AS LUTAS DO DESEJO E A PSICANÁLISE – por Félix Guattari

A questão com que se defronta o movimento operário revolucionário é a de uma defasagem entre as relações de força aparentes, ao nível da luta de classes, e o investimento desejante real das massas.

O capitalismo não só explora a força de trabalho da classe operária como também manipula em seu proveito as relações de produção, insinuando-se na economia desejante dos explorados. A luta revolucionária não poderia ser circunscrita somente ao nível das relações de força aparentes. Ela deve desenvolver-se em todos os níveis da economia desejante contaminados pelo capitalismo (ao nível do indivíduo, do casal, da família, da escola, do grupo militante, da loucura, das prisões, da homossexualidade, etc.).

Os objetos e os métodos de luta se diferenciam segundo esses níveis. Objetivos do gênero: “pão, paz, liberdade” … requerem a existência de organismos políticos inseridos no campo de relações de força e, consequentemente, agrupando forças, constituindo blocos. Por força das circunstâncias, essas organizações se propõem a ser “representativas”, coordenar as lutas, propor-lhes uma estratégia e uma tática. Por outro lado, a luta contra o fascismo “microscópico” – aquele que se instaura no seio das máquinas desejantes – não poderia se dar através de “delegados”, de “representantes”, de blocos definitivamente identificados. O “inimigo” varia de rosto: pode ser o aliado, o camarada, o responsável ou si próprio. Nunca pode-se estar seguro de que n]ao se vá resvalar a qualquer momento para uma política burocrática de prestígio, uma interpretação paranóica, uma cumplicidade inconsciente com os poderes vigentes ou uma interiorização da repressão.

Estas duas lutas podem não se excluir mutuamente: de um lado, a luta de classes, a luta revolucionária de libertação implica na existência de máquinas de guerra capazes de se opor às forças opressivas, tendo para isto que funcionar com um certo centralismo, ou ao menos estar sujeitas a um mínimo de coordenação; do outro lado, a luta dos agenciamentos coletivos, no front dos desejos, exercendo uma análise permanente, uma subversão de todos os poderes, a todos os níveis.

Não é absurdo esperar derrubar o poder da burguesia substituindo-o por uma estrutura que reconstitua a forma deste poder? A luta de classes na Rússia, na China, etc. mostrou-nos que, mesmo depois da derrubada do poder da burguesia, a forma deste poder podia se reproduzir no Estado, na família e até nas fileiras da revolução. Como impedir o poder centralizador e burocrático de se sobrepor à coordenação necessária, que implica uma máquina de guerra revolucionária? Ao nível global, a luta implica etapas, intermédios. Ao nível microscópico, o que está em causa é, de imediato, uma espécie de passagem direta ao comunismo, uma liquidação imediata do poder da burguesia, na medida em que este poder é encarnado pelo burocrata, pelo líder ou pelo militante.

O centralismo burocrático é absorvido permanentemente pelo movimento operário a partir do modelo centralista do Capital. O Capital controla, sobrecodifica a produção, dominando os fluxos monetários e exercendo um poder de coerção no quadro das relações de produção e do capitalismo monopolista de estado. O mesmo gênero de problema se coloca com o socialismo burocrático. Mas a produção real prescinde completamente desta espécie de sobrecodificação que só faz entravá-la. As maiores máquinas produtivas das sociedades industriais poderiam perfeitamente passar sem este centralismo. É claro que uma outra concepção das relações entre a produção, a distribuição e o consumo, e entre a produção, a formação e a pesquisa, conduziria à explosão dos poderes hierárquicos e despóticos, tal como eles existem no seio das relações de produção atuais. A partir daí, a capacidade de inovação dos trabalhadores poderia ser liberada. O fundamento do centralismo, portanto, não é econômico, mas político. O centralismo no movimento operário conduz ao mesmo gênero de esterilização. É preciso admitir que as lutas mais eficazes e mais amplas poderiam ser coordenadas fora dos estados-maiores burocráticos! Mas com a condição de que a economia desejante seja liberada de sua contaminação pela subjetividade burguesa que faz delas cúmplices inconscientes da tecnocracia capitalista e da burocracia do movimento operário.

Convém, no entanto, não se permitir cair na dicotomia simplista: centralismo “democrático” versus anarquismo, espontaneísmo. Os movimentos marginais, as comunidades, certamente nada têm a ganhar caindo no mito de um retorno à era pré-tecnológica, de um retorno à natureza; ao contrário eles têm mais é que enfrentar a sociedade real, as relações sexuais, familiares, reais, etc… Mas por um outro lado, deve-se reconhecer que o movimento operário organizado recusou-se, até agora, a levar em consideração sua própria contaminação pelo poder burguês, sua própria poluição interna. E nenhuma ciência constituída poderia atualmente ajudá-lo neste caminho. Nem a sociologia, nem a psicossociologia, nem a psicologia e muito menos a psicanálise tomaram o lugar do marxismo neste campo! o freudismo, sob a aparência de ciência, propõe como normas insuperáveis os próprios procedimentos da subjetivação burguesa, a saber: o mito de uma necessária castração do desejo, sua submissão ao triângulo edipiano, uma interpretação significante que tende a cortar a análise de suas implicações reais.

Evoquei uma liquidação possível do centralismo tecnocrático da produção capitalista. E isto a partir de uma outra concepção das relações entre a produção, a distribuição e o consumo, por um lado, e, por outro, a produção, a formação e a pesquisa. É algo que tenderia obviamente a transformar por completo os modos de relação com o trabalho, em particular a cisão entre o trabalho reconhecido como socialmente útil (pelo capitalismo, pela classe dominante) e o trabalho “inútil” do desejo. O conjunto da produção, tanto a produção do valor de troca quanta a do valor de uso, tanto a individual quanto a coletiva, é tomada sob a tutela de uma organização que impõe um certo modo de divisão social do trabalho. O desaparecimento do centralismo capitalista acarretaria, em contrapartida, um remanejamento progressivo das técnicas de produção. Pode-se conceber outras relações de produção no contexto de uma indústria altamente desenvolvida, da revolução informática, etc., que não sejam antagônicas com a produção desejante, artística, onírica… Dito de outra forma, a questão que se coloca é a de saber se é possível ou não sair da oposição exclusiva entre valor de uso e valor de troca. A alternativa que consiste em dizer “recusemos toda forma desenvolvida de produção, é preciso retornar à natureza”, só faz reproduzir a cisão entre os diferentes campos de produção: a produção desejante, a produção social reconhecidamente útil.

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A relação entre os indivíduos, os grupos e as classes é algo que está ligado à manipulação dos indivíduos pelo sistema capitalista. Os indivíduos, enquanto indivíduos, são fabricados por este sistema para responder aos imperativos de seu modo de produção. A ideia de que haveria desde o começo, na base da sociedade, indivíduos, grupos de indivíduos, sob a forma de família, etc., é produzida para as necessidades do sistema capitalista. Tudo o que se constrói, no estudo das ciências humanas, em torno do indivíduo como objeto privilegiado, só reproduz a cisão entre o indivíduo e o campo social. A dificuldade com a qual nos defrontamos, desde que queiramos abordar uma prática social concreta, quer se trate da fala, da loucura, ou de qualquer coisa que tenha algo a ver com um processo de produção desejante real, é que jamais se está lidando com indivíduos. Enquanto a linguística, por exemplo, se contentava em definir seu objeto em termos de comunicação entre indivíduos, ela omitiu completamente as funções de integração e coerção sociais da língua. A linguística apenas começou a se destacar da ideologia burguesa com o estudo dos problemas levantados pela conotação, o contexto, o implícito, etc. e tudo aquilo que a linguagem efetua fora de uma relação abstrata entre indivíduos. Um grupo, uma classe, não são constituídos por indivíduos; é a aplicação redutora das relações de produção capitalista sobre o campo social do desejo que produz um fluxo de indivíduos decodificados como condição para a captação da força de trabalho.

Os acontecimentos de Maio de 68, na França, revelaram em grande escala um novo tipo possível de consistência molecular do campo social. Mas, diferentemente do que ocorreu na Itália, eles não chegaram a instaurar um verdadeiro corte no movimento revolucionário, em particular no que diz respeito à economia do desejo. Se tal ruptura tivesse de fato ocorrido, ela provocaria consequências político-sociais consideráveis! Tudo o que se pode dizer é que desde que se deu um enfraquecimento relativo do stalinismo, desde que parte considerável da juventude operária e estudantil se destacou dos modelos militantes tradicionais, houve não uma fratura importante, mas pequenas fugas de desejo, pequenas rupturas no sistema despótico reinante nas organizações representativas.

A fratura de Maio de 68 na França foi recuperada após algumas semanas. Pode-se até dizer duas semanas. O que não impede que ela tenha tido consequências extremamente profundas e que continuam se fazendo sentir em diferentes níveis. Mesmo que seus efeitos não mais se manifestem na escala de um país inteiro, ela prossegue sob a forma de infiltração nos meios os mais variados. Surgiu uma nova visão, uma nova abordagem dos problemas militantes. Antes de 68 seria inconcebível considerar, por exemplo, que intervenções em favor dos prisioneiros comuns tivessem um sentido político qualquer; seria inconcebível considerar que homossexuais pudessem fazer manifestações de rua e defender sua posição particular face ao desejo. Os movimentos de libertação das mulheres, a luta contra a repressão psiquiátrica, etc., mudaram completamente de sentido e de método. Os problemas se colocam, portanto, de outra maneira, mas sem que realmente tenha havido uma fratura. Isto se deve certamente à ausência de uma grande máquina de guerra revolucionária. É preciso reconhecer que uma série de representações dominantes continua a exercer seus estragos no seio dos próprios grupos revolucionários. Foi empreendida uma crítica do burocratismo dos sindicatos: o princípio da “delegação de poder” ao partido de vanguarda, o sistema de “correia de transmissão” entre as massas e o partido foram questionados, mas os militantes permanecem prisioneiros de muitos preconceitos da moral burguesa e de atitudes repressivas com respeito ao desejo. É talvez o que explica o fato de que em Maio de 68 não houve contestação da psicanálise como foi o caso para com a psiquiatria. A psicanálise conservou uma certa autoridade na medida em que alguns dos preconceitos psicanalíticos foram encampados pelo movimento.

A verdadeira fratura só se efetuará a partir do momento em que questões tais como as do burocratismo das organizações, das atitudes repressivas dos militantes com respeito a suas mulheres, seus filhos, etc., seu desconhecimento do problema do cansaço, da neurose, do delírio (é comum a recusa de se ouvir alguém que “destrambelha”….., arrebenta-se logo com a pessoa, dá-se rapidamente a pessoa por acabada, considera-se que ela não tem mais seu lugar na organização, e chega-se até a afirmar que se tornou perigosa…), se não passarem ao centro das preocupações políticas, ao menos forem consideradas como sendo tão importantes quanto qualquer tarefa de organização; tão importantes quanto a necessidade de se afrontar com o poder burguês, com o patrão, com a polícia… A luta deve ser levada em nossas próprias fileiras, contra nossa própria polícia interior. Não se trata absolutamente de um front secundário, como alguns maoístas consideraram, de uma luta complementar de objetivos marginais. Enquanto se mantiver a dicotomia entre a luta no front das classes e a luta no front do desejo, todas as recuperações continuarão possíveis. É significativo que após Maio de 68 a maior parte dos movimentos revolucionários não tenha compreendido a importância da falha que se revelara com a luta estudantil.

Bruscamente estudantes, jovens trabalhadores “esqueceram” o respeito ao saber, o poder dos professores, dos contramestres, dos responsáveis, etc. Eles romperam com uma certa forma de submissão aos valores do passado e abriram uma nova via. Pois bem, tudo isso foi creditado ao espontaneísmo, isto é, uma forma transitória de expressão, que deveria ser ultrapassada numa etapa “superior” pelo estabelecimento de organizações centralistas. O desejo surgiu na massa, lhe foi dado seu quinhão; esperou-se que ele se acalmasse e se disciplinasse. Não se compreendeu que este novo tipo de revolta seria doravante inseparável de todas as lutas econômicas e políticas futuras.

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Quando o que está em questão é o marxismo e o freudismo pensa-se num certo tipo de tratamento dos textos de Freud e dos textos de Marx. O freudismo, considerado de um certo ângulo, deveria ser definido como reacionário em todas as suas tomadas de posição sociais, em todas as suas análises concernentes à relação entre indivíduo e a família, enquanto que o marxismo, por sua vez, seria por demais insuficiente quanto à determinação das questões relativas ao desejo. O que não quer dizer que não se tem mais nada a fazer com os textos de Freud e de Marx. Todo o problema consiste em saber que uso se fará deles. Como para qualquer enunciado, há dois tipos de uso possíveis. Um uso que se servirá do texto como meio de encontrar pistas para o esclarecimento das conexões sociais reais, do encadeamento das lutas, e um outro usa que tenderá a esmagar, a reduzir a realidade do texto.

Frequentemente permanecemos muito dogmáticos quando tentamos precisar a relação entre o marxismo e o freudismo. Penso que só sairemos deste impasse exprimindo-nos sem reticencias sobre a realidade das lutas, mas das lutas efetivas. Enquanto se mantiver uma distinção absoluta entre a vida privada e a vida pública, não se avançará nem um passo! Esclarecer os engajamentos políticos, os engajamentos de classe, quando isto não consiste simplesmente em refugiar-se no discurso, demanda que isto seja falado ao nível da prática mais imediata, quer seja ela uma prática militante, uma prática médica ou uma prática familiar, conjugal, etc.

Em outro contexto seria talvez concebível começarmos a falar seriamente das relações entre uma política do desejo e uma política revolucionária, mas isto somente a partir do momento em que colocássemos “as cartas sobre a mesa”, como se diz em bom português; ou ainda: “as mãos na massa”.

Algumas intervenções no decorrer desses debates[1], enfatizaram a ideia de que o principal dilema em nosso campo seria o da opção entre uma política de “alternativa psiquiátrica” (reformista) e uma política psiquiátrica que fosse de imediato revolucionária. Teríamos assim dois campos; de um lado poder-se-ia classificar Jervis[2], e talvez Valtouchi, e de outro lado, por exemplo, o SPK.[3] Não parece que o problema seja tão simples assim. A luta com a qual nos defrontamos, desde que se, queira considerar uma política do desejo, não mais se circunscreve a um só front, um só afrontamento entre capitalismo e classe operária. Creio que uma multidão de novos fronts devem ser criados à medida que a classe operária, as organizações do movimento operário se fazem contaminar pela subjetividade da classe dominante. Não basta “ir na direção dos operários”, e se referir aos clássicos para se libertar da influência burguesa no front do desejo. Neste sentido não se pode assimilar, como fez Jervis, os interesses objetivos dos trabalhadores ao seu desejo. Os interesses da classe operária americana, por exemplo, podem ser objetivamente fascistizantes do ponto de vista de uma política do desejo. A luta sindical de defesa dos interesses dos trabalhadores, por mais legitima que seja, pode ser também perfeitamente repressiva em relação ao desejo de toda uma série de grupos sociais, de minorias étnicas, sexuais, etc… Creio, por exemplo, que não se pode ter demasiadas ilusões quanto a uma possível aliança política entre uma corrente psicanalítica de vanguarda, que pretende ter-se destacado da repressão psiquiátrica, e as organizações atuais da classe operária. Os modelos repressivos são tão virulentos nos psicanalistas quanto nos militantes. Militei durante mais de dez anos no Partido Comunista Francês, e penso que para apreciar uma posição revolucionária real, do ponto de vista do desejo, não se pode fiar apenas nas palavras, nas declarações e nos textos. Os textos teóricos do SPK, por exemplo, são parcialmente dogmáticos, e, apesar disso, a política do SPK foi verdadeiramente revolucionária. A prática do SPK pode aclarar o que poderia ser uma verdadeira política do Setor[4], considerada como política de massa, definida em função do desenvolvimento. O SPK aliás não existia enquanto partido constituído, com base num programa, especificando o que deveria ser a luta. É no decorrer da luta que houve investimentos de desejo sucessivos precisando os objetivos e os métodos de combate. A política do SPK poderia ter sido igualmente uma política de “alternativa psiquiátrica”, não uma alternativa de compromissos reformistas, mas uma alternativa fundada numa correlação de forças.

Atualmente, em Nova Iorque, num bairro muito pobre, o South Bronx, os movimentos negros e porto-riquenhos gerem um serviço de desintoxicação no Lincoln Hospital.[5] O movimento popular se encarregou da luta contra as drogas. Isto também é uma espécie de política alternativa, pois que ela se substitui ao programa do governador do Estado de Nova Iorque no que concerne a droga. Os médicos não entram mais no serviço, eles ficam à porta, só são chamados para conselhos técnicos. O serviço tem sua própria polícia e, se o governo não o fecha, se ele não o proíbe, e se ele chegou mesmo a subvenciona-lo, é porque os militantes que o animam apoiam-se no movimento negro e porto-riquenho e nas “gangues” populares do bairro. Portanto uma política alternativa tornou-se aqui relativamente possível pelo fato de se apoiar em lutas revolucionárias reais. E, inversamente, querer politizar a psiquiatria pode não passar de uma ilusão se a ação política engajada nesta ocasião permanece prisioneira das concepções repressivas tradicionais no campo da loucura e do desejo.

Será que a psicanálise pode tornar-se progressista, será que ela pode transformar-se em psicanálise popular? Ela não deixa de ser marcada pela formação de casta que receberam os psicanalistas. A essência da psicanálise continua sendo a psicanalise didática, a iniciação à casta psicanalítica. Mesmo quando um psicanalista “vai ao povo”, ele continua participando de sua casta; mesmo quando ele não faz propaganda de sua concepção da relação entre o desejo e a sociedade, ele continua a reproduzir em sua prática a mesma política repressiva. O problema não é, pois, que o psicanalista tenha ideias mais ou menos falsas, mas sim que sua prática reproduz a essência da subjetividade burguesa. Um senhor que fica em sua poltrona escutando o que você diz, mas que toma uma distância sistemática em relação aquilo que você está falando, não tem absolutamente necessidade de procurar impor suas ideias: ele cria uma relação de força que arrasta os investimentos de desejo para fora do campo social. Esta posição aliás não é particular ao psicanalista: ela é simplesmente mais marcada aqui do que nas outras profissões de enquadramento social. E a reencontramos a cada momento, no professor primário sobre seu estrado, no contramestre atrás de sua pequena guarita, no militar de carreira, no tira, no psicó1ogo com seus testes, no psiquiatra em seu asilo, etc… Individualmente todos eles talvez sejam gente muito boa! Talvez eles façam tudo o que podem para ajudar o povo e, no entanto, apesar de sua boa vontade, eles contribuem, à sua maneira, para reduzir os indivíduos à solidão, para esmagar seu desejo. É certo que se tenta suavizar a repressão: se procurará evitar, por exemplo, com métodos de pedagogia moderna, que a criança fique perdida em sua classe, aterrorizada pelo professor. O psicanalista também se esforça para proceder de maneira mais suave e em realidade mais dissimulada. Ele esvazia de substância todos os enunciados que lhe são trazidos, ele os neutraliza, difunde uma espécie de droga subjetiva. E como acusá-lo disso? Se nos recusamos a condenar a droga dos junkies, por que condenar-se-ia esta espécie de droga que conduz as pessoas a apelar para o psicanalista? Não é esta a questão. Cada um faz o que pede no seu pedaço, e cada um, na sua medida, desempenha seu pequeno papel de polícia: como um pai de família, como falocrata no casal, como criança-tirana, etc. Não se ganhará nada lançando condenações, anátemas sobre a prática de uns e outros. O problema é o de evitar ao movimento operário que ele se faça contaminar pela ideologia e os modos de subjetividade do poder burguês.

Que alguns se orientem em direção a uma “psicanálise para o povo”, não seria em si tão grave. O que sim é grave, é que a organização do movimento operário, os partidos, os sindicatos, os “grupelhos” se comportem à sua maneira como professores primários, como psicanalistas e, no final de contas, como policiais. As lutas reivindicatórias não poderiam resolver tudo. A classe operária é a primeira vítima das técnicas capitalistas de cacetada no desejo. Existe o problema de angústia na classe operária, e este problema não poderia ser resolvido recorrendo-se a uma droga qualquer (o esporte, a televisão, o amor aos líderes, a mística do partido). A única maneira de avançar neste domínio, é que a própria organização do movimento operário se encarregue destas questões de libertação do desejo e isto sem psicanalista, sem que ele próprio se torne psicanalista, sem recorrer aos mesmos procedimentos redutores e alienantes.

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O traço mais geral que nos permitiria reconhecer o “método do Édipo” consiste numa certa técnica de representação redutora. Qualquer situação sempre pode ser remetida a um sistema de representações aparentemente articuladas de modo triangular. Digo aparentemente pois um tal sistema funciona muito mais de modo binário e até mesmo tende constantemente a se reduzir a um só termo ou a se abolir naquilo que chamo de buraco negro.

Originariamente, toda uma série de noções ambíguas, ambivalentes, poderia ter permitido ao freudismo funcionar de um modo que não fosse fechado sobre si mesmo. Mas suas descobertas essenciais, tudo o que havia contribuído a dar a palavra ao desejo e que tinha provocado escândalo em sua época, foi perdido. Não retraçarei aqui a história deste fechamento, que aliás identifica-se com o da própria psicanálise, inclusive em seus prolongamentos estruturalistas mais recentes.

Tomemos apenas como exemplo sua atitude face aos processos inconscientes. Ela reconhecerá de início que eles não são dialéticos, que eles não conhecem a negação e muito menos a negação da negação. O inconsciente é todo positividade, é uma máquina de fluxos e de intensidades que não são determinados, controlados pelos sistemas de representação que a psicanálise projetou sobre ele. Ela introduziu no inconsciente a negatividade, a falta,[6] através da mediação da transferência. As intensidades do sonho, por exemplo, serão tratadas como uma espécie de material bruto. A técnica da associação e da interpretação traduzirá, reescreverá sua expressão manifesta em termos de estrutura profunda. Tomadas entre os dois modos de estruturação – o conteúdo manifesto e o conteúdo latente – as linhas de fuga do desejo serão cortadas de toda conexão possível com a realidade. A decriptação psicanalítica do sonho consiste em última instância em torná-lo coerente com as coordenadas sociais edipianas. Tomemos um outro exemplo, talvez mais evidente: uma criança ameaça seu irmãozinho dizendo: “Batista, vou cortar sua cabeça!” Quem é eu? Quem é o sujeito do enunciado? Qual a evidência que nos conduz atribuí-lo à realidade da criança? Mesma questão para Batista. Se cristalizarmos este prenome e este nome próprio, se os tornamos atributivos, então o enunciado tende a responsabilizar a criança que o profere. A partir daí ele se torna o assassino potencial de seu irmão. Mas será que era mesmo seu irmão, como pessoa, tal como ela é tomada na constelação familiar, que estava sendo visado? É certo que as intensidades desejantes se ligam inevitavelmente aos sistemas de representação em vigor; mas duas direções, duas políticas são possíveis a partir destes encontros. A primeira os utilizará como máquinas de signos entre outros suscetíveis de se colocar a serviço das intensidades de qualquer grandeza. A criancinha diz: “Vou arrancar a cabeça de meu irmão”. E logo depois prossegue com algo completamente diferente; por exemplo, ela gostaria de partir para a lua com o irmão. Então se descobre que seu ódio pelo irmão coexistia com o amor.

Na verdade, não se trata aí de uma “descoberta” propriamente dita. O ódio não “escondia” o amor; simplesmente uma nova conexão produziu um novo possível. O ódio “maquinado” de outra maneira produziu o amor. O inconsciente não continha nada que pudesse ser negado, nada que se pudesse dizer que provocava uma ambivalência do sujeito. Ele não mudou de opinião, ele passou a outra coisa. É, pois, absurdo dizer da criança que ela é polimorfa, perversa… Arrancar a cabeça da boneca, ter vontade de acariciar o ventre da mãe, não são coisas que tenham a ver na verdade com os objetos completos da lógica dominante. Isto não engaja responsabilidade alguma na criança enquanto tal. A atitude analítica repressiva, aquela que se apóia nas representações. normalizadas, tomará sistematicamente o sujeito ao pé da letra, coisificará seus enunciados. “Ele quis matar seu irmão, ele é responsável, ele é incestuoso.” Todos os pólos do agenciamento, a criança, o irmão, a mãe, vão então cristalizar-se no campo da representação. Se dissermos à criança: “Você arrancou a cabeça de sua boneca, e, no entanto, você sabia que era um presente que nos custou caro…”, faremos com que ela entre à força no circuito dos valores econômicos e, pouco a pouco, todos os objetos serão referidos às categorias da realidade dominante, da ordem dominante. Toda a realidade, então, passa a ser tomada no campo dos valores binários, o bem/o mal, é caro/não é caro, o rico/o pobre, o útil/o inútil, etc.

No entanto o inconsciente – apesar de sua recusa da negatividade e de todos os sistemas binários que lhe são correlatos, apesar de que ele não conheça nem o amor nem o ódio, nem a lei nem a proibição – é levado a investir à sua maneira este mundo louco dos valores dominantes. Contorna as dificuldades como pode! Torna-se sorrateiro. Investe os personagens da ordem doméstica, os representantes da lei, como marionetes careteiras. Evidentemente se deverá buscar antes de mais nada, do lado deste mundo de representações sociais, a perversão intrínseca deste sistema. A psicanálise não escapou desta perversão do mundo normal. Ela quis domar desde o início o desejo. O inconsciente lhe apareceu como a1go bestial, perigoso. As sucessivas formulações de Freud nunca se afastaram desta posição. A energia libidinal deve converter-se no sistema maniqueísta dos valores dominantes, ela deve investir as representações formais. Nada de ter prazer fazendo cocô na cama sem desencadear um investimento culposo!

Com a promoção do complexo de castração passou-se assim das intensidades polívocas a um investimento de valores sociais punitivos. De fato, a crispação da psicanálise no triângulo edipiano representa uma espécie de tentativa de salvaguarda contra esta pulsão de abolição do desejo que o conduz, como que apesar dele, para esta perversão binária maniqueísta. O esquema de Édipo foi construído contra o narcisismo, contra as identificações mortíferas. Mas a pulsão de morte só se constrói a partir do momento em que se abandonou o terreno das intensidades desejantes pelo da representação. O triângulo edipiano é uma tentativa sempre mais ou menos abortada de reter a queda na pulsão de morte. Ele jamais funciona verdadeiramente como triângulo, porque de fato a morte, a abolição semiótica, o colapso libidinal, ameaçam cada um de seus lados. Tudo acaba sempre muito mal na cena do grande fantoche psicanalítico. Entre o pai e a criança, é ameaça de exterminação recíproca (simetria do fantasma de assassinato edipiano e do fantasma “estão batendo numa criança”). Entre o pai e a mãe, é uma “cena primitiva” do acoplamento, vivida pela criança, como um assassinato. Entre a mãe e a criança, é a iminência do desmoronamento narcísico, de retorno ao seio materno, etc., em suma: do suicídio!

Resumindo, diremos que·, distintamente da psicanálise, uma política esquizoanalítica será levada a considerar que a pulsão de morte não é uma coisa em si, que ela está ligada a uma certa maneira de colocar o problema do desejo num certo tipo de sociedade. O desejo desconhece a morte, a negação, e o principal efeito do grande fantoche familialista é o de fazê-lo rir. Estando a negação sempre vinculada à posição de um sujeito, de um objeto e de um referente, o desejo como pura positividade intensiva contorna os sujeitos e os objetos; ele é fluxo e intensidade. Na medida em que um sujeito se encontra vinculado a um sistema de representação, a libido individual cai sob a dependência da máquina capitalista que a constrange a funcionar em termos de comunicação fundada em sistemas binários. O campo social não é constituído por objetos que lhe preexistem. O indivíduo tomado em sistemas bipolares do tipo homem/mulher, adulto/criança, genital/pré-genital, vida/morte, etc., já é resultado de uma redução edipianizante do desejo sobre a representação. A enunciação individuada do desejo já é uma condenação do desejo à castração. Totalmente outra é a ideia de um agenciamento coletivo da libido em partes do corpo, em grupos de indivíduos, em constelações de objetos e de intensidades, em máquinas de toda espécie que fariam o desejo sair desta oscilação entre o triângulo edipiano e seu desmoronamento na pulsão de morte, para conectá-lo a multiplicidades cada vez mais abertas ao campo social.


NOTAS

[1] Guattari refere-se aos debates ocorridos durante os encontros “Psicanálise e Política”, em maio de 1977 em Milão, quando este ensaio foi apresentado pela prime1ra vez.

[2] N. da Trad.: Giovanni Jervis é o nome de um psiquiatra italiano em torno do qual se constituiu uma equipe de enfermeiros, psicólogos e psiquiatras que desde 1969 vem desenvolvendo uma experiência de autogestão dos problemas de saúde mental pela Comunidade, em Reggio Emilia. Esta equipe participou da fundação da Rede Internacional de Alternativas à Psiquiatria (cf. “A Trama da Rede”).

[3] SPK (Coletivo Socialista de Pacientes) foi criado na Policlínica da Universidade de Heidelberg por grupos terapêuticos contendo cerca de 40 doentes. Estes doentes juntamente com seus médicos, o doutor Huber, desenvolveram uma crítica teórica e prática da instituição e desvendaram a função ideológica da psiquiatria enquanto instrumento de opressão. Seu trabalho se defrontou rapidamente com uma oposição crescente por parte da clínica psiquiátrica – o diretor qualificou o grupo de doentes de “coletivo de ódio e agressivo”. Com a repressão, a resistência crescia. Tornava-se impossível liquidar o SPK por meios formais e legais. O senado da Universidade decidiu recorrer à força pública. O pretexto foi fornecido em julho de 71, por um tiroteio ocorrido nos arredores de Heidelberg. Creditá-lo ao SPK permitia liquidá-lo pelos meios mais brutais. Trezentos tiras armados de metralhadora penetraram nas instalações do SPK; helicópteros sobrevoaram a cidade; brigadas especiais da polícia foram mobilizadas; casas foram revistadas sem autorização; os filhos do Dr. Huber foram tornados como reféns; doentes e médicos foram presos. Os autuados foram drogados a força para que aceitassem cooperar com a polícia. O SPK decidiu então dissolver-se.

Dois acusados, o Dr. Huber e sua mulher, passaram anos na prisão, com isolamento quase total. Fazendo-os passar primeiro por loucos, depois por terroristas, através de provas de ligação com o grupo Baader-Meinhof, forjadas pela polícia, pôde-se levar o caso a um tribunal de exceção, na linha dos tribunais nazistas. Um dos advogados de defesa, Eberhard Becker, foi acusado de cumplicidade e considerado culpado. Outro, Jorge Lang, foi encarcerado. Todos os advogados que tentaram assumir esta causa foram perseguidos e afastados através de uma série de manobras. Advogados foram impostos e só tomaram conhecimento do dossiê 15 dias antes da abertura do processo, embora a imprensa tivesse acesso a ele desde o início. Eles foram recusados pelos réus.

No dia da abertura do processo de Karlsruhe, os três acusados foram levados em macas, dois deles com pês e mãos atadas. O casal Huber, que não se via há 15 meses, foi brutalizado e separado vio1entamente, para finalmente ser expulso da sala com o terceiro réu, Hausner. Metade da assistência era constituída de policiais à paisana. Um dos presentes leu uma declaração internacional de solidariedade aos réus, tendo sido imediatamente insultado e espancado – chegando a ter um traumatismo craniano. Logo após. uma parte do público foi também expulsa.

Para maiores esclarecimentos sugerimos a leitura de: SPK Psychiatrie Politique, Maspero. Paris. 1972; Faire de la maladie, une arme, Champ-Libre, Paris, 1973: Procès du SPK. Cahiers de Recherches, maio de 1973, CERFI.

[4] N. da Trad.: O nome “setor” chega à França com Tosquelles, psiquiatra espanhol que durante a Guerra Civil Espanhola esteve na direção dos serviços psiquiátricos do exército republicano, coordenando as ações de higiene mental, nos diversos “setores” do front de luta, e que durante a II Guerra Mundial refugiou-se em Saint-Alban. Muitos hospitais psiquiátricos, na ocasião, serviram de refúgio para os militantes da Resistência e par força das circunstâncias houve muitas modificações no funcionamento asilar. Finda a guerra, tornava-se impossível para os psiquiatras mais progressistas. assim como para muitos enfermeiros e outros profissionais de saúde mental, voltar a sancionar o confinamento asilar. Nasce então, entre outras ideias, a de uma “psiquiatria de setor”, palavra que no início continha ainda seu significado de área de front de luta. A luta pela setorização, considerada a “primeira revolução psiquiátrica”, pretendia a humanização dos hospitais e uma ligação, cada vez maior, com a vida da população. Isto implicava em: esvaziamento paulatino dos hospitais, através da criação de diferentes formas de atendimento distribuídas pela cidade, coordenadas por um sistema de estruturas diferenciadas de acordo com a diferenciação da demanda – conjunto institucional que estabelece uma continuidade entre o tratamento hospitalar e extra-hospitalar; circunscrição da população atendida por cada hospital e, mais tarde, por cada conjunto de serviços psiquiátricos. Esta proposta começou a ser implantada extraoficialmente na década de 50, quando Dauzémon tomou a direção da triagem no hospital Sainte-Anne, começando a distribuir parte dos pacientes para certos serviços que aceitaram “setorizar-se”, ou, como se dizia então, fixar uma “área de recrutamento”. Por volta do final da década de 50, a Securité Sociale (Previdência Social) aceitou oficializar esta prática, mas só para o Departamento do Sena. É a partir da década de 60 que a setorização torna-se doutrina oficial do Ministério da Saúde. A França, desde então, é dividida em setores cobrindo uma população de aproximadamente 60.000 pessoas, contando cada um com um conjunto de equipamentos coletivos de saúde mental. Tornada política de Estado, esta proposta revela contradições, que a tornam alo de sérias críticas: se por um lado interessa ao Estado por ser menos onerosa e mais adequada às necessidades da população, por outro interessa também por ser mais eficaz do ponto de vista do controle ideológico – o acesso à população é mais direto do que através dos tradicionais hospitais psiquiátricos, distribuídos de maneira aleatória no conjunto do país. Torna-se possível detectar de imediato qualquer irrupção de comportamento não conforme à estrutura psicossocial dominante e enquadrá-lo numa ótica psicologizante que o particulariza. Chega-se a considerar que a tutela onipresente do Estado através da setorização, infantiliza a população, castrando seu potencial de iniciativa para assumir os próprios problemas.

Para mais esclarecimentos, consultar Histoire de la Psychiatrie de Secteur ou le Secteur Impossible, Recherches, nº17 (duplo), março de 1975, CERFI.

[5] N. da Trad.: Mony Elkaim, psiquiatra belga, um dos animadores desta experiência, é também um dos fundadores da Rede Internacional de Alternativas à Psiquiatria. Atualmente participa com a equipe de “La Gerbe” de um trabalho psiquiátrico num bairro pobre de Bruxelas.

[6] N. da Trad.: No original manque, conceito proposto pela teoria lacaniana.


FONTE

GUATTARI, Félix. IN: Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo, Brasiliense, 1981. Tradução: Suely Rolnik.

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