“UM POUCO DE POSSÍVEL, SENÃO EU SUFOCO…” [Gilles Deleuze, Conversações, trad. Peter Pál Pelbart, Ed. 34, 1992, p. 131]
Estas falas, embora impregnadas por anos de (con)vivência clínica com pacientes ditos psicóticos, visam simplesmente reacender a potência de evocação, de questionamento e de estranhamento embutidas na loucura. Eis, pois, a molecagem filosófica que as inspira: a partir das disrupções da loucura, repensar algumas das clausuras nossas (temporais, políticas, estéticas, existenciais).
A meio caminho entre a filosofia, a clínica, o manifesto, a literatura, o género híbrido corre o risco óbvio de desgostar a todos. Aos profissionais do conceito, pelo aspecto ligeiro, aos da transferência e da vida, pelo caráter aleatório ou duvidoso. Teriam um quê de razão, uns e outros, não fosse a circunstância particular de que determinadas experimentações teóricas e vitais têm na divagação e na digressão sua matéria-prima. Pois na sua textura mais íntima, mesmo quando atreladas a aparatos académicos rigorosos, as experimentações teóricas comportam um quinhão irredutível de ficção.
Assim, ao invés de negar a dimensão ficcional do pensamento, mimetizando sistemas insossos e pseudocientíficos, tratou-se aqui de construir brinquedos, ressonâncias caleidoscópicas. O livro-caleidoscópio. Brincar de desfazer certas ordens cristalizadas no espelho do Tempo, incluindo aí novas e estranhas pedrinhas, a fim de criar outras ficções de vida, outras vidas. Não é este um dos sonhos do pensamento? O de insuflar na vida, a partir dela mesma, uma grande e nova leveza lúdica?
E por que fazê-lo na vizinhança da loucura? Por ser ela o campo das questões limítrofes, inapagáveis. É ali que se dá o entroncamento impensável entre a subjetividade, a cultura, a ruína, certos conceitos insólitos e todas as insubordinações desarrazoadas. A partir do colapso psicótico, por exemplo, é possível repensar aspectos de nossa temporalidade, de nosso modo de vivenciar a história, de nossas evidências lógicas, das visibilidades incontestes, consensos políticos etc. Não se trata de “usar” o sofrimento do louco para “fazer filosofia”, mas de infletir-nos a partir daquilo que o campo da loucura dispara e conturba em nós. É uma maneira entre outras, porém esquecida e valiosa, de “ouvir” a loucura.
As muitas referências a Gilles Deleuze e Félix Guattari se devem ao fato de terem eles (re)inaugurado a trilha do pensamento nas adjacências da esquizofrenia. Esta aventura, longe de estar esgotada, foi pouco explorada. É em parte o que se tentou aqui. Os conceitos de Deleuze-Guattari (e muitos outros) foram operados ao longo destes textos com a mesma desenvoltura que eles próprios sempre defenderam e exercitaram. É preciso que um conceito tenha ao mesmo tempo uma estranheza e uma necessidade, diz Deleuze. Ora, nem a estranheza nem a necessidade são dadas, elas precisam ser testadas e talhadas num processo paciente mas intempestivo, de variação das condições, dos contextos, das conexões, das associações, com tudo de ziguezagueante que isso implica.
Nesse sentido, não cabia ocultar as hesitações, contradições, perguntas em suspenso que entremearam a feitura deste trabalho. São parte constitutiva de uma viagem; mais, constituem seu estofo romanesco, aventuresco. O tom oral e por vezes demasiado coloquial tampouco foi alterado; com a ilusão, talvez, de que se pudesse preservar uma certa hecceidade da fala.
Este livro não é dirigido só a filósofos, psicanalistas, trabalhadores em saúde mental (embora a estes possa ser particularmente útil), mas aos que alguma vez já desconfiaram que essa vida morna e tola que nos é oferecida e alardeada como a única possível, desejável e saudável esconde outras tantas. Cuja beleza e tentação cabe reinventar.