CASO CLÍNICO: A GATA DE SCHRÖDINGER – por Radmila Zygouris

Olhar o céu é minha atividade preferida. Desde sempre o céu esteve na origem das nossas questões essenciais. Morada mítica dos deuses, como Vênus e Marte — casal infernal das nossas vidas cotidianas —, ele continua sendo, até os dias de hoje, o berço de nossos pensamentos sobre as nossas origens e o lugar de conjecturas científicas. É, ainda hoje, nos astros que se reúnem as questões sobre o infinitamente grande e o infinitamente pequeno, a física determinista de Newton, a relativista de Einstein e a probabilística de Niels Bohr. Mas é preciso que eu retorne à terra para escrever um texto sobre a clínica psicanalítica.

Como transição eu tomarei Winnicott, um dos analistas menos dogmáticos, inventor das áreas transicionais e do jogo. Então eu me permitirei tomá-lo, ele mesmo, como transição, não entre uma mãe e eu, mas entre o céu dos mitos antigos e modernos e os mitos da psicanálise. Winnicott dizia que as pessoas que observam o céu o tempo todo, para ler nele o tempo que fará, tiveram mães de humor imprevisível, e que, assim, adquiriram o hábito de prever nos olhos de suas mães seu humor futuro. É uma bela ideia, talvez ela seja verdadeira em alguns casos, mas ela pode também ser o exemplo de certas reduções praticadas pelos analistas, que consistem em confundir uma metáfora com uma causa real. Trata-se de um mau uso da atribuição das causas: isso tranquiliza, mas abre alas para simplificações lamentáveis. Os humores da mãe fazem parte disso.

Serei direta: sinto-me cada vez menos à vontade frente às afirmações “causalistas” na psicanálise.

Na teoria e na prática ela se baseia numa lógica determinista dos efeitos cujas causas se infere, e de causas que produzem efeitos. Raramente os analistas se lembram de que vivemos em um mundo probabilístico. Não basta constatar a anterioridade de um evento com relação a outro para deduzir uma causalidade. Raros são aqueles que levam em conta as probabilidades; e, quando uma mudança acontece no curso de uma análise, eles muito frequentemente a imputam a uma de suas “interpretações” ou a um acontecimento da infância. Quanto mais isso acontece, mais sou persuadida de que esse determinismo clássico é insuficiente e promove um pensamento simplista. Estou cada vez menos convencida da precisão das “causas” evocadas para explicar esse ou aquele comportamento, sintoma ou sofrimento. A infância infeliz e os traumas de família são terrenos propícios, fatores importantes, mas raramente causas únicas de uma patologia. Minha dúvida se refere também a tudo o que se diz sobre os efeitos de uma interpretação, esquecendo que o analisante passa, na transferência, por momentos de submissão amorosa em que ele faria qualquer coisa para dar razão à crença de seu analista. E o faz de modo a confortar seu analista em suas crenças teóricas como uma criança que cuida de uma mãe delirante. O analista pode dizer qualquer coisa e o analisante vai se arranjar para lhe dar razão.

Parece-me urgente reconhecer o mundo probabilista no qual vivemos e introduzir essa maneira de pensar no aqui e agora das sessões. O gato de Schrödinger assombra os consultórios dos analistas que fingem ignorá-lo. Cabe a nós aceitar suas incursões em nossos territórios demasiadamente fechados; a nós, abolir os muros de proteção erguidos por nossos raciocínios causalistas — e ainda por cima inúteis. A sequência desse texto será “clínica”, como prometido, mas peço que o leitor não se esqueça desse preâmbulo.

A menina pedófila

Ela tinha um ar de garota bem comportada. Seu rosto denotava uma certa candura, e seu sorriso era o de uma criança. Mas não era uma criança, era uma jovem mulher de vinte e cinco anos, aparentando bem menos, que tinha um quê de doce e inocente em seu rosto.

Sua primeira frase soou como um trovão em um céu azul: “Eu venho porque sou pedófila”.

Eu tive vontade de rir. De nervoso? Essa frase saía da boca de uma criança, um pequeno anjo loiro, ela mesma um sonho de pedófilo. Eu disse “desculpe?”. Ela especificou: “eu tenho medo de ser pedófila e isso me angustia terrivelmente”. Não, ela não era a vítima de um malvado pedófilo, não; ela temia sê-lo, ela mesma. A ideia me parecia absurda ao vê-la. Mas ela falava com seriedade e parecia realmente angustiada.

Estaria ela delirando? Eu rapidamente expulsei essa ideia por ser inútil e nociva para a relação que viria se estabelecer, além de falsa. Ela tinha mais o ar de uma menina angustiada. De uma angústia não contagiosa, como acontece em certos casos de perda de realidade. Contudo, o colega que a tinha me encaminhado havia falado explicitamente em psicose. E mais… qualquer que fosse o diagnóstico que tivesse se imposto em minha cabeça, eu o teria mantido em reserva, de qualquer maneira. A jovem em minha frente me inspirava simpatia e certa emoção face à estranheza de sua inquietação. Desde que a ideia de sua eventual pedofilia se impôs em sua cabeça, ela quis consultar um psiquiatra. Seu medo de ficar louca era grande. Após algumas entrevistas, esse primeiro psiquiatra, ele mesmo analista, a mandou para um outro analista não médico para uma análise, indicando a este a possibilidade de uma psicose.

Foi então esse segundo analista que me a encaminhara, dizendo: “É um caso pesado demais para mim. Eu a atendi por seis meses, mas eu não entendo nada, e também estou com problemas pessoais neste momento e não tenho a disponibilidade necessária, nem a energia para uma história tão difícil. E mais, é melhor que ela vá ver uma mulher”. E por que não uma feiticeira — pensei com meus botões, frente a esse colega tão certo em convocar “a mulher”. Ou a curandeira?

Um caso pesado? Eu não o sentia assim. Mas vai que ficasse… Não aconteceu, apesar de suas queixas e de suas angústias fortes. Ela esperou vários meses antes de me procurar. Ela tinha hesitado em se confrontar de novo com um novo analista; precisara de uma longa pausa depois de sua primeira desventura analítica. Estava também um pouco chateada por ter sido mandada embora sem compreender por que, mas também aliviada de não ir mais às sessões “do doutor”, sessões em que ela sempre se sentia desconfortável.

Chamou-me a atenção o fato de que, quando falava de seu terapeuta anterior, sempre o chamava de doutor. Eu apontei que ele não era um médico — o que ela já sabia — mas, para ela, ele era um médico, assim como o anterior. Ela chamava tanto um como o outro, indistintamente, de “o doutor”. Ela nunca dizia seus nomes. Eu acabei tendo comigo que era normal, “chumbo trocado”: para eles, ela era uma “psicótica”; para ela, eles eram os “doutores”. Eles não mereciam outra coisa. Desse modo, ficava-se na mesma categoria semântica, a da medicina, da técnica — aquela em que ela era “o caso”, e eles, as pessoas normais adultas, responsáveis e distanciadas. E, sobretudo, alheios ao pensamento em que observado e observador, escutado e escutador, estão interconectados e podem formar uma entidade interdependente e cuidadora. Em medicina, “o caso” é o outro; em psicanálise, “o caso” é o um e o outro. Mas não somente em análise.

Falando de mim, ela dizia “minha psi”, com mais acento sobre o possessivo “minha” do que sobre a denominação “psi”. De qualquer maneira, o termo psi ficou banal, hoje em dia ninguém se preocupa mais com as sutis distinções entre psicanálise e psicoterapia. Exceto os psicanalistas. Os analisantes ou pacientes querem melhorar, é tudo. Ela não fazia questão de fazer uma psicanálise, ela queria era se livrar da sua angústia de ser pedófila. Havia me adotado, confiava em mim e podia falar sem pudores. O resto tanto fazia. Ela tinha, todavia, ouvido falar do divã. Isso ela não queria, lhe dava medo. Eu nunca insisti para que ela se deitasse.

Vou chamá-la de Marie. Aqui vão alguns elementos de sua história: seus pais se separaram quando ela tinha seis anos. Ela tinha uma irmã dois anos mais nova. O pai sempre afirmou que a segunda filha não era dele, mesmo que a mãe sempre afirmasse o contrário. Ela jurava que nunca tivera um caso enquanto estava com o marido, coisa que, no final das contas, se mostrava mais crível que as fantasias de seu ex-marido. Minha paciente acreditava na mãe dela. A irmã, aliás, era a cara do pai, que se recusava, contudo, a recebê-la nos finais de semana — e fingia ter uma filha só, a mais velha. Marie suportava mal a injustiça feita com a irmã.

Os pais logo se casaram de novo, cada um pro seu lado. O que faz parecer que o divórcio veio em boa hora, tanto para um como para o outro. Eles mantiveram relações muito polidas, até mesmo amigáveis, e para Marie isso aconteceu da melhor forma. Para sua irmã, menos, por causa da rejeição extrema desse pai. Marie se esforçara muito para que o pai parasse de ter essas ideias “delirantes” sobre a segunda filha, e por fim conseguiu convencê-lo. Com o passar do tempo ele acabou aceitando-a de férias junto com Marie, e a tratava como sua verdadeira filha. Pode-se perguntar de onde veio essa suspeita e qual relação essa história tinha, se é que tinha alguma, com o sintoma de Marie. Eu não insisti, uma vez que a relação da irmã com o pai melhorava rápido graças a Marie. Eu achava também que o pai, sabendo que ela estava indo ver “alguém”, sentia-se observado e não podia se mostrar em seu pior ângulo.

Marie tivera uma escolaridade média, sem grandes questões, e fizera estudos de história e arte. No momento em que chegou a mim, preparava seu trabalho de fim de curso sobre um tema que a interessava. Ela tinha uma personalidade e humor estáveis, e não havia conhecido a angústia (ao menos conscientemente) antes dessa história de “pedofilia”.

Sua angústia de ser pedófila apareceu subitamente depois de um incidente que ela me contou com dificuldade. Ela associava pouco, angustiada demais para se soltar, apesar de sua confiança;  limitava-se, no mais das vezes, a falar de seus medos irracionais.

A cena inaugural

Como é que esse medo lhe veio? Rapidamente ela pôde estabelecer um cenário. Desde o começo dos seus estudos universitários ela ganhava a vida cuidando de crianças. Foi assim que ela cuidou, durante dois anos, de um menino de quatro anos, na casa de um jovem casal que trabalhava até tarde da noite e que tinha relações muito boas com ela. Dizia que gostava muito dessa criança e que se dava bem com ele. Ela gostava de brincar com ele, ia com ele à praça, e o levava para ver marionetes. À noite ela preparava seu jantar, o colocava na cama e contava histórias enquanto esperava os pais chegarem. Às vezes ele era um pouco difícil, mas nunca virou um problema. Ela se lembra de apenas uma vez em que lhe deu uma palmada porque ele estava insuportável e muito agitado. Ela imediatamente se sentiu culpada de ter se excedido e contou para os pais, se desculpando. Eles a tranquilizaram dizendo que não era grave, que eles também já haviam dado uma palmada quando ele não queria se acalmar.

O tempo passou, ela nunca mais ficou tentada a dar uma palmada no menino. E depois, um dia, muito tempo depois desse episódio, enquanto passeava com ele, ela viu uma mãe dar uma palmada em sua filha, uma palmada que ela considerou muito violenta. A menina chorou muito e parecia sentir dor. Ela não interveio, e rapidamente se afastou. Mas isso foi o suficiente para que a visão dessa cena provocasse nela uma angústia muito grande. Ela se perguntou se havia feito a mesma coisa com o menino quando lhe havia dado a palmada. Pouco a pouco, uma dúvida sobre o seu próprio comportamento em relação a todas as crianças de quem ela se ocupava como baby-sitter se instalou, e a torturava.

Após a visão dessa cena ela voltou para casa com o menino e, na mesma noite, quando os pais chegaram, pediu demissão dizendo que não podia mais dar conta desse trabalho. Os pais ficaram surpresos e decepcionados, porque gostavam muito e tinham confiança nela. Apesar da insistência, não puderam fazer nada frente à sua determinação em sair. Ela não pôde lhes contar a verdadeira razão de sua demissão. Depois disso, nunca mais quis cuidar de crianças. Ela não entendia o que havia acontecido… mas eu sentia que ela ainda não havia dito tudo. Eu disse a ela que um pedófilo não dava simplesmente uma palmada… ainda que forte… que ele tinha, sobretudo, um prazer pessoal.

Foi pouco a pouco que pude desdobrar a cena em que ela havia tido o pico de angústia. Desde essa visão na rua ela teve pensamentos cada vez mais frequentes, imagens que poderíamos dizer obsessoras. Ela via, e às vezes “se” via maltratar crianças, crianças que sofriam…

Com o tempo conseguiu falar mais sobre isso. Era muito difícil para ela. O difícil era decompor o afeto angústia. Nomear a angústia parecia lhe bastar. Mas, com o tempo, eu pude escutá-la dizer que havia “meio que outra coisa” intricada à angústia. Ela pôde conceber a ideia de que seu “pico” de angústia tinha sua parte de excitação sexual. Sem dúvida era essa excitação que ela havia percebido na mãe. Essa “outra coisa” era de ordem erótica, justamente. Em suma, uma excitação para ela. Mas ela não tinha só dificuldade em nomeá-la, também tinha dificuldade de isolá-la de um sentimento de invasão pelo medo e uma desorganização do seu pensamento. Até o momento em que lhe veio à cabeça o termo “pedófila”. “Eu sou pedófila”,  ela disse pra si bruscamente um dia. Essa denominação a aterrorizava, mas de vez em quando a acalmava, dava um sentido à sua angústia. Isso não evitava o pé d’água, mas ela tinha um guarda-chuva pra ser proteger um pouco.

A invasão pela angústia era canalizada pela palavra “pedófila”, que recobria e permitia evacuar a tormenta do afeto. Ela evacuava a erotização e a angústia em proveito de um sentimento mais calmo de culpa. Mas o apaziguamento que essa culpa lhe proporcionava dava lugar a uma nova angústia, de se ver confrontada a uma outra criança e à emergência de novas imagens insuportáveis. Cada saída tornava-se problemática. Foi assim que, pouco a pouco, pude ter acesso a isso que se apresentava de início como um simples medo fóbico. Tratava-se da emergência incontrolável de imagens eróticas e de emoções sexuais nela, logo que uma criança entrava em seu campo de visão. Às vezes as cenas de tortura podiam se formar em uma fração de segundos, deixando-a sem ar. Ela tinha interrompido toda e qualquer atividade de baby-sitter, e tinha confessado a seu companheiro, ainda que de um modo amenizado, seus medos e suas imagens obsessoras. Porque isso se tornava incômodo em sua vida cotidiana. Para dar um exemplo: seu companheiro tinha um irmão que acabara de ter um bebê, ela havia tido, nessa ocasião, de lhe confessar que seu medo de fazer uma visita à família dele ligava-se ao medo de se ver invadida por essas imagens diante do bebê. Ela havia me perguntado o que fazer, eu lhe disse para ir acompanhada de seu namorado, que estava a par, e cuja presença a protegeria. E esse foi o caso. Ela conseguiu fazer a visita à jovem mãe e até pegar o bebê no colo por alguns instantes, sem que isso desencadeasse seus demônios interiores. Afora esses “medos” de se ver diante de uma criança, sua vida era normal, seus estudos iam bem e ninguém, fora seu companheiro, suspeitava de suas dificuldades. Ela tinha até mesmo falado com a mãe dela na esperança de recolher informações sobre a sua primeira infância, quando alguma coisa podia ter se produzido. Sua mãe, com quem ela tinha boas relações, sentia muito pela filha, mas não via nada no passado que pudesse ser uma informação útil.

No trabalho de análise eu não encontrei nada na sua infância, nem em seus antecedentes, que pudesse dar uma pista levando a um itinerário pedófilo em sua história, nem um acontecimento que provocaria tais fantasias… Salvo uma lembrança de medo.

Lembrança-encobridora, sem dúvida, da qual nós, contudo, não pudemos tirar nada de especial, exceto o fato de que ela a tenha contado na transferência. E talvez isso tenha lá a sua importância.

Uma lembrança de medo

Pouco antes da separação dos pais, ela tinha seis anos, a família havia se mudado porque o pai aceitara um novo trabalho. Por isso se instalaram em um local isolado, no meio de uma zona industrial, deserta à noite. Ela voltava sozinha da escola no fim do dia e tinha de esperar a mãe em um grande apartamento meio vazio. A mãe tinha de buscar sua irmã mais nova em outra escola e chegava em casa um pouco depois dela. Essa espera nunca demorava muito tempo, mas dessa espera, quando ela estava sozinha — sobretudo no inverno, quando a noite caía muito cedo —, ela guardara uma lembrança de medo. Medo de quê? Ela não sabia, provavelmente de um homem malvado, de ladrões ou de uma intrusão qualquer. Esse período não durou muito tempo, porque logo depois seus pais se separaram e todo mundo se mudou.

Havíamos buscado, primeiro, se alguma coisa podia ter ocorrido na realidade; ela havia perguntado a sua mãe, mas nada pôde ser recuperado.

Aqui deveriam se situar as pesquisas sobre as causas, seja na realidade, seja na fantasia. Aqui podem ser feitas hipóteses sobre a estrutura da fantasia, dos medos arcaicos, dos acontecimentos recalcados da primeira infância e então voltando à tona quando dessa mudança e da proximidade da separação dos pais, de eventuais acontecimentos traumáticos familiares ou transgeracionais, de fantasias eróticas de adultos próximos etc.. Ou, ainda, um estudo da formação desse sintoma histérico… e de seu recurso ao saber médico, ao mesmo tempo em que o recusa.

O medo de uma intrusão de um homem enquanto ela estava sozinha e esperava sua mãe chegar pode perfeitamente ser uma lembrança-encobridora que recobre uma vivência edipiana precoce impossível de representar… etc.

O que poderíamos encontrar que pudesse dar uma pista em direção a seu receio de ser pedófila ou de ter abusado sadicamente de uma criança confiada a ela? O que a visão dessa mãe batendo em seu filho na rua tinha “desvelado” dela? Pensamos inevitavelmente em “bate-se numa criança”; pensamos nela mesma projetada nessa menina agredida, mas se defendendo disso e se identificando ao agressor — e até mesmo ao gozo do agressor, à mãe cujo sadismo ela percebera. Era isso, então, a pedófila? A mãe pedófila? Muitas outras hipóteses me vieram à cabeça. Mas nenhuma pista tomava a direção de uma certeza, nem pra mim nem pra ela. Tudo podia ser plausível e nada mudava o curso das coisas, e nada parecia ter um impacto sobre sua angústia atual e nem agia sobre sua angústia de se expor à presença de uma criancinha.

Um evento aleatório

Um dia ela me perguntou diretamente a questão: “eu sou pedófila?”. De um modo igualmente direto e imediato eu a respondi com firmeza: “Não!”. O que essa pergunta queria dizer? Eu sou anormal? Eu sou louca — esse termo voltou diversas vezes como um medo. Ou ainda: “alguma coisa dessa ordem me aconteceu sem que eu saiba?”; ou: “eu sou perversa?”; ou, simplesmente: “implique-se na minha questão”. E o que queria dizer a minha resposta rápida e tão segura? Ela me veio de sopetão e não posso pretender uma reflexão cuidadosa. Minha resposta revelava mais um pensamento-relâmpago próprio à iluminação ou a um insight, mas também próprio a uma convicção íntima. Eu não podia demonstrar. Em todo caso, sim, isso me implicava. Sabendo, por outro lado, que “isso não se faz” em uma análise. Um “verdadeiro” analista não dá respostas tão diretas a uma pergunta. Não estava nem aí. Faz séculos que não pratico sob esse dogma. Mas ainda assim minha rapidez tinha me surpreendido.

Eu posso, de qualquer maneira, afirmar que foi um ponto de mudança de nossos encontros. A partir disso, a partir desse “não”, suas angústias desapareceram.

O ‘não’ que pronunciei veio espontaneamente. Ele é da ordem disso que chamo de nível do “dizer” que não é aquele da interpretação. Que ele tenha efeito de interpretação vem como acréscimo. Ao que é que eu disse não? Ao diagnóstico feito pelos “médicos”? Ao seu jogo com as palavras em voga? À sua maneira de se meter medo? Em todo caso eu disse não à redução de suas angústias a uma categoria da psicopatologia; eu disse não à sentença de morte de uma subjetividade; eu disse não a todo um mundo de pensamento “causalista” que pretende curar o efeito encontrando a causa; eu disse não a seu medo de ser anormal.

Que a psicopatologia tenha uma razão de existir é uma coisa — ela dá de comer a uma cambada de professores; ela ocupa muitos estudantes; ela dá satisfações intelectuais; ela permite que os pais tenham orgulho dos filhos quando eles obtêm os seus diplomas; ela permite ser contratado em instituições, receber um salário segundo um critério objetivo e um mérito universitário; ela permite também refletir sobre as interações entre o saber de uma época e a submissão inconsciente de certos indivíduos que emprestam seus corpos aos saberes constituídos; ela dá um valor de mercado e prestígio às universidades; ela mantém a ilusão de que a ciência psicológica e psicanalítica estão progredindo; ela mantém, sobretudo, a ilusão de que existe uma ciência que explica a insensatez de nossas vidas, os sofrimentos que se repetem, ao invés de se deixarem esquecer como gostaria a sabedoria popular; ela permite nunca sair das infâncias incompreendidas —, mas em nenhum caso ela permite curar o que quer que seja do sofrimento de ser aquilo que se é, ou de ser tido por aquilo que não se é…

Mas, ao mesmo tempo… quantas pessoas se sentem aliviadas em aprender que ao seu mal corresponde um nome, uma doença que especialistas, psiquiatras, psicólogos e psicanalistas estudam e tentam dominar? E quem diz ‘doença’, diz ‘saber’ e ‘esperança de uma cura possível’, diz que existem outros sofrendo do mesmo mal, o que permite à pessoa assim nomeada, até estigmatizada, entrar em uma comunidade virtual, não estar mais só. Outra hipótese: dar um nome da psicopatologia, a saber, “pedófila”, permite conter a angústia suscitada por um momento de confusão sexual provocada pela visão de uma mãe estapeando seu filho e o desejo de ser essa mãe. Essa nomeação a tiraria da solidão dessa excitação clandestina e culposa. Porque existe um nome é que há outros como ela. “Sou isso, logo existo”. Logo existo na época atual. Pois a pedofilia, que existe desde sempre, é, enquanto doença — da qual se fala na televisão —coisa que surgiu recentemente. Ela está em todos os jornais, em todos os tribunais e, portanto, em todas as existências.

Meu “não” a pôs pra fora desse grupo imaginário de pedófilos, ele a desligou desse pertencimento imaginário. Isso a deixou sozinha diante de mim, diante da sua vida, do seu passado e do seu presente. Isso, sobretudo, deu um peso à nossa coexistência no presente; havia alguém diante dela. Com meu ‘não’ eu lhe impedi a entrada nesse mundo de alienados modernos. Em contrapartida à minha tomada de poder (porque era uma) havia a oferta da minha presença incondicional, da minha implicação subjetiva na construção do seu relato de vida. Senão, com que direito fazê-la órfã da proteção do saber médico (ou psicológico ou psicanalítico) para deixá-la sozinha em um deserto de saberes constituídos? Só a segurança da minha presença afetada por ela podia fazer contrapeso. Isso não é possível em todos os casos, e não é todo mundo que se sente capaz de assumi-lo. É por isso que a clínica nunca é aquela partida de damas compassivas em que basta querer o bem do paciente; ou, pior, aplicar a uma singularidade humana um saber aprendido na escola. A terapia analítica é um esporte de combate. Eu então inconscientemente “optei” pelo combate e pela primazia do presente. Minha resposta não foi fruto de uma reflexão — porque isso tomou uma fração de segundo —, mas foi, sem dúvida, uma resposta transferencial de minha parte a isso que eu sentia nela de criança perdida, de criança condenada a virar vítima de uma psiquiatria pedófila por vocação.

Após ter proferido esse ‘não’ enérgico, eu “falei” com ela. Digo falei, e não interpretei. Eu lhe falei como se pode falar com uma criança que tem medo do lobo, ao dizer-lhe que não existe um lobo que vai vir comê-la, e que não se deve confundir as histórias que contamos com a realidade. Que as histórias de lobos e monstros que comem as criancinhas são inventadas para serem contadas, mas que isso não existe de verdade. Elas são contadas para meter medo e que há um certo prazer em se meter medo e voltar à realidade como que depois de um sonho. Eu lhe disse que ela se contou uma história, mas que isso que ela sentia era verdadeiro — que seus sentimentos eram verdadeiros, mas não a história. Que havia uma história que lhe pertencia e que não tinha nada a ver com a psiquiatria. Que existe, talvez, uma outra história que ela contará um dia. E que sua história, ela não era obrigada a traduzi-la em palavras adultas, em palavras médicas, em palavras que julgam. Eu falei “diretamente” à pequena. Eu diria que, ao falar à “pequena”, desqualifiquei o censor imaginário.

Por exemplo, ela podia pensar que ela era pedófila porque, ao ver a mãe bater na filha, tinha sentido um gozo da mãe violenta; e que ela o havia sentido, por sua vez. Eu achava que iríamos, mais cedo ou mais tarde, reencontrar seus medos precoces, ou ao menos reencontrar fragmentos para fazer uma construção. Mas não; tudo era provável e nada era certo.

Ela escutou com atenção, eu tive a impressão de que a única certeza fora o efeito de meu “não” à sua pergunta de se ela era pedófila ou não. Todo o resto era mais importante para mim do que para ela. Mais para eu mesma me assegurar que estávamos no enquadre de uma análise.

Hoje, para mim, é difícil dizer por que eu disse esse ‘não’ tão firme e tão definitivo. Eu me lembro de minha irritação frente aos diagnósticos de meus colegas falando dela como de uma psicótica; me lembro da sua presença agradável e harmoniosa; me lembro do seu sorriso de criança assustada; me lembro do meu desejo de tranquilizá-la como se tranquiliza uma criança diante de um espetáculo que ela não compreende. O motivo de seu medo não era um impulso irresistível que ela sentia de maltratar essas crianças cuja visão lhe metia medo, o objeto de seu medo era a possibilidade de que ela pudesse ser identificada a uma entidade perversa da qual só o nome já a fazia estremecer: pedófila. Pedófila. O medo de carregar esse atributo detestável se agravava ainda mais na medida em que ansiava ter filhos mais tarde.

Eu não estava só dizendo ‘não’ à sua pergunta, acredito que estava dizendo não a toda uma fábrica de diagnósticos, a toda uma armada de psiquiatras e analistas, a toda uma prática de apresentação de pacientes, de exibição perversa do outro como produto de um saber. À sacrossanta pedofilia médico-paterna e materna que distribuía diagnósticos como balas às populações crédulas.

De um modo muito claro, após esse “não” ela parou de sentir a angústia ao avistar uma criança. Ela não era obrigada a endossar uma entidade patológica porque ela estava encontrando, nela mesma, o desconhecido. Muito rapidamente, depois desse episódio, ela parou de falar de seus receios e passamos a outra coisa. Uma separação aconteceu, eu não sabia qual.

Depois ela saiu por um ano pra fazer seu estágio de fim de curso. Veio me ver de novo nos seus raros retornos a Paris. Ela não tinha mais angústias, falava no passado de suas fantasias de “pedofilia” — isto é, de crianças agredidas ou maltratadas — em que ela tinha medo de ver surgirem imagens assustadoras, imagens de histórias de bruxas, medos de uma sexualidade estranha a ela. Tudo isso estava bem no passado.

Depois, um dia me contou que estava grávida. Uma única vez ela evocou esse passado de angústias: “e se minhas ideias bizarras retornassem na presença do meu filho?”. Depois ela riu.

Veio a suas sessões até a véspera de dar à luz; retornou uma semana depois, para me mostrar o seu bebê. Era um menino. Ela nunca viu retornarem seus pensamentos mórbidos nem seus impulsos, seja lá como fosse. Ela podia dizer, brincando, “na época em que eu era pedófila”.

Minha afirmação — “não, você não é pedófila” — era um contradiagnóstico, como uma contracultura. O que implicava um “sim” a outra coisa! Sim, você tem o direito de ser uma criança no presente! Em outras palavras: a criança está aqui ao mesmo tempo que o adulto que fala, e não é uma criança do passado, não é uma construção nosográfica, ela está realmente aqui, a criança real que me fala porque eu a vejo. Essa criança não sabe como dizer o que sente, e diz coisas de adultos, coisas absurdas, coisas do outro. A criança real está aqui e está falando comigo, e toda interpretação pode fazê-la desaparecer.

Après-coup: meu esquecimento

Ao escrever essa história, no momento de concluir, surgiu a ideia de um esquecimento. Um grande esquecimento. Trata-se da relação do pai com a irmã menor. Questão problemática que me intrigara e que eu tinha deixado de lado para não importuná-la com perguntas. Por que, depois do divórcio, esse pai não queria ver a sua segunda filha, que era claramente dele, e fingia que não era o pai? Essa menina tinha sido o primeiro bebê de Marie. Ela tinha dois anos quando sua irmã nasceu. Podemos fazer a hipótese de que “qualquer coisa”, um gesto, uma agitação, um movimento pulsional, tenham acontecido entre esse pai e a sua segunda filha; e que Marie, a mais velha, tenha sido uma testemunha precoce disso. O que não impede a contaminação da agitação, que pode passar de um ao outro. A excitação ao avistar a menina podia passar do pai para Marie. Podemos fazer a hipótese de uma identificação inconsciente com seu pai. Podemos fazer a hipótese de que isso tenha acontecido e que Marie o tenha esquecido, recalcado, censurado, ou que simplesmente isso fazia parte da amnésia infantil que recobre os três ou quatro primeiros anos de vida. Mas que a carga pulsional havia permanecido, que seu corpo tinha guardado a memória e foi excitado ao avistar a mãe que batia na filha com um ar bizarro, com um pouco de gozo demais… Podemos imaginar que seu corpo fez com que ela experimentasse de novo uma excitação do passado tornada presente, lembrando-lhe o gozo do pai? Marie pôde então ser invadida pela angústia como diante da manifestação do seu corpo que lhe escapava. E o retorno da angústia foi, dessa vez, impossível de reprimir. É num momento de retorno do embalo pulsional com as imagens de síntese do seu espírito que tinha começado a sua busca por normalidade e o seu medo na presença de crianças reais. E se ela tivesse sido, ela mesma, esse pai pedófilo a partir do real do seu corpo? Por contágio pulsional? Esse pai que não queria ser pai daquela menina, para qual ele tinha, talvez por um instante, sido um pai faltante demais? Hipóteses que dariam uma coerência à história. E cujo esquecimento me deixa perplexa. Teria eu “obedecido” como ela, na transferência, a uma injunção de cegueira? “Você não viu nada, nada aconteceu”. E se eu tivesse essa hipótese na cabeça desde o início, qual seria a probabilidade de que proferisse esse “não, você não é pedófila” liberador? É esse o momento de ser modesta e aceitar o “acaso” como parte envolvida em toda análise.

Aceitar sermos parceiros amorosos de acontecimentos aleatórios, verdadeiros anjos terapêuticos, se estamos dispostos a conceder o lugar que eles merecem.

Esse “não” ganha, então, ainda um outro valor: aquele de livrar Marie de um fantasma do qual ela era o corpo presente.

Então, sim, podemos afirmar que eu de fato recebi em meu consultório um pedófilo, e que eu o “tratei”. A gata de Schrödinger tinha vindo me fazer uma visita. 


TRADUÇÃO: Paulo Beer.


Radmila Zygouris é psicanalista francesa de origem iugoslava. Foi membro da Escola Freudiana de Paris até sua dissolução por Lacan, em 1978. Durante esse período, foi co-fundadora de uma das mais interessantes revistas de Psicanálise, a L’ordinaire du psychanalyste [O ordinário do psicanalista], publicada em Paris entre 1973 e 1978. Autora dos livros: Ah! As belas lições (Escuta, 1995), Pulsões de vida (Escuta, 1999), O vínculo inédito (Escuta, 2003) e Nem todos os caminhos levam a roma (Escuta, 2006).


FONTE

ZYGOURIS, Radmila (2015). A gata de Schrödinger [Trad. P. Beer]. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. 0, p. 3, 2015.

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