AGENCIAMENTOS RADIOFÔNICOS – por Anderson Santos e Álan Belém

A psicanálise, assim como a rádio, está no campo da linguagem, da palavra, do corpo: ambas fazem circular a palavra, cada uma a seu modo de funcionamento. Vibram, tocam, afetam. No início do século XX, suas histórias se cruzam em um momento conturbado, marcado pelas duas grandes guerras mundiais. Pela psicanálise, encontramos a presença de Donald Winnicott, o primeiro psicanalista a ocupar o espaço em uma rádio e, de certo modo, disseminar a psicanálise em uma linguagem popular, acolhendo pessoas pelas ondas do ar — ondas de rádio que viajam à velocidade da luz no vácuo. Mais precisamente, este fato aconteceu entre 1943 e 1962, durante e após a Segunda Guerra Mundial, momento de intensos bombardeios no qual Winnicott realizou, de maneira cirúrgica, algo em torno de cinquenta programas sobre o tema da maternidade na rádio BBC de Londres. Abriam-se diálogos por meio de cartas enviadas por ouvintes, principalmente com figuras maternas, que lhe enviavam pedidos de conselho. Winnicott, no entanto, afirmava buscar não dar conselhos individuais, postulando, desta maneira, um saber do corpo que está para além do que se pode aprender em livros quando se pensa o cuidado com bebês [1]. Essa experiência preliminar já nos anunciava a potência revolucionária da rádio, dispositivo que faz a voz atravessar toda coletividade, todo campo social, translocal e polifônico. Curiosamente, só existe hoje uma gravação da voz do próprio Freud, realizada também pela BBC, quando o mesmo imigrou-se com sua família para a Inglaterra no meio da agitação nazista, em dezembro de 1938.

Gilles Deleuze [2] reconheceu a importância da corajosa produção de Winnicott na psicanálise, que mergulhou no nomadismo para se desterritorializar de espaços sedentários e reconheceu os limites de alguns territórios para ir adiante, produzindo outros caminhos para além da interpretação de significados, significantes, fantasmas, etc. Winnicott percebeu que o momento necessário para com-partilhar e se colocar em uma espécie de sintonização com as pessoas em sofrimento psíquico, é preciso ir até este sujeito, realizar um trabalho em conjunto. Esta é uma proposição que posteriormente encontra potência no campo da saúde mental, assim como as contribuições de François Tosquelles, Franco Basaglia, entre muitas outras referências. Félix Guattari, um dos muitos que nos inspiram, demonstrou em sua prática e militância esse tipo de imperativo, tanto na clínica La Borde, quanto em outros territórios. O esforço para fabricar novos fluxos e linhas de fuga só poderia ser revolucionário, pois a melhor forma de partilhar o estado de uma outra pessoa é vibrando em conjunto, na mesmíssima frequência radiofônica, afetando e sendo afetado.

Ao analisarmos a história bruta da rádio (livre), é possível perceber que este dispositivo foi sofrendo mutações de acordo com o período histórico-social de cada território. Não necessariamente de modo linear ou excludente, porém em um mesmo momento onde encontramos circulando rádios comerciais, rádios piratas e o surgimento das rádios livres na Itália e França enquanto movimento político-social que reivindicavam seu direito em ocupar esse espaço de transmissão. Mais além, encontramos, no Japão, a rádio livre como função terapêutica para a comunidade japonesa, que encontrou nela – e nas ferramentas da esquizoanálise – um outro modo de vida possível. Modo de vida este que se dá por meio de linhas de fuga do modo de produção capitalista e da cultura de mídias de massa, que cada vez mais seguiram instituindo um modo de vida nebuloso e individualista, em que narciso se encontra aprisionado em seu espelho tecnológico. Foi em resistência à colonização da subjetividade que se proliferaram lutas incansáveis em diversos territórios do mundo. Começou, naquele mesmíssimo tempo, a desabar por terra uma história homogênea da radiofonia, e em seu lugar erigiu-se uma imensa multiplicidade de vozes, nas mais variadas frequências, dando dimensão tecnológica aos gritos. Além das chamadas cavidades de ressonância, onde a vibração da voz encontra espaços vibráteis no próprio crânio do enunciador, cavidades radiofônicas também são produzidas e preenchidas, momentaneamente, pela potência do desejo molecular.

Em sintonia com a vibração de rádio, pela qual Winnicott realizou sua função como psicanalista na Inglaterra, e por onde Guattari fez vidas-vozes se movimentarem entre a França e Itália (ressoando em outros países), algo relativamente semelhante pode ser encontrado no Japão, onde a micropolítica pôde produzir uma outra forma de desejar. Isso ocorre por conta da circulação da palavra pelas ondas de rádio e pelos encontros em determinados espaços — onde houve encontros rizomáticos permeados por afetos que potencializaram corpos, até então encurralados e isolados por uma história devastadora e por um sistema que age como um rolo compressor sobre os corpos. Enquanto o Japão aparentava estar em um momento de profunda apatia política durante a era consumista dos anos 1980 [3] — curiosamente na década seguinte da emergência de grupos guerrilheiros do incidente de Asama-Sansō – começam a surgir conexões e encontros mediados pelos dispositivo das rádios livres, surgidos por uma urgência social. Partindo de revolucionários micro transmissores, as ondas emitidas mais pareciam bumerangues que, ao serem jogadas para longe, tinham sempre o potencial de trazer algo novo consigo. Na França, porém, a situação era um pouco diferente. Com o objetivo de se libertarem do controle estatal e do capital das grandes corporações, as rádios livres souberam clamar e exercitar a liberdade das formas mais diversas, provocando alterações nas ondas de rádio, nas frequências do desejo, abrindo espaços de liberdade para as expressões mais estranhas e inabituais que, quando capturadas por ouvidos desatentos, acostumados à programação habitual e às performances linguísticas das grandes rádios, faziam sentir em seus corpos os agenciamentos libertários dessas ondas.

Enfim, Guattari/Kogawa: Rádio Livre, Autonomia, Japão, consiste em um livro que não poderia ter surgido sem a colaboração destes muitos atores eletrônicos que, há mais de quarenta anos estavam apenas engatinhando, espreitando a oportunidade e fazendo alianças necessárias para produzir uma matilha mundial. Pela primeira vez lançamos coletivamente este livro com a colaboração de Tetsuo Kogawa, renomado inventor, rádioartista, comunicador e professor japonês, e a ilustre presença do insubordinável Félix Guattari, psicanalista e militante francês (e…e…e…).

Fruto de uma série de encontros, ocorridos em Tóquio, entre esses dois filósofos envolvidos e implicados da cabeça aos pés nos movimentos das rádios livres, em busca de novas formas possíveis de vida.

Pelo oeste, no velho continente, Guattari, um dos grandes intelectuais para se pensar na construção de um espaço comum entre os movimentos sociais, fundador da Federação Nacional de Rádios Livres Não Comerciais (FNRL) e um dos pilares da Rádio Tomate com François Pain, além de parceiro de Franco “Bifo” Berardi, um dos fundadores da pioneira Radio Alice na Itália; no leste, dois anos depois da última entrevista, Kogawa, já conhecido pelo seu ativismo radiofônico e como professor universitário na Universidade de Wako, fundou, juntamente com um grupo de estudantes e militantes, a Radio Home Run, ponto de encontro, de cuidado de si, de ativismo, de arte do radiocenário de Tóquio, local de produção de vida, multiplicação e magnificação de afetos.

Separados por milhares de quilômetros, mas em conexão inevitável por seus interesses no uso revolucionário e emancipador da frequência modulada, ambos os filósofos se conectam como engrenagens e fazem funcionar uma importante máquina de guerra. Nosso interesse ao continuar pintando este retrato só poderia ser de uma imensa fabricação coletiva: esperamos que estas entrevistas, textos e intervenções sirvam a algo, justamente na medida em que elas não são obrigadas a servir a nada e a ninguém. Que sejam fontes de estudos e de conhecimento histórico, mas também que sejam ferramentas, eternas enquanto possam durar. E para se fabricar algo deste tipo, há de se respeitar o desejo. Com prudência: experimente!

Cada vez mais pululam, em diversos cantos do Brasil, produções e encontros clínico-artísticos guattarianos, que não só passam a ser afetados por esse pensamento — que, à primeira vista, certamente parece de uma complexidade unânime —, mas também passam a compreender como suas ideias parecem cada vez mais vivas no mundo atual. A palavra se acopla aqui como encaixes elétricos, tomadas, chaves de fenda. Os conceitos são ferramentas em constante mutação, quimeras da práxis: por eles exercitamos novas e outras funções e também produzimos novos funcionamentos coletivos.

Kogawa talvez seja como uma espécie de ferreiro, com as suas mãos radiofônicas ou, talvez até mesmo com as suas ondas manuais, representando por meio de sua arte o trabalho de uma vida. Paradoxalmente, a sua tentativa de manter as ondas radiofônicas em um curto raio de determinado território, nos levaram a conhecê-lo no Século XXI — quarenta anos depois de seus encontros com Guattari — em um país tão longínquo que Kogawa mesmo, apesar de sempre querer visitar, nunca teve a oportunidade de conhecer.

Os dois intelectuais que escutaram seu tempo e território puderam fazer eclodir algo a partir disso, algo que ecoava em seus olhos, ouvidos, corpo-terra. A partir de seus engajamentos intelectuais-político-ético-estéticos, souberam produzir um povo que falta, ou melhor, um povo que fala, que encontra linhas de fuga e resiste em meio a guerra produzida pelo poder capitalístico. Lutas intermináveis. Guerrilhas e alianças infindáveis. Revoluções moleculares!

O Sol nos trouxe para cá; ele dirá até onde iremos. Esse interminável fluxo de energia não pode ser obstruído, apenas lentificado e, em alguns momentos reprimido. Tudo possui uma vibração que atravessa os corpos planetários-humanos-animais. Como bem ilustrou Kogawa, uma energia potencial interior, que tentamos atingir. Considerem, este livro, portanto, como um pequeno terremoto e suas palavras, inesgotáveis fontes de energia que continuam a agir através do espaço-tempo.


NOTAS

  1. Cf. WINNICOTT, D. 2020. Bebês e suas Mães. Tradução de Breno Longhi. São Paulo: Ubu Edições.
  2. Cf. DELEUZE, G. 2006. A Ilha deserta e outros textos: textos e entrevistas (1953-1974). São Paulo: Iluminuras.
  3. Cf. MERSAULT, P. “Tetsuo Kogawa: une éxperience radiophonique”. In. MERSAULT, P. (org.). Tetsuo Kogawa Radio-Art. Op. cit.

FONTE

Texto publicado em Guattari/Kogawa. Rádio livre. Autonomia. Japão (Org. Anderson Santos, ed. Sobinfluencia).

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