A CLÍNICA COMO PRÁTICA POLÍTICA – por Jô Gondar

Certa vez, numa sessão de análise de grupo – prática comum durante os anos 70 e 80 – uma senhora muito distinta expressou ao psicanalista Hélio Pellegrino a sua preocupação com a fome do Nordeste, demonstrando pesar com o descaso da classe política brasileira diante do problema. Conhecido por seus artigos e ações contra a ditadura militar, Pellegrino interrompeu a paciente, taxativo: “Não estou interessado nas suas opiniões sobre o Nordeste. Quero saber é do seu Nordeste interior”.

Haveria neste comentário uma separação entre a clínica e política? Estaria ele indicando que a atividade política só poderia se exercer fora da clínica, devendo esta se restringir à resolução de conflitos individuais? Para o senso comum, e talvez para alguns psicanalistas, é justamente deste modo que as coisas se passam: de um lado teríamos os sofrimentos individuais, tratados pela psicanálise; por outro os sofrimentos coletivos, demandando a ação política. Ou, o que é mais grave: se crê que a prática psicanalítica tenderia a reforçar a divisão, ou reduzindo a vontade política a figuras edipianas, ou extrapolando para a esfera social problemas da intimidade familiar – baseando-se, por exemplo, na ideia de que os sujeitos revolucionários estariam atuando um conflito com o pai.

Reduzir o social ao Édipo ou engordar o Édipo fazendo-o abranger o campo social são procedimentos semelhantes. Mas o trabalho purificador, aquele que separa o sofrimento individual do coletivo ou o espaço clínico do sociopolítico, segue os mesmos princípios. Em todos esses casos, parte-se de uma cisão entre a economia desejante e a economia política. Ora, a intervenção de Pellegrino age justamente contra essa cisão: ela convoca uma paciente que se ocupa de questões políticas, mantendo incólumes as questões do seu desejo, a se confrontar com um terceiro mundo íntimo, a não separar o desejo da política. A fome e a pobreza não são assuntos de salão, nem temas exteriores à subjetividade. Trata-se sempre de uma mesma economia, na qual o desejo é político e toda revolta é desejante.

Há um primeiro vetor que faz da clínica psicanalítica uma prática política: o seu compromisso com o desejo. Este é o eixo da psicanálise, e não o Édipo ou o significante. O desejo não é algo que se busque lá atrás, na história de vida familiar, nem algo que se expresse unicamente através da palavra. Não é algo que esteja pronto, aguardando a descoberta, mas um Rubicão a ser atravessado, um espaço social e político a conquistar. Kafka escreve de forma revolucionária, segundo Deleuze e Guattari, porque é capaz de “encontrar seu próprio ponto de subdesenvolvimento, seu próprio patoá, seu próprio terceiro mundo, seu próprio deserto”¹. Desterritorialização e criação se conjugam na obra de Kafka, mas poderíamos dizer que também se conjugam, com mais ou com menos pujança inventiva, em qualquer processo desejante, individual ou coletivo. O que está em questão é a possibilidade de desejar a partir do próprio desapossamento. Não porque falte algo ao desejo, mas porque ao afirmá-lo somos lançados num jogo sem o suporte de qualquer regra prévia. Por este motivo, tentamos nos esquivar de uma afirmação desejante de maneiras diversas – às vezes sob a forma de uma preocupação política sem investimento libidinal, como num chá de senhoras. É porque lançar-se e afirmar o seu lance, sem a garantia dos códigos que protegem pela sujeição, desestabiliza os jogos de poder e as regras que os sustentam. Nesse sentido, as questões com as quais a clínica psicanalítica se defronta são inevitavelmente políticas, mesmo quando surgem no seio de uma família, numa escola ou numa relação amorosa: trata-se sempre do quanto e do como o desejo pode se produzir e se expressar diante das injunções de assujeitamento.

Mas a clínica também é uma prática política a partir de um segundo vetor. É que orientada pelo desejo, ela visa uma mudança. Um modo de ação e relação que pretende transformar a condição dos homens – eis uma definição que serve, ao mesmo tempo, para a clínica e para a política. É verdade que o exercício clínico ocupa uma pequena parte dos jogos de poder. Entretanto também é verdade que esses jogos se realizam, a cada instante, através de pequenas partidas. Neste sentido, pode se dizer mais rigorosamente que a prática clínica se realiza num plano micropolítico.

Etimologicamente, a palavra clínica remete ao ato de inclinar-se sobre o leito de quem sofre. Porém quem se inclina pretende curar, e uma cura, a despeito da diversidade de sentidos que lhe sejam atribuídos, jamais pode ser realizada de modo desinteressado ou neutro. Como nos lembra o etnopsiquiatra Tobie Nathan, “curar é um ato de pura violência contra a ordem do universo. E nenhuma terapêutica é mais violenta do que aquela que se dedica a curar a alma.”² De fato, quando o sofrimento reside na alma, na subjetividade, aquele que se inclina não o faz simplesmente para despojar alguém de suas dores, mas, principalmente, das estratégias de existência associadas a essas dores, engajando todo o ser daquele que sofre. Deste modo, uma cura é algo muito diverso de uma decupagem: para além da eliminação do sintoma ou do sofrimento, está em questão um novo modo de subjetivar-se.

Tomar parte na fabricação de uma outra maneira de viver não é desvelar verdades estabelecidas no passado. Bem mais que isso, trata-se de combater o sistema de crenças sobre as quais essas verdades se erigiram, para que outras crenças e outras escolhas se tornem possíveis. Muitas vezes, é preciso propiciar o surgimento do próprio registro da crença, da possibilidade de acreditar, principalmente quando o clínico se depara com indivíduos cuja estratégia existencial consiste em tomar a situação dada, presente ou passada, como uma fatalidade diante da qual ele nada pode fazer – uma estratégia da impossibilidade de escolha, ou, melhor dizendo, um modo de vida no qual o indivíduo escolheu não escolher. Investir em mudanças no campo subjetivo é combater práticas de assujeitamento que fecham ou esgotam o campo de possíveis, propiciando a criação de outros possíveis ou mesmo do próprio possível, quando o campo parece esgotado.³

É claro que este combate e esta abertura não se travam no plano individual. Um indivíduo solitário não produz por si mesmo uma mutação subjetiva, seja qual for o espaço em que isso se dê. No espaço clínico, esta mutação se processa num encontro, num entre-dois – não entre um indivíduo e outro, mas numa terra de ninguém – ou, em termos propriamente psicanalíticos, numa relação transferencial. Relação entendida como um campo de experimentações subjetivas, de acolhimento e combate, onde se violenta a ordem do mundo para criar, dentro deste mundo, um modo singular de existência. A transferência não implicaria simplesmente uma suposição de saber, nem tampouco atualizaria uma realidade inconsciente pré-existente; ela trabalharia para criá-la e extrair o máximo de consequências possíveis dessa criação, favorecendo, neste sentido, a reapropriação dos modos de produção da subjetividade.

Desejo e controle

Evidentemente, nem toda clínica, e nem mesmo toda clínica psicanalítica, é exercida ou, pelo menos, norteada desta maneira. Afirmá-la como prática política não significa dizer que ela é sempre revolucionária, e sim que ela é necessariamente comprometida. Hoje, mais do que nunca, o biopoder e a produção padronizada da subjetividade são as formas pelas quais o capitalismo globalizado busca se espraiar e se perpetuar. O trabalho sobre o qual ele se assenta é cada vez mais imaterial: agora a força de trabalho é extraída da alma, o que faz do capitalismo um modo de produção de subjetividade. A vida humana em sua dimensão mais íntima – saúde, sexualidade, reprodução, mas também afetos, percepções, sensibilidade – tornou-se um foco privilegiado das estratégias e dos cálculos do poder. Justamente por isso, as mudanças subjetivas que implicam, de fato, uma singularização – e não uma diferença rapidamente fagocitada pela lógica do mercado – aparecem como eixo de mudança e como núcleo de resistência política. Neste momento, as profissões que se interessam pelo discurso do outro e os lugares de experimentação subjetiva encontram-se, como escreve Guattari, “numa encruzilhada política e micropolítica fundamental. Ou vão fazer o jogo dessa reprodução de modelos que não nos permitem criar saídas para os processos de singularização, ou, ao, contrário, vão estar trabalhando para o funcionamento desses processos na medida de suas possibilidades e dos agenciamentos que consigam pôr para funcionar.”4

De uma maneira ou de outra, todos nós, clínicos ou não, estamos implicados em processos de produção subjetiva. A questão está em inventar modalidades clínicas de enfrentamento dos problemas políticos com os quais hoje nos deparamos, construindo saídas para a singularização num momento em que o socius trabalha, mais fortemente do que nunca, para esvaziar o potencial desejante das subjetividades, o seu potencial de crítica e de revolta. O mercado mundial demanda indivíduos maleáveis, fluidos, rapidamente adaptáveis às mudanças, para que não se criem obstáculos ao rolo compressor da nova ordem. Negri e Hardt falam do Império como um poderoso vórtice, “uma espécie de  espaço liso pelo qual deslizam subjetividades sem resistência ou conflito substanciais.”5

Num primeiro olhar, o que a clínica contemporânea nos oferece são mostras incisivas deste alisamento: os indivíduos padecem sem fazer de suas dores uma questão sobre si próprios ou o que os cerca, sofrem com a invasão de sensações e sentimentos que não sabem nomear nem detectar porquê e de onde vêm, dificilmente afirmam um desejo ou o endereçam a algo, e muitas vezes respondem à invasão de afetos com passagens ao ato sem mediações ou intervalos de elaboração. O existir é por eles experimentado como solidão e desamparo diante de uma fatalidade inexorável, com a qual se confrontam sem qualquer mediação: “é assim, e não há nada a fazer.” Como então exercer hoje uma clínica combativa, comprometida com o desejo, quando justamente o desejo parece ter saído do combate?

Contudo, um sintoma ou um sofrimento subjetivo não deixam de ser uma denúncia de que a produção de uma subjetividade padronizada falhou em algum lugar. A máquina emperra, vaza, ou se desgoverna. Sem dúvida, a nova ordem se alimenta dos desequilíbrios, modulando-os e controlando-os para se reequilibrar, como um funâmbulo numa corda bamba – e a sofisticação crescente da indústria de medicamentos e das classificações psiquiátricas que a legitimam são um exemplo de sua capacidade de inclusão do desgoverno. Mas, e o desejo? Nenhuma DSM o considera, e sobretudo na última – DSM IV– mesmo a dignidade do sofrimento desaparece em função de um porte dessubjetivado de transtornos: para a American Psychiatric Association, ninguém mais sofre de neurose obsessiva; ao invés disso, torna-se um portador de TOC (transtorno obsessivo-compulsivo), categoria bem mais fluida e descomprometida, já que quem o porta pode facilmente, com a medicação adequada, deixar de portá-lo. A psiquiatria medicamentosa não visa a cura, e sim a eliminação do transtorno.

Todavia, um sintoma não é um transtorno, não é um problema; é, de fato, uma tentativa de solução, uma estratégia de existência diante de problemas colocados para um sujeito que pôde, de algum modo, percebê-los, mas que talvez não tenha encontrado palavras ou ações mais afirmativas para enfrentá-los. Nesse sentido, um sintoma ou um modo de sofrimento podem ser vistos como tentativas de traçar linhas de fuga, como formas particulares de criar derivas ante os imperativos universais ou, em suma, como uma possibilidade de resistência aos projetos homogeneizadores. A partir dessas brechas, desses intervalos de liberdade que o sofrimento instaura, pode-se exercer, na clínica, um trabalho de subjetivação.

Mas essas brechas se modificam. Não se sofre nem se resiste hoje como no início do século, quando a psicanálise surgiu. Freud tomou como paradigma dois modos de subjetivação – a histeria e a neurose obsessiva – cuja produção sintomática se pautava no desafio (histeria) e na transgressão (neurose obsessiva) endereçados às instâncias de poder. O sofrimento ganhava então a forma de um conflito psíquico – entre eu e inconsciente, eu e outro, lei e transgressão, desejo e imperativos morais. Uma lógica que, segundo Eherenberg, seria tributária das sociedades disciplinares: “O homem do conflito relacionava-se com um fora que lhe era superior, estava submetido a uma lei e a uma hierarquia fortes, seu corpo docilizado pelas disciplinas”.7 Este modo subjetivo ainda existe, mas tem perdido terreno para outras estratégias existenciais. Para haver conflito, é preciso delimitar os lugares e circunscrever a seara do inimigo – seja um patrão ou uma classe, uma autoridade simbólica ou uma instância psíquica recalcante.

Isso não ocorre nos modos de padecimento cada vez mais presentes na atualidade. Nas compulsões, no pânico, nas disposições depressivas e nos fenômenos psicossomáticos os fluxos afetivos deslizam de um ponto a outro desconhecendo fronteiras que os organizem em oposições; o funcionamento subjetivo se fragmenta e dispersa, e a economia psíquica não mais se regula por instâncias limitadoras ou intervalos de elaboração. O que nos leva de volta à questão colocada mais acima: que outras formas de resistência se forjam nestes novos modos de sofrer? Neste controle a céu aberto, onde encontrar brechas para exercer um trabalho clínico? Por onde passaria o desejo?

Tomemos como exemplo as compulsões – por comida, drogas, álcool, etc. Estes indivíduos não ingerem por prazer ou desejo; eles obedecem a um comando imperioso que os impele sofregamente a agir, sem que se interponha, entre a ordem e o ato, um intervalo de tempo, uma zona de indeterminação, um momento de escolha. Este comando é um imperativo categórico, no sentido kantiano: a ordem se impõe de maneira totalizante, desconsiderando as inclinaçoes subjetivas particulares, os prazeres ou as posições de desejo. É preciso agir a qualquer preço, para além de toda escolha singular que poderia fornecer a esse ato uma consistência desejante. Neste caso, não estamos mais diante de um imperativo disciplinar, visando o adestramento do excesso ou a regulação do desejo, mas de um imperativo de controle que incita e se alimenta da desterritorializaçao permanente. A transgressão aqui se torna impossível, já que todo desregramento termina por nutrir a instância ordenadora. Acossado por este carrasco íntimo que não lhe deixa brechas ou possíveis, o indivíduo é conduzido a práticas auto-destrutivas.

À primeira vista, os funcionamentos compulsivos parecem uma produção direta do poder, exemplos máximos do acachapamento de singularidades ao qual nos encontramos todos expostos. Os compulsivos seriam indivíduos impossibilitados de escolher ou, de outro modo, indivíduos que não conseguem contrair possíveis. Há, contudo, uma escolha que por eles foi feita: a escolha de um modo de padecer, com sua parcela de protesto e de denúncia. A cada época e a cada sociedade correspondem formas de sujeição e formas de resistir ao assujeitamento. Elas não podem ser separadas, assim como a flanerie de Baudelaire é impensável sem os aglomerados urbanos da modernidade. Da mesma maneira – ou melhor, de maneira diferente – as compulsões são tentativas de singularização, ainda que sob uma forma inusitada…

Agir a qualquer preço é um imperativo de controle que não se impõe apenas aos compulsivos. Estamos imersos numa cultura da iniciativa, na qual os indivíduos são maciçamente convocados a distinguir-se por seus atos individuais sem que o socius lhes forneça tempo ou referenciais subjetivos para fazê-lo. Instado a agir de qualquer maneira, por sua própria conta e a partir de um território existencial precário, o indivíduo jamais se sente à altura do que lhe é exigido. Ora, o que fazem os compulsivos é exibir o potencial suicida da proposta, estendendo sua implementação ao último grau da lógica. Vivemos numa economia do excesso? Os compulsivos estão sempre dispostos a esticar a corda um pouco mais. Estamos submetidos a um imperativo impossível de ser cumprido? Os compulsivos fazem dele o motor do seu movimento. Exacerbam um dispositivo para constituir sua estratégia de resistência, como se uma transformação só pudesse se dar pela extremidade da forma. De fato, esses indivíduos fazem mais do que obedecer cegamente a um imperativo de controle; é justamente por levá-lo às últimas consequências que eles se tornam incontroláveis. Resistem às injunções amplificando a sua lógica e instaurando uma hiperbológica, para utilizar a expressão de Lacoue-Labarthe: “a lógica da troca indefinida entre o excesso de presença e o excesso de perda, a alternância da apropriação e da desapropriação”.8 Buscam assim extrair, da própria violência de uma ordem, o seu momento de virada.

Qual a política na clínica, hoje?

Não se trata aqui de fazer o elogio de uma linha de fuga suicidária. Se o compromisso da psicanálise é com o desejo, não há como compactuar com a auto-destruição presente nesta forma de deriva. Entretanto, uma linha de fuga, qualquer que ela seja, é sempre uma tentativa de singularização. A questão não seria a de combater a linha de fuga em si mesma, impondo limites ao que se encontra desgovernado, tentando, talvez, fazê-lo recuperar o governo pelo retraimento da deriva. A questão tampouco seria a de produzir um recalcamento ou um conflito onde ele não ocorre, ou, em suma, a de estabelecer marcações ou fronteiras num espaço liso, visando transformá-lo num espaço estriado. Seria inútil, no plano clínico e político, buscar o retorno de um modo contemporâneo de subjetivação às suas formas modernas, como se pudéssemos, através da reinstauração da disciplina, combater imperativos de controle.

Neste ponto, é importante precisar o adversário: a luta é contra os imperativos, e não contra as linhas de fuga que dele tentam se esquivar. Se nos contrapomos a estas, fechamos a única possibilidade de escape vislumbrada por aquele que sofre. A acolhida do sofrimento é, assim, concomitante ao esvaziamento dos imperativos. Combatê-los implica criar um campo de possíveis no sufocamento a céu aberto que os pacientes vivenciam, seguindo mais adiante pelas pistas que seu próprio sofrimento indica.

Mas o que quer dizer, nesse caso, ir mais adiante? Significa fornecer uma escuta e um olhar atentos para que a tentativa de singularização expressa numa modalidade de sofrimento – mesmo se auto-destrutiva – possa transformar-se numa alternativa consistente. Com efeito, ao hiperbolizar a lógica vigente, o compulsivo age nas possibilidades que lhe são dadas, mas não cria outras possibilidades. Ele resiste levando às últimas consequências os possíveis existentes, sem, contudo, inventar um possível para si mesmo. Desse modo, seu intento de traçar uma linha de fuga se mantém no plano do protesto e da denúncia, porém não chega à criação de um modo de vida: a resistência às injunções se faz por um vetor agressivo que retorna sobre o próprio indivíduo.

E contudo há aí uma escolha – por um modo de sofrer e resistir, ainda que não exitoso. Aliás, aqueles que lidam com compulsivos não deixam de notar a enorme potência vital que esses indivíduos dispõem: é preciso ter muita energia para escolher passagens ao ato como estratégia existencial. Esta escolha é um sinal de vida, sem dúvida aflito e aturdido, mas mesmo assim um índice de que a condição desejante se mantém, a despeito da violência dos imperativos. Nesse caso, o acolhimento e as intervenções do psicanalista precisariam ir além da mera escuta de palavras ou da produção de interpretações. Os pacientes contemporâneos expressam uma revolta que ainda não encontrou suas palavras,9 motivo pelo qual as interpretações que buscam desconstruir significados tornam-se inócuas, quando não perigosas. As intervenções desterritorializantes e o encurtamento do tempo das sessões trabalhariam, de fato, a favor do fortalecimento dos imperativos de controle. Ao invés disso, seria preciso apostar nas chamas de vida, nos lampejos desejantes que muitas vezes brotam em pequenos gestos, mudanças na tonalidade do olhar e da voz, agindo mais diretamente no campo pulsional.

Trata-se de construir um território a partir do qual o indivíduo possa experimentar sua capacidade de crer – não apenas em alguém, mas em si mesmo, na legitimidade de suas percepções sobre si e o entorno, e naquilo que o singulariza. Esse território se constrói no encontro transferencial. Em sua dupla vertente de acolhimento e combate, a transferência se torna um campo de experimentação de signos e afetos, de discriminação de sensações e, sobretudo, de espera. É preciso haver tempo para que os ínfimos lampejos desejantes possam encontrar uma chance de expressão, articulação e reconhecimento. São essas fagulhas que o trabalho clínico procura reverberar e fazer persistir, permitindo que o desejo ganhe mais densidade e consistência. Nenhuma montagem a priori sustenta este trabalho; ele é tático, processual, exercido no próprio movimento, abrigando e aproveitando as menores oportunidades de ativação do desejo.

O que significa curar, hoje? Não significa, evidentemente, combater a estratégia de resistência de quem sofre, pois esta estratégia lhe permite manter-se desejante. Curar é seguir adiante nessa possibilidade mesma, dando-lhe um pouco mais de ar, para que uma vida que resiste pelo sofrimento possa inventar, no mundo e contra o mundo, o seu próprio modo de ser.

______________________

NOTAS 

[1] Deleuze, G. e Guattari, F. Kafka. Por une littérature mineure. Paris: Minuit, 1975, p.32.

[2] Nathan, T. L´influence qui guérit. Paris: Odile Jacob, 1994, p.13.

[3] A idéia é de Deleuze. Ver, por exemplo, L´épuisé, que se segue a Quad et autres piéces pour la télévision, de Samuel Beckett. Paris: Minuit, 1992.

[4] Guattari, F. e Rolnik, S. Micropolítica. Cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986, p.36.

[5] Negri, A. e Hardt, M. Império. Rio de Janeiro/Sao Paulo: Record, 2001, p.218. Cabe acrescentar que Negri e Hardt assim descrevem um primeiro momento do controle imperial, o da incorporação das diferenças. Num segundo momento, o Império afirma as diferenças aceitas em seu domínio para, em seguida, administrá-las e hierarquizá-las.

[6] A DSM é um manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais elaborado pela American Psychiatric Association em 1952, tornando-se desde então a referência para a classificação dos distúrbios mentais no campo da psiquiatria. Este manual sofreu revisoes em 1968 (DSM-II), 1980 (DSM-III) e 1994 (DSM-IV)

[7] Ehrenberg, A. La fatigue d´être soi. Dépression et societé. Paris: Odile Jacob, 1998, p.234.

[8] Lacoue-Labarthe, P. A imitação dos modernos. Ensaios sobre arte e filosofia. Sao Paulo: Paz e Terra, 2000, p.203.

[9] Ver Kristeva, J. Sentido e contra-senso da revolta: poderes e limites da psicanálise. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

Jô Gondar é filósofa e professora da Uni-Rio.

Texto publicado na revista LUGAR COMUM Nº19, pp. 125-134, 2009.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima