoanálise quanto pela psicanálise.
Em sua obra, Freud mostrou o quanto a crítica deve funcionar como uma engrenagem fundamental para movimentar o trabalho teórico-político-ético-clínico da prática psicanalítica, pois sem a crítica de seu pensamento e do pensamento científico de sua época, não haveria possibilidade de um florescer de suas cartografias e análises do inconsciente. Mas, aparentemente, os leitores mais apressados destes autores passam longe do crivo crítico de suas próprias leituras, partindo apenas para a reprodução de algumas frases aqui e ali na tentativa de capturar um outro sob seu discurso.
Sabemos que Freud apresentou problemáticas em alguns de seus escritos, entretanto, ele também foi capaz de certa honestidade intelectual ao revisar seus sistemas de pensamento de modo profundo, indo até onde alcançou sua escuta, seu olhar, ou seja, sua vida. Além de suas produções, uma das contribuições mais relevantes de Freud foi demonstrar que, em seu pensamento, não havia lugar para dogmatismos. Por exemplo, ao falar dos Caminhos da terapia psicanalítica, na conferência de 1918, ele diz: “nunca nos gabamos da completude e inteireza de nosso saber e de nossa capacidade; estamos prontos, agora não menos que antes, a admitir as imperfeições de nosso conhecimento, aprender novas coisas e mudar em nossos procedimentos o que puder ser melhorado”. Evidentemente, uma teoria que abandona o exercício de se questionar não passa de um dogmatismo, de uma religião. E um dogmatismo brutal dessa ordem faz seus adeptos caminharem apenas reproduzindo o que seu mestre disse ou escreveu.
Em sua origem, vimos a psicanálise pondo o dedo na ferida narcísica da sociedade de seu tempo, subvertendo o status quo, enfrentando certa moral burguesa e científica, e inserindo no espaço público um novo modo de pensar e agir. Juntamente com essa tarefa revolucionária, temos um dos enunciados mais potentes de Lacan ao declarar “que […] renuncie a isso, portanto, quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”, ou seja, que renuncie à psicanálise aqueles que não escutarem as produções das subjetividades de sua época. Dessa forma, encontramos a psicanálise ligada à política, a ética, ao social. E, assim, podemos afirmar, sem temer, que não existe psicanálise sem uma escuta de seu tempo, sem perceber que como psicanalistas estamos diante de um fenômeno, sintoma, que habita um certo espaço-tempo inseparável de um contexto histórico, econômico, político e social atravessando os processos de subjetivação.
Nesse sentido, quem exerce a função de analista e coloca em exercício uma prática contrária à escuta da diferença, bloqueia as forças ativas do mundo porvir, entupindo a análise de uma escuta repleta de eu, papai-mamãe-filho/a. Porém, cabe ressaltar que isso não passa somente pelo campo psicanalítico, antes fosse um problema apenas dessa prática, mas se encontra inclusive entre as psicologias, psiquiatras e terapias alternativas. Evidentemente, se não afinarmos nossa escuta, os consultórios e instituições continuarão permitindo a proliferação do racismo, do machismo e de todos os tipos de violências de gênero.
Um território/inconsciente colonizado precisa ser descolonizado, e torna-se imprescindível a implicação de analistas neste campo de batalha. Por isso, apostamos em uma prática anticolonial, antimanicomial e anticapitalista; apostamos em uma clínica do devir que se situe e efetue entre as condições dadas pelas lutas minoritárias, como o movimento antirracismo, o movimento LGBTI+, a luta das mulheres, entre outros movimentos sociais antifascistas.
DEVIR-ESQUIZOANALISTA
A esquizoanálise nasce, existe e persiste entre pensamentos rizomáticos e o campo transdisciplinar. Recentemente, no período da pandemia, Schiavon apontou “uma ética para o fim e o início dos tempos”, apresentando a necessidade de uma atitude (ética) que atravesse os reinos da natureza, uma desterritorialização pragmática do pensamento, uma revolução molecular que possibilite, aqui e agora, um modo de existência que não aprisione a vida ou a violente. Em vista disso, torna-se urgente realizarmos aproximações com outras perspectivas e construirmos uma psicanálise menor, produzindo um pouco de respiro; afinal, somos realistas, exigimos o impossível.
Em Metafísicas Canibais, Eduardo Viveiros de Castro destaca que este livro faz parte de um outro título, O anti-Narciso, sendo considerado uma homenagem a Deleuze e Guattari através de seu ponto de vista. Em que pese não ter se tornado este o título de seu livro, o projeto vive e nossa aposta está aliada a essa ideia, a qual contém o exercício de uma antropologia como ciência menor, composta por sua proposta de produzir uma proliferação das pequenas multiplicidades, “– não o narcisismo das pequenas diferenças, mas o antinarcisismo das variações contínuas; contra os humanismos consumados ou finalizados”.
Nesta batalha, cabe a nós o trabalho de forjar uma dobra diante dos contornos impostos pela dominação antropo-falo-ego-logocêntrica, produtora de uma “política reativa do pensamento, regida pelo inconsciente colonial-capitalístico”. Consonante Rolnik, diante desse imenso desafio que enfrentamos, é preciso “reativarmos o saber-do-vivo no exercício do pensamento, de modo a liberá-lo de seu encarceramento nesse seco logocentrismo e seus falsos problemas – consequência de seu divórcio dos fluxos vitais e dos verdadeiros problemas que seus movimentos lhe colocam”. Não seria esta uma das mais importantes tarefas, aliada à ética, a estética, a clínica e à política?
Sabendo que o devir não é reprodução ou imitação daquilo que se engendrará nesse processo, através deste conceito buscamos deslocar o reducionismo em que esquizoanálise e psicanálise têm sido situadas em determinados discursos e instituições. Desse modo, podemos implicá-las em suas origens de fazer-com, estremecendo certo pensamento majoritário para que devenha menor. Ou seja, produzi-la no sentido minoritário e desviante das normas, fabricando uma espécie de variação contínua, ultrapassando a amostra do homogêneo, do sedentário, do universal. Vale ressaltar que as nomenclaturas maior e menor não designam questões concernentes à quantidade, mas ao poder, à dominação, ao maior sendo transmutado através das potências de variação que possibilitam seu mergulho no processo de devir-minoritário.
Entre O anti-Édipo e Mil Platôs, encontramos em Kafka: por uma literatura menor (1975) o conceito de “menor” em Deleuze e Guattari. Nessa obra, a literatura menor não se aprisiona em uma língua menor, mas diz respeito “à língua que uma minoria constrói numa língua maior”, sendo definida por três características: (1) desterritorialização, (2) ligação do individual com o político, e (3) agenciamentos coletivos de enunciação. Invertemos aqui a questão da literatura para pensarmos no problema de como extrair da própria língua uma psicanálise menor, “capaz de escavar a linguagem e de fazê-la seguir por uma linha revolucionária sóbria?”. Como podemos nos tornar nômades em nossa própria língua? Como produzir desterritorializações do corpo social, da normativa de uma linguagem psicanalítica (e esquizoanalítica) que nos concerne?
A categoria de “ser” sempre foi problemática, e pensar a potência de uma “esquizoanálise” em um “ser esquizoanalista” como especialista trata-se de algo um tanto complexo. Isto posto, tomamos uma posição ética e política na qual não se trata de deixar se capturar pela ilusão de Ser-alguma-coisa, mas, sim, de exercitar um compor-com-alguma-coisa. Pouco nos importa pensar em algo pessoalizado, mas muito nos interessam os processos, rizomas, fluxos e devires do que pode vir a acontecer nessas composições.
Os inventores da esquizoanálise salientaram que “devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de devir, e através das quais devimos. É nesse sentido que o devir é o processo do desejo”. Como afirmou Deleuze “devir é tornar-se cada vez mais sóbrio, cada vez mais simples, tornar-se cada vez mais deserto e, assim, mais povoado”. Por conseguinte, um devir-esquizoanalista encontra-se longe de qualquer sedentarismo e morbidez, pois é preciso desterritorializar, agenciar, desrostificar, fazer furos nas estruturas para possibilitar linhas de fuga. E, juntamente com esse exercício, fabricar zonas de vizinhança, produzir concretamente blocos de devir em (de)composição.
Em vista disso, um devir-esquizoanalista somente pode acontecer em ato. No campo analítico, um devir pode vir a balançar as estruturas, desarticular os saberes molares, desconstruir o que há de edipiano e fascista em nós e desrostificar o corpo para produzir um pensamento imanente, inventivo e ativo. Isto seria fazer funcionar uma outra escuta e presença do analista, que aposta tanto no corpo pulsional, quanto nos componentes heterogêneos que circulam por territórios existenciais, nas multiplicidades e diferenças. Notem que nosso exercício está longe de reduzir a esquizoanálise a uma psicanálise ou antipsicanálise, assim como não caímos no velho discurso acadêmico que busca desconsiderar sua potencial força de agenciamento, seu duplo, sua parceria e amizade.
PSICANÁLISE-ESQUIZOANÁLISE E A MÁQUINA-GUATTARI
Guattari, em O Inconsciente Maquínico: ensaios de esquizoanálise (1989), formula uma de suas maiores apostas: um inconsciente “voltado para o futuro”. Com isso, chegamos à ideia de um inconsciente futurista, uma psicanálise futurista, cuja exigência é de que a força pulsional dos devires seja presentificada na clínica, visto que os “devires, são filhos do futuro”. Nesse lugar, uma análise compreende a força das avaliações, das escolhas, diferenças e composições.
Por meio da leitura que Deleuze realiza a partir da obra de Henri Bergson, encontramos a ideia que “de uma maneira distinta da de Freud, mas tão profundamente quanto, […] viu que a memória era uma função do futuro, que a memória e a vontade eram tão-só uma mesma função, que somente um ser capaz de memória podia desviar-se do seu passado, desligar-se dele, não repeti-lo, fazer o novo. Assim, a palavra ‘diferença’ designa, ao mesmo tempo, o particular que é e o novo que se faz”.
Foi por meio do método fundamental da psicanálise, a associação livre, que se descobriu o inconsciente como uma memória e, nesse processo, o inconsciente como uma memória em ato. O que emerge ainda é todo um plano de afetos, do saber e não saber. Destarte, com as potentes perspectivas de nossos autores, podemos afirmar que uma análise é sempre uma análise de futuro, visto que o inconsciente tem uma função de futuro, assim como os sonhos dos povos originários. Foi exatamente nessa direção que este psicanalista apostou, tendo em seu horizonte não um retorno ao passado, mas o encontro com o futuro, o pragmático e pulsional.
Segundo Schiavon, a psicanálise como uma prática clínica e uma teoria originária do real necessita “de um contínuo banho de real para se colocar à altura de sua destinação e aí permanecer”. E, segundo ele, durante o século 20 esse banho passou pelo crivo de Freud, Lacan, Deleuze, Guattari, entre outros. No presente livro, formamos uma matilha de analistas para pensar nesse banho, para não deixar o campo se transformar em rebanho, nem mesmo a água do rio secar e o corpo se diluir em desertos repletos de areias movediças. Através de sua imensa sensibilidade, Schiavon faz passar sua leitura acerca da composição e dos diálogos entre psicanálise e esquizoanálise por seu crivo pragmático, ético e clínico, afirmando que “a esquizoanálise ainda é psicanálise após um banho de real” e que “a esquizoanálise é ainda a psicanálise, como a física quântica é ainda a física”.
Na função de analistas, afetamos e somos afetados ao abrir nossa escuta a narrativas de múltiplos mundos. Ao praticarmos a escuta em sua radicalidade, em sua diferença, podemos produzir uma abertura da percepção, dos poros mais profundos onde o pensamento edipiano e colonial não possui lugar, a não ser para ser destituído de seu poder. O inconsciente, potência que germina mais vida, flui através de encontros e agenciamentos, encontra-se com a multiplicidade e a “heterogênese dos processos criativos na produção de subjetividade” como disse Osvaldo Saidón.
Para Eduardo Vidal “há uma heterogeneidade entre a filosofia e o discurso analítico” e esta heterogeneidade não significou uma ruptura entre Deleuze e a psicanálise, pois em sua crítica produzida com Guattari, tomam a potência da invenção freudiana do inconsciente para pensar o inconsciente como máquinas desejantes, levando o sujeito a sair do aprisionamento teatral-familiar e se encaminhar para a mais radical exterioridade de si. Ainda, cabe ressaltar que “a questão do sujeito, em psicanálise, é correlativa a uma série de escritas heterogêneas e heterotópicas. O inconsciente é o conceito decorrente da instauração de um traço que se repete como diferença”. Desse modo, foi preciso fabricar a heterogeneidade para inscrever os conceitos nas suas diferenças.
Para Guattari, a psicanálise é um discurso mutacional que possui movimento e pode deter-se ou morrer, e também deslocar-se para outros percursos, por outras vias. A psicanálise não é “um discurso fundado sobre matemas do inconsciente, nem sobre universais da subjetividade”. O que caracteriza o discurso da análise “é uma produção de subjetividade, uma produção de sentido, a partir de elementos de ruptura de sentido”, e, no decorrer das últimas décadas, outras mutações de agenciamento de enunciação foram surgindo em nossos territórios, mas ao mesmo tempo, sabendo que a produção de subjetividade requer invenção, nos permanece a problemática de reinventar dispositivos de produção de subjetividade constantemente e que estes possam dar uma resposta para além do âmbito individual, ou seja, que alcance os coletivos, as instituições, etc. De acordo com Guattari, seu interesse na esquizoanálise está na heterogeneidade desta prática e o que chamou de metamodelização, “consiste em forjar os instrumentos para apreender esta diversidade, esta singularidade, esta heterogeneidade”.
Segundo José Attal, Guattari, através de suas proposições, se manteve aliado a Freud e Lacan na tentativa de reconstruir a psicanálise, esta prática que segue um processo contínuo de fabricação, sem a intenção de estar pronta, do mesmo modo que o analista não é formado, mas sim produzido continuamente. E a partir da fórmula de Guattari acerca do artista, qualificado por ele como “um herói da sobrevivência subjetiva”, Attal coloca em questão, se o psicanalista também não poderia ocupar esse lugar, visto que também considera a sobrevivência subjetiva como “prioridade”. Ressalta ainda o fato de a psicanálise ter se desviado por muito tempo da normatização, sendo considerada uma prática e pensamento subversivo para a época, porém, até mesmo o subversivo, quando passa a ser admitido pela maioria, se torna “normalidade” e como podemos observar, uma das celebres frases de Lacan “o analista só se autoriza por si mesmo”, foi tomada pelos defensores de uma psicanálise convencional que se uniram para continuar fechados em suas capelas e leituras sem acompanhar sua época.
PSCIANÁLISE E FLUXOS ESQUIZOS
Inicialmente os fluxos esquizos são demonstrados por Freud, pela psicanálise, e ao mesmo tempo repelidos. Lacan retoma esses fluxos, de um lado, e Guattari e Deleuze, de outro, o fazem com os dois pés na porta da psicanálise, buscando aproximar a relação neurótica com a psicótica. Ou seja, como disse Attal, passando pela “ideia de que se deve comportar-se com os neuróticos […] como com os psicóticos e vice-versa; que o mundo da psicose está implicado em entradas pragmáticas, entradas semióticas muito mais ricas e, finalmente, comprometido com uma responsabilidade ético-micropolítica muito maior”.
Lacan, em sua Abertura de Seção Clínica realizada em 1977, aliado (mesmo sem assumir em nenhum momento esta posição) ao anti-Édipo afirmou que “a psicanálise é uma prática delirante, mas é o que de melhor se dispõe atualmente para obter alguma paciência com esta situação incomoda de ser homem. Em todo caso é o que melhor Freud pôde encontrar. E ele sustentou que o psicanalista não deve jamais hesitar em delirar. […] Se fosse mais psicótico provavelmente seria melhor analista”. Cabe ressaltar que isto não significa tornar-se psicótico, mas saber escutar de outro modo, um modo esquizo, antiedipiano. Frases como essa de Lacan, se tornaram um problema a Deleuze e Guattari após a publicação de O anti-Édipo, pois alguns leitores acreditaram que eles afirmavam que a esquizofrenia seria uma alternativa. Porém, Guattari disse em diversas entrevistas o quão equivocados estavam estes leitores/comentadores, cabe destacar dois momentos: uma entrevista no Japão em 1980, onde afirmou que na obra alteraram a palavra “psicose” para esquizo, pois a primeira remetia muito à psiquiatria, então começaram a dizer “esquizo”, destacando a existência de “processos esquizo que atravessam a sociedade não só pela psicopatologia, mas também pela invenção e todas as situações em que se encontra uma ruptura com as formas dominantes de significação”, porém, os comentadores da obra realizada com Deleuze, disseram que eles escreveram que os esquizofrênicos seriam revolucionários, o que é um grande equívoco. Guattari afirmou que o que disseram “é que existe um processo esquizo que podemos encontrar às vezes na esquizofrenia, às vezes na infância, às vezes na invenção, às vezes em todos os lugares” e acrescentou “esta expressão gerou tantos mal-entendidos que agora eu acho melhor simplesmente esquece-la”. Outro momento desse mal-estar com estas interpretações ocorreu em 1992, visto que o entrevistador de um canal de TV Grega colocou o esquizo como um revolucionário, dizendo que seria uma ideia guattariana, contudo, Guattari responde prontamente que “nunca disse que o psicótico ou o esquizofrênico fosse um herói revolucionário, que fosse substituir o líder da classe trabalhadora ou os militantes das fábricas de Putilov de 1917” e menciona o sofrimento dos psicóticos aprisionados nas instituições psiquiátricas. Este pequeno desvio foi feito para ressaltar o quanto devemos ter cuidado com as palavras para que não sejam desconectadas de seu corpo e sua potência por meio de interpretações como estas apresentadas. Por fim, retorno ao Lacan de 1977, aliado a Deleuze e Guattari, para lembrar sua importante mensagem: “a psicose é aquilo frente a qual um analista não deve retroceder em nenhum caso”. Traduzimos esses dizeres como uma mensagem para dar fim ao juízo daqueles que insistem em achar que a psicanálise é uma prática avessa às psicoses e ainda para chamar a atenção, mais uma vez, de analistas, para que não deixem de afiarem suas escutas!
Isto posto, não se pode esquecer que os fluxos esquizos da esquizoanálise contribuem em nosso campo para uma psicanálise menor através de um devir-esquizoanalista. A clínica aliada à ética dos devires pode avaliar os graus, as forças, a pulsão. Torna-se um agir, um exercício nômade. Desse modo, podemos fabricar uma clínica como espaço de encontro e de afetos, como lugar da diferença, libertando as singularidades e sabendo que há um pessoal e um extrapessoal que nos habita. Uma psicanálise menor nos convoca a abrir as portas, criar a vida para além do impossível que se vê e produzir uma vida aliada ao real. Cabe ressaltar – para jamais esquecer ‒ que não se trata de tornar o psicótico um revolucionário, mas lembrar que, tal como os artistas, os psicóticos podem problematizar as dimensões do real.
Em rápidas leituras se vê um Guattari que se desloca totalmente da psicanálise, mas, na realidade, se ruminarmos um pouco mais, é possível verificar que este psicanalista e militante tomou seu caminho pelas periferias, foi fazer psicanálise nas margens, e assim pôde fabricar uma psicanálise menor.
Durante uma entrevista realizada com Peter Pál Pelbart, este último evoca uma importante memória de seus diálogos com Guattari, mencionando que, em 1990, perguntou a ele se não haveria um incômodo de sua parte por ainda permanecer ligado à psicanálise, ser nomeado como psicanalista no início das apresentações, e Guattari lhe respondeu que não deixaria a psicanálise para os psicanalistas que direcionava suas críticas, pois continuava habitando a psicanálise com sua dinamite, com sua estratégia. Portanto, destacamos seu nome, pois em nossa leitura atravessada pela esquizoanálise, é inegável que Guattari também fabricou uma metamorfose da/na psicanálise, o avesso do avesso, o verso e a poesia, possibilitando-nos, assim, continuar aliados ao movimento e a revolução extraordinária operada inicialmente por Freud.
Para finalizar, hoje podemos escrever mais uma página dessa história e começarmos a ler estes autores pelos problemas que ainda não foram resolvidos em seus trabalhos. Vamos permanecer construindo uma psicanálise menor através da radicalidade de tantas obras e dobras que nos inspiram a inventar continuamente essa psicanálise, sendo cabível abandoná-la somente quando não mais houver possibilidades de habitá-la. Entretanto, sua vitalidade permanece viva. Sua história é uma história de lutas, descontinuidades, aberturas e fechamentos, diferenças, disjunções e composições.
TEXTO PUBLICADO NO LIVRO: “PSICANÁLISE E ESQUIZOANÁLISE: DIFERENÇA E COMPOSIÇÃO“, organizado por Anderson Santos, 2022, n-1 edições.
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