Esta entrevista¹ foi concedida por Félix Guattari, a pedido de Suely Rolnik, especialmente para o Simpósio “A Pulsão e seus Conceitos“, organizado por Arthur Hyppólito de Moura e promovido pelo Núcleo de Estudos da Subjetividade da PUC-SP. A entrevista foi realizada por Rogério da Costa e Josaida Gondar, no apartamento de Guattari em Paris, em 12 de agosto de 1992 – duas semanas antes de sua morte.
Essa conversação aborda algumas das temáticas mais caras ao pensamento de Guattari, como os limites da psicanálise, o paradigma ético-estético existencial, as novas narrativas sobre a ciência e os processos de construção de subjetividades. A transcrição desta entrevista foi originalmente publicada na revista Chimères, n. 20, Paris, outono de 1993, e em português no livro As pulsões , Arthur Hyppólito de Moura (org), São Paulo, Ed. Escuta, 1995, e no Caderno de Subjetividade (2010), pp.7-13. A entrevista em vídeo está disponível no Youtube e possui 33 min. de duração. Abaixo segue a transcrição da entrevista completa.
Rogério da Costa: Félix, você afirma que a sua perspectiva consiste em fazer transitar as ciências humanas e as ciências sociais dos paradigmas científicos para os paradigmas ético-estéticos. Qual a importância de uma tal perspectiva na compreensão dos seus trabalhos?
Félix Guattari: Brevemente eu diria que aquilo que me parece sobrecarregar, tornar pesado e difícil o trabalho de elaboração na psicanálise, é esta vontade dos psicanalistas de se colocar como homens de ciência, de colocar a psicanálise como ciência, o que, a meu ver, é um absurdo total sob muitos aspectos. Na verdade, quando queremos captar os objetos incorporais, os objetos mentais, com sua dimensão de ipseidade, sua dimensão de alteridade, de criatividade na relação com o mundo, nos deparamos precisamente, com um objeto que foi sistematicamente eliminado, desde o Renascimento, pelo desenvolvimento da ciência. Então, se quisermos apreender o que há de rico na história do movimento psicanalítico, é preciso apreender o que há de criativo, de inventivo, de romanesco, de fantástico, até de louco, na obra de Freud. É toda essa dimensão de criatividade que nos remete ao paradigma estético. Eu não identifico o objeto da psicanálise com o objeto da arte, este não é absolutamente meu objetivo, o que eu quero não é estetizar a psicanálise, mas captar no seio dos paradigmas estéticos essa dimensão, a mais próxima da criatividade, a mais próxima de um desenvolvimento de linhas narrativas de construções formais que permitem cartografar uma subjetividade que não está já aí, mas que está já aí num movimento de devir. É isto o que eu chamo de uma transferência do paradigma científico para um paradigma estético no domínio da psicanálise.
Rogério; Contudo, você não usa com frequência noções que vieram da ciência? Você não faz justamente uma passagem pela ciência ao utilizar, mesmo no paradigma ético-estético, noções tais como caos, atrator estranho?
Guattari: Sim, isso vem do fato de que se vive em um mundo hiperdesenvolvido no registro da ciência e da tecnologia e, a meu ver, seria totalmente arbitrário querer preservar referências da ordem da literatura romântica ou do drama antigo da época de Sófocles ou de Ésquilo. Nosso mito existencial está impregnado pela ciência. Então não se trata de dizer: eu não quero saber nada da ciência, da tecnologia; ao contrário, estou imerso nela, ela faz parte de nosso romance familiar atual. Meu mito familiar hoje está muito mais próximo da informática, da telemática, de todos esses desenvolvimentos da cosmologia, da biologia, do que do romance familiar na época de Goethe, do mito da natureza e dos sofrimentos do jovem Werther.
Josaida Gondar: Nós gostaríamos de conduzir a discussão agora para a questão específica da pulsão. Você não utiliza com muita freqüência a noção de pulsão em seu último livro, Caosmose². Mesmo assim, você nos apresenta uma noção de subjetividade onde é levado em conta todo um campo de intensidades que fogem ao domínio da representação simbólica. Em que medida, quando você nos fala de repetições assignificantes, de fluxos, de intensidades pré–verbais, você está nos falando de pulsão, ainda que de uma maneira implícita? Qual é a noção de pulsão com que você trabalha?
Guattari: É preciso partir de uma base, de uma aquisição, isto é, a revolução extraordinária operada por Freud, que consistiu em separar no homem a vida pulsional da vida instintiva, sem negar, aliás, a existência do instinto, pois Freud continua a postular, continua a partir de uma noção de instinto, mas ele forja uma noção de pulsão, que não tem só a ver com uma fonte biológica, com uma pressão energética libidinal, pois ele liga aquelas quatro dimensões da pulsão, que são a fonte, o impulso, o alvo e o objeto. E este objeto é um objeto mental, um objeto fantasmático, um objeto cultural, mesmo quando ele tem a ver com partes do corpo, como o seio materno, as fezes ou, com Lacan, o olhar, a voz, e o todo sob a lógica binária do falo. Para mim, o que parece muito interessante, é essa parte do objeto e muito menos a representação pulsional, que é ligada a uma concepção relativamente mecanicista do século XIX, que acaba dando à pulsão, apesar de tudo, uma espécie de infra–estrutura biológica.
Para mim, o que interessa é ligar a pulsão à existência. Mas não à existência massiva, dada ontologicamente, de uma vez por todas, na relação entre o Ser e o Nada (Neant). Mas ver como é que há construção de existência, lógica da existência, maquínica da existência, heterogênese dos componentes existenciais: para mim, é isto a pulsão. Se quisermos compreender a existência, creio que não há interesse em partirmos de metáforas energéticas – como a da libido freudiana –, ou metáforas dinâmicas – como a do recalque –, ou toda essa representação de objetos já discursivos, já tomados em relações de espaço e tempo; mas devemos procurar a pulsão antes dessas relações da discursividade no espaço, no tempo, nas relações energéticas.
É isto o que me leva a propor quatro functores ontológicos. Dois são da ordem da pulsão freudiana manifesta: os fluxos e as máquinas. As máquinas são correspondem à parte representacional da pulsão em Freud – com a ressalva de que para mim elas não são só representacionais, mas constituem também uma maquínica específica. Os dois outros functores não são discursivos, não estão no tempo nem no espaço e, portanto, não pertencem à energética nem à dinâmica: são os universos incorporais e os territórios existenciais. É aí, na perspectiva da composição desses quatro functores ontológicos, que encontramos a pulsão, que encontramos um componente que nos leva a reencontrar, inclusive, os fantasmas originários do freudismo, só que num substrato ontológico inteiramente diferente e completamente separado desse ancoradouro biológico.
Retomemos, por exemplo, os quatro fantasmas originários freudianos, as quatro matrizes pulsionais freudianas – os fantasmas do retorno ao seio materno, da sedução, da cena primária e da castração –, vejamos como os reposiciono em minha perspectiva heterogenética. O fantasma da fusão com o seio materno é, para mim, eu não diria o fantasma, mas, sim, o próprio movimento da caosmose: dissolução no mundo, num nível em que não há nem sujeito nem objeto, e ao mesmo tempo, apropriação de uma dimensão existencial. Só que não é uma dimensão existencial puramente negativa, absolutamente caótica, ela é caósmica, no sentido em que se desenvolve numa certa textura ontológica. Quanto ao fantasma da sedução, é uma relação de fluxos, uma relação de identificação, onde há um objeto que não é realmente um sujeito, é um objeto–sujeito, uma objetividade. Mas uma objetidade que se repete a si mesmo, que é tomado numa relação de espelho, numa relação de pura repetição. Se vocês quiserem, a primeira imagem, a do fantasma originário de fusão com o seio materno, poderíamos representá–la por manchas que se juntariam umas às outras de modo indistinto, enquanto que a relação de sedução seria a repetição de uma barra, repetição de uma marca sem que se possa criar algo que escape deste caráter de fluxo. Se consideramos agora o fantasma da cena primitiva, eu diria que ele é uma máquina de representação que ocupa sempre o terceiro pólo, o terceiro termo, é uma instância de comunicação, de troca, que liga pólos heterogêneos. Por último, quanto ao fantasma de castração – aquele que eu mais recuso, junto com a triangulação edipiana – é algo que implica não somente a posicionalidade de três termos, mas uma autoposicionalidade de si em relação a si, isto é, a autopoiese, a posicionalidade de um território existencial. Encontraríamos, assim, grosso modo, os quatro fantasmas originários da psicanálise, tomados numa polaridade de meu esquema com quatro termos, entre os fluxos, os phylums maquínicos, os universos incorporais e os territórios existenciais.
Josaida: Há um consenso entre os psicanalistas de que pulsão e instinto são coisas muito diferentes e que o que marca essa diferença é a linguagem, ou seja, existe pulsão no caso do homem porque existe a linguagem. É a linguagem que afasta o homem da ordem natural e que o tira do domínio do instinto. Ora, como você não trabalha com a oposição natureza/cultura, de que modo você veria essa distinção entre pulsão e instinto?
Guattari: Os animais têm toda uma série de componentes semióticos elaborados, e eles não são da ordem da linguagem, mas são sistemas de signos (signalitiques) e sistemas simbólicos extremamente elaborados, inclusive ao nível social, ao nível da percepção, ao nível da representação e até ao nível da criação estética (pois há uma estética do mundo animal). Então é totalmente arbitrário dizer que há um mundo do instinto massivo, de pura causalidade linear, por um lado, e um mundo da pulsão, da linguagem elaborada, por outro. E aí, entre os dois, o que é que há? Se você considera as quatro formações do self de que fala Daniel Stern e que retomo em Caosmose, você vê que antes do self verbal há o self emergente, o self núcleo e o self interpessoal, que não são da ordem da linguagem, mas que implicam uma riqueza semiótica extraordinária, de comunicação pelos olhos, pelos gestos, pelas atitudes, pela circulação sanguínea, por humores etc. Há [na criança] toda uma exuberância etológica que emprega componentes semióticos extremamente ricos e, pode–se dizer, até mais ricos do que os dos adultos, porque a linguagem não faz senão limar, turvar essa riqueza, essa acuidade semiótica das comunicações pré–verbais; disto não fala a maioria dos psicanalistas de crianças, que veem a criança como uma espécie de figura completamente perdida no mundo, quando não é nada disto, pois ela tem uma riqueza de percepção extraordinária. Vocês entendem, isto para nós na psicanálise é muito importante, particularmente se você quer trabalhar com psicóticos, porque eles também têm acesso a esse modo de comunicação, que não quero chamar de pré–verbal, porque o verbal está sempre aí ao mesmo tempo. É preciso encontrar a especificidade desses componentes semióticos, o que implica que não se pode fazer uma distinção entre a pulsão e o instinto, porque a pulsão e o instinto são tecidos, trançados de componentes semióticos extremamente ricos, mas heterogêneos.
Josaida: Se não é linguagem, o que faz com que exista a pulsão? De onde vem a pulsão?
Guattari: Bom, eu respondi isso agora há pouco. Para mim, trata–se de uma relação com a existência, uma construção da existência. É uma ontologia construtivista: eu construo o meu mundo através de dimensões maquínicas, incorporais, de territorialização existencial, no seio de uma economia de fluxos. É isso a pulsão: é a pulsão de vida.
Rogério: Então, não há distinção entre pulsão e inconsciente.
Guattari: Exatamente! Há uma relação de imanência entre a pulsão, o inconsciente, a existência e as categorias ontológicas.
Josaida: Você prefere falar de “máquina” mais do que de pulsão, de “fluxo” mais do que de libido, de “desejo de abolição” mais do que pulsão de morte. Eu acredito que isto não seja apenas uma mudança de vocabulário. Em que medida isso representa, para você, uma escolha ética?
Guattari: É uma escolha ética e voltamos para a primeira questão, aquela sobre o paradigma estético: é que, se você parte de uma causalidade do tipo científico para articular a subjetividade à pulsão, você perde todas dimensões de criatividade, todos os coeficientes de liberdade, todas as encruzilhadas, todas as bifurcações possíveis e, com isso, você perde todo o caráter de riqueza permanente de auto–apropriação, por exemplo, do processo analítico. Mas, se você parte, ao contrário, de functores heterogêneos, de um construtivismo permanente da pulsão, a partir daí você tem um problema de responsabilidade ética, você se engaja na construção de um mundo em vez de um outro mundo, você considera, por exemplo, dimensões contextuais, dimensões sociais, dimensões econômicas, dimensões de mass–mídia, em vez de se ater a uma categorização de universais psicológicos, tais como o complexo de castração, a triangulação edípica etc. Você tem uma escolha de responsabilidade, você está exposto a uma responsabilidade ética em todos os momentos de interpretação: você não tem garantia científica mas, sim, um engajamento ontológico permanente ao qual você está confrontado.
Josaida: Existe uma leitura atual da obra de Freud onde a pulsão de morte não é pensada só como uma tendência, como um retorno ao inanimado, mas como uma pulsão criadora, como uma vontade de destruição que destruiria ordens antigas para que pudessem se instalar novas ordens. Segundo essa leitura, haveria em Freud uma coexistência entre ordem, localizada no campo das representações, e o caos, como desordem que estaria relacionada com o campo das pulsões. Você diz que, ao invés da dualidade Eros/Thanatos, você prefere trabalhar com o ir e vir entre caos e complexidade, e nos parece que não é exatamente a mesma coisa de quando se fala numa coexistência entre ordem e caos, como propõe essa nova leitura de Freud. Nós gostaríamos que você explicitasse um pouco essa diferença.
Guattari: Há em Freud, creio, um pensamento fundamentalmente dualista. Quando ele faz sua exploração da caosmose histérica, da caosmose psicótica, ele é tomado por uma vertigem, onde ele tem medo que a realidade desapareça, que se caia num mundo de pulsões, de processo primário, que nos dissolvamos numa espécie de abolição. Minha ideia é a de estabelecer uma relação de imanência entre o caos e a complexidade. O caos contêm em si a complexidade. Na velocidade infinita, o caos é portador de esquemas os mais complexos. Encontramo–nos no coração do mergulho caósmico, a cada vez que entramos numa outra constelação de universo: por exemplo, no sonho, nos processos esquizo, em qualquer tipo de situação de desorientação assignificante, nas provas pelas quais passa o desejo, pelas quais passa o homem, tais como o desmame, a entrada no mundo da linguagem oral, no mundo da língua escrita, no mundo da puberdade. Mas, no coração desta caosmose, criam–se, secretam–se, linhas de possível, mundos de virtualidade. Daí porque, a meu ver a articulação desses movimentos caósmicos não deve ser reificada numa pulsão de morte, oposta a uma pulsão de vida, ou numa relação de oposição entre o desejo e a realidade, mas tais movimentos caósmicos devem ser articulados num ir e vir permanente, que permita compreender o que são esses pontos de articulação entre o desejo e a realidade, o caos e a complexidade.
Rogério: Sobretudo quando você fala de “consistência” ou de “tomada de consistência”, porque esses movimentos implicam justamente que se possa ter universos em relação aos quais territórios existenciais possam tomar consistência…
Guattari: É isso mesmo. Há limiares de consistência que nascem a partir do momento em que as constelações de universos encontram suas articulações no registro discursivo, no registro maquínico, com a instauração de dispositivos, de práticas sociais, de práticas de troca, de relações de conectividade com os fluxos os mais diversos. É nessa articulação, desta vez entre as máquinas e os universos ontológicos, que se coloca o problema de consistência.
Rogério: Você nos falou outro dia do jazz, por exemplo, como uma máquina incorporal, uma entidade, um ecossistema incorporal. Em seguida, de uma forma absolutamente original, você rearticula a noção de “objeto–a” como um “objeto–sujeito” do desejo, o que nos pareceu um movimento extremamente importante. Você poderia nos explicar como o jazz funcionaria como objeto–sujeito do desejo?
Guattari: Pois bem, o jazz nasceu a partir de um mergulho caósmico, catastrófico, que foi a escravização das populações negras, no continente norte–americano e sul–americano. E depois, através de ritornelos os mais residuais desta subjetividade negra, houve uma conjunção de ritmos, de linhas melódicas, com o imaginário religioso do cristianismo, com dimensões residuais do imaginário, das etnias africanas, com um novo tipo de instrumentação, com um novo tipo de socialização no próprio seio da escravidão e, em seguida, com encontros intersubjetivos com as músicas folk brancas que estavam lá. Houve, então, uma espécie de recomposição dos territórios existenciais e subjetivos, no seio dos quais não só se afirmou uma subjetividade de resistência por parte dos negros, mas que, além do mais, abriu linhas de potencialidade a toda a história da música, e não unicamente à história da música norte–americana: lembro a vocês que Debussy e Ravel, os maiores músicos ocidentais, foram extremamente influenciados por esse ritmo e por essa música de jazz. Temos aí, portanto, o exemplo de um mergulho caósmico, numa derrelicção quase total da escravidão negra, que enriqueceu os universos da música os mais elaborados.
Rogério: De acordo quanto ao exemplo do jazz. Mas quando tradicionalmente se fala de “objeto–a”, sobretudo em relação a pulsão, e quando você fala de “objeto–sujeito” como um “atrator estranho”, me parece ser totalmente diferente. Quando se fala em “objeto–a”, isto implica num certo modo de funcionamento da pulsão. Um objeto–sujeito já é uma outra coisa.
Guattari: Se pegamos um exemplo atual, como os modos mais correntes da subjetividade dos adolescentes no Ocidente hoje, que são muito mais próximos do rock do que do jazz, vocês podem notar que, no seio das economias domésticas familiares – com as identificações com o pai, com a mãe, os conflitos e tudo que vocês quiserem – surgem de repente objetos, que são ritornelos musicais–rock, mas que são também personagens, traços de rostidade, às vezes também uma prática musical e que, além disso, têm relação com a televisão etc. Esses objetos tomam uma importância, às vezes, inteiramente decisiva, permitindo ao adolescente sair, criar relações de sociabilidade com gente de sua geração; eles funcionam, portanto, como objetos–sujeitos, como objetidades–subjetividades, que são uma alavanca considerável, que pode desembocar em toda espécie de coisa – inclusive coisas da ordem da delinquência, da droga, essa não é a questão – mas que correspondem a uma mutação subjetiva; que são, se você quiser, o equivalente em nossas sociedades, dos rituais iniciáticos nas sociedades arcaicas: com o objeto da música–rock, com esse objeto muito complexo, multidimensional, se entra em um novo sistema de faixa etária.
Rogério: Você poderia nos falar um pouquinho mais sobre Daniel Stern? Notamos a importância do trabalho dele para você, e você já nos falou um pouco sobre isso, sobre essa maneira dele de conceber vários níveis de subjetivação antes da fase verbal, e que se mantém em paralelo em todas as idades e que fazem intersecções…
Guattari: É que, para mim, uma das coisas das mais geniais, e das mais extraordinárias, que há em Freud é sua descoberta do processo primário. Ele viu que atrás do caos do sonho há linhas de construção, de sobredeterminação, de associação, de composição – há toda uma consistência da existência subjetiva que se dá no próprio seio do processo primário. Depois encontramos mais construções em torno do ego, do superego, toda uma tópica que vai mais no sentido de um id caótico do que de um inconsciente extremamente estruturado. Daniel Stern, sem dizê–lo como eu o digo, já que sua visão é científica, no sentido em que ele parte de dados científicos, do campo da etologia da infância, nos mostra algo de extraordinário. Essa criança da qual dizemos que vive em simbiose com a mãe, que ela é totalmente dependente do mundo, que está totalmente perdida, que está numa relação de derrelicção total – Stern mostra que, na realidade, esta criança antes mesmo do self verbal, tem um papel de teleguiagem das relações dos adultos entre si e com ele; ela não é um sujeito alienado ao adulto, ela controla,
ela está numa relação de co–determinação com a subjetividade dos adultos. Ao mesmo tempo, ela tem uma riqueza perceptiva extraordinária de tudo que se passa em torno dela, em relação ao olhar, à luz, em relação ao ambiente, ela tem um funcionamento, uma máquina noológica perceptiva de uma extrema riqueza. Ou seja, é como se Daniel Stern generalizasse o campo descoberto por Freud do processo primário no nível do sonho, mostrando toda a eficácia desse campo na ordem de outras máquinas, as das relações sociais, as das relações perceptivas, as das relações semióticas. Isto me parece um passo extremamente importante para uma recomposição da psicanálise numa via heterogenética, que nos tira do estruturalismo psicanalítico tal como o conhecemos. Daniel Stern é um tipo extraordinariamente modesto que leva todos esses elementos com confiança e segurança, mas não extrai disso todas as deduções possíveis. Isso cabe àqueles que querem se utilizar de suas descobertas, que o façam. Talvez ele mesmo fará uma obra teórica para tirar todas as consequências disso, isto eu não sei…
Paris, 12 de agosto de 1992
NOTAS
1. Tradução de Suely Rolnik.
2. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Ed. 34, 1992.