A UTOPIA IMANENTE – por Peter Pál Pelbart

O pensamento de Gilles Deleuze deu impulso a vários dos termos que circularam na cena filosófica das últimas décadas, tais como diferença, multiplicidade, intensidade, fluxos, virtual, até mesmo simulacro. No entanto, chama a atenção a ausência quase absoluta de qualquer menção ao filósofo na bibliografia sobre a pós-modernidade. De Habermas a Jameson, a omissão é tão generalizada que somos obrigados a reconhecer que, diferentemente de Lyotard – por razões óbvias –, mas também de Foucault ou Derrida, Deleuze foi posto inteiramente à margem do debate sobre o pós-moderno. Longe de mim deplorar essa situação, muito menos corrigi-la. É preciso partir dessa constatação: Deleuze parece ser carta fora do baralho pós-moderno. Isso se deve ao fato de que ele inventou suas peças, outras regras, um novo jogo. Em vez do xadrez (jogo imperial, guerra institucionalizada), o go chinês: mais próximo da guerrilha, sem afrontamento, no limite sem batalha. Seria preciso ler seus conceitos como peças de go espalhadas no tabuleiro contemporâneo, movendo-se de modo intempestivo, na sua alegria própria. Pois em Deleuze não se ouvirão lamúrias ou profecias sobre o fim do sujeito ou da história, da metafísica ou da filosofia, da totalidade ou das metanarrativas, do social, do político, do real ou mesmo das artes – “Jamais me preocupou a superação da metafísica ou a morte da filosofia, e quanto à renúncia ao Todo, ao Uno, ao sujeito, nunca fiz disso um drama”, escreve em Conversações (1977).

Cada um dos conceitos de que a teorização contemporânea faz o luto pomposo, uma vez lançados no plano que Deleuze ajudou a criar, rodopiam, alegremente, em favor daquilo que pedia passagem, e que cabe à Filosofia experimentar a partir das forças do presente. Desse modo…seu pensamento produziu uma sonoridade filosófica pouco sintônica com     a música enlutada do pós-moderno…ou, com algumas de suas fontes…Nenhum ‘drama’    em relação à origem ou ao destino (do Ser…do pensamento…da História… do Ocidente).

Nenhum ódio ou desprezo pelo mundo, nenhum ressentimento ou culto da negatividade; mas, tampouco complacência alguma em relação à baixeza do presente, e sobretudo uma abertura extrema ao improvável, à multiplicidade contemporânea de processos liberados.  Tal prática filosófica tem todos os riscos de ser mal-entendida por quem está habituado a um ponto de vista histórico-filosófico – a partir de uma exterioridade crítica ou reflexiva, mas também para aqueles que, ao contrário, contentam-se em descrever com deleite, em um misto de melancolia e volúpia, o niilismo de nossos dias… – O exercício imanente em Deleuze traça uma neutra linha transversal na atualidade…recusando o catastrofismo e a complacência… – bem como seus ‘efeitos nefastos’…de paralisia, arrogância…ou cinismo.

Distinguindo entre… utopias libertárias, revolucionárias e ‘imanentes’… — por um lado, daquelas totalitárias… – seja ‘religiosas’… – ou…’estatais’; se é a utopia quem atualiza    a Filosofia … com sua época; Deleuze então se pergunta… se este – continua sendo…’o melhor caminho’ … a seguir.

A utopia em Deleuze jamais remete a um tempo futuro, e uma forma ideal. Designa antes o encontro entre o conceito e o ambiente presente, entre um movimento infinito…e o que há de real aqui e agora…que o ‘estado de coisas’ impedia de vir à tona… Ao embaralhar as cartas do desejo e da economia…do homem e da máquina…da natureza e da cultura… – e, pressentindo o ‘grau de hibridação’, que as décadas subsequentes apenas intensificariam; inventou-se uma nova maneira de sondar o presente…’detetando nele o imponderável’…a partir das forças que pediam novos maneiras de existência… e, de redistribuições de afeto.

E essa é uma das principais funções da Filosofia para Deleuze – sondar o “feixe de forças” que o presente obstrui, fazer saltar as transcendências que nos assediam, acompanhar as linhas de fuga por toda parte em que as pressentimos. — Sobre o traçado de um plano de imanência, forjar conceitos que configurem acontecimentos por vir … fazendo daí, novos modos de existência… sem qualquer anseio de ‘totalização‘. É à luz desse preceito que se pode apreender os conceitos criados por Deleuze… – Mas como avaliar se os eventos que uma filosofia invoca, e as formas de ser que ela faz advir…são melhores…que aqueles aos quais se contrapõe? Não há outros critérios que não imanentes; como responde Deleuze:

“Uma possibilidade de vida se avalia – nela mesma – pelos movimentos que traça…e, intensidades que cria; não havendo outro critério, senão o teor da própria existência.      A vida… – como virtualidade pura … potência pré-individual … campo de imanência        do desejo… – não significa outra coisa – que a emergência desse plano“.

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