O texto corresponde à primeira parte de uma aula intitulada O Anti-Édipo e outras Reflexões [Anti-oedipe et autres reflexions], ministrada por Gilles Deleuze (1925-1995), de maio a junho de 1980, em Vincennes. Esta aula foi dividida em três partes (27 de maio de 1980). Abaixo a tradução das duas primeiras partes, por Leonardo Francisco Amaral (UFRJ), publicada na Revista Fractal em 2016. A transcrição original foi realizada por Fréderic Astier, disponível no site Universidade de Paris 8 (Clique aqui).
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… Uma vez que vocês me concedem a permissão de falar de coisas que Guattari e eu fizemos, e à condição que vocês as recebam modestamente, quero dizer que não penso que isso seja nada de extraordinário. O que penso é que O anti-Édipo, na realidade, deu lugar a uma série de críticas que talvez não fossem absolutamente injustificadas. Há, a meu ver, críticas que foram estúpidas. Mas há um gênero de crítica que sempre me pareceu importante e tocante, que é: é um pouco fácil dizer, ou mesmo ter um ar de dizer, “viva a esquizofrenia!”, e, depois, uma vez que você vê um esquizofrênico …
Ouvinte: Não foi bem isso o que quis dizer.
G.D.: Mas se conecta um pouco.
Ouvinte: Está bem.
G.D: Enfim, deixe-me responder a partir disso, se você me diz, por exemplo…
Ouvinte: Não quis identificar esquizo e atividade esquizofrênica.
G.D.: Certamente, mas é aí que reside toda a ambiguidade.
Ouvinte: Está bem.
G.D.: As ambiguidades entre o esquizofrênico e a atividade esquizofrênica. Evidentemente, é muito difícil – sim, vocês sabem – fazer um quadro lírico da esquizofrenia…
Recordo-me que no momento d’O anti-Édipo, uma psiquiatra que veio me ver, e que era muito agressiva, me disse: “Mas um esquizofrênico, você já viu um”? Eu achei essa pergunta insolente, ao mesmo tempo para Guattari, que é ele quem trabalha há anos numa clínica onde é notório que se vê muitos esquizofrênicos, e mesmo insolente para mim, já que há poucas pessoas no mundo que não veem ou que não viram esquizofrênicos. Então, eu respondi assim, – mas acreditamos sempre sermos espirituosos, e não somos nunca – eu respondi: “Mas, nunca, nunca! Eu mesmo nunca vi um esquizofrênico”. Então, em seguida, ela escreveu nos jornais dizendo que nunca havíamos visto esquizofrênicos. Foi realmente irritante.
(risos na sala)
Mas, eis o que quero dizer, é que há várias – mantenho-me mesmo num nível, talvez, demasiadamente teórico, explicitamente. Se preferirem, na interpretação da psicose, nas grandes interpretações da psicose, o que há? Eu acredito que há dois grandes tipos de interpretação. As interpretações de degradação, de decomposição, quer dizer, as interpretações sob o signo do negativo. A saber, a psicose chega, ela acontece, no momento em que algo se decompõe, ou enquanto há uma espécie de degradação; do quê? Da relação com o real, da unidade da pessoa. Eu diria que essas interpretações por decomposição, degradação, são, em geral, – mas aqui eu resumo enormemente – poderíamos chamá-las de interpretações personológicas. Elas retornam sempre ao Eu como referência de base, à unidade da pessoa, marcando uma espécie de derrota do ponto de vista da pessoa e da sua relação com o real.
Então, em geral, as interpretações personológicas – e eu insisto sobre isso: a personologia teve uma enorme influência sobre a psiquiatria. Por exemplo, o autor do grande manual de psiquiatria, Henri Ey, o inimigo-amigo de Lacan, se lançava na personologia profundamente. Um tipo como Lagache era e tentava fazer uma psicanálise personológica. Para o meu prazer, penso que a tese de Lacan, que ele havia editado sobre a psicose paranoica, é, ainda, de ponta a ponta, atravessada por uma visão personológica que será absolutamente o oposto das teses que ele defenderá em seguida. Bem, há, primeiramente, se vocês quiserem, esta grande corrente.
Há uma segunda corrente que pode ser dita “estruturalista”, mas que, com efeito, é completamente distinta, diferente. Dessa vez, a psicose é interpretada em virtude de “fenômenos essenciais da estrutura”. Não se trata mais de um acidente que ocorre às pessoas sob a forma de uma espécie de mecanismo de decomposição, de degradação. É um acontecimento essencial da estrutura, ligado à distribuição das posições, das situações, e das relações de uma estrutura. E, nesse sentido, todo o segundo Lacan, quero dizer, Lacan após sua tese, o Lacan dos Escritos, lança, por exemplo, uma interpretação extremamente interessante da psicose em função da estrutura.
Já eu, fui sempre atraído por – e é bem por isso que eu insisto sobre: não foi Félix nem eu que inventamos esse ponto de vista, eu penso, antes, que nós dele nos servimos, e que, relativamente, o renovamos. Houve sempre um terceiro tipo de interpretação, que era o de conceber a doença mental e sua expressão: a psicose. Por que sua expressão, a psicose? É preciso que eu me explique, abro bem rápido um parêntese: o que é evidente, me parece, é que não há neurótico que não esteja sustentado sobre algo da ordem de uma psicose. Vemos isso claramente naquilo que chamamos de acidentes neuróticos de jovens, ou mesmo de crianças. E, então, mesmo a neurose, a meu ver, deve estar indexada, não pode ser pensada, senão em função da psicose, como possibilidade mínima.
Quero dizer, a obsessão. Eu não vejo a possibilidade de se fazer uma espécie de dualismo entre as neuroses e as psicoses. Nas neuroses eu veria antes um ponto de parada, pego sobre uma espécie de devir psicótico potencial. Mas o que me interessa nessa terceira tradição, à qual eu faço alusão, é a interpretação, a compreensão da doença mental como processo. E, aí também, não tento dizer coisas muito precisas uma vez que, nesse ponto, os autores que lançaram essa ideia de doença mental ligada a um processo são muito variados. Ao que me consta, se tento fixar pontos de referência históricos, a ideia verdadeiramente de um “processo doença mental” – quer dizer, a doença mental não é mais algo que se passa numa estrutura; não é mais uma afecção da pessoa. Vocês podem ver, nem personológico, nem estrutural. É verdadeiramente… Como dizer? Será que é o próprio processo, ou será um concomitante do processo? Então, o que isso quer dizer? Se vocês pegarem a história da psiquiatria, a ideia de “processo” se distingue. Eu diria que é verdadeiramente um terceiro ponto de vista que é completamente – e mesmo psiquiatricamente – diferente de uma compreensão da psicose, do ponto de vista de uma personologia, ou do ponto de vista de um estruturalismo e de uma estrutura, de uma estrutura mental.
Não é uma noção muito clara essa de processo. Eu tento fixá-la, ainda uma vez. Isso começa, me parece, com a psiquiatria alemã do século XIX, e, depois, o primeiro que levará isso bem longe é um autor, creio eu, um tanto esquecido hoje em dia, que teve, no entanto, muita importância anos atrás: é Jaspers. Jaspers é um caso bastante curioso, pois é um psiquiatra que veio à filosofia. Ele começou como psiquiatra, e há mesmo um manual de Jaspers traduzido em francês que me parece sempre extraordinário, um manual de psicopatologia. Uma das melhores coisas não apenas sobre a loucura como processo, mas como estudo de casos célebres, é um livro que eu considero muito belo de Jaspers, que se chama Strinberg et Van Gogh, que através de um estudo de caso desenvolve essa hipótese da loucura como processo. Além disso, esse livro, na tradução francesa, apareceu prefaciado por Blanchot, e há trinta ou quarenta páginas de Maurice Blanchot que são de uma grande beleza, sob o título, acredito, De la folie par excellence. Parece-me, realmente, ainda um livro de base para todos nós.
Bom, então, por que Jaspers desapareceu provisoriamente? Eu não sei bem. Enfim, ele morreu. Mas por que razão nós o lemos menos? Eu não sei bem. Bem, houve essa via, Jaspers. Ele que leva realmente a ideia de processo a uma expressão ao mesmo tempo psiquiátrica e filosófica bem grande. E, depois, muito estranhamente, essa ideia foi retomada pela antipsiquiatria. Toda a interpretação da antipsiquiatria, a saber, de Laing e de Cooper, no seu início, é fundamentalmente a ideia de um processo esquizofrênico que eles interpretam, precisam, dizendo: “Sim, é uma viagem”; a ideia do processo-viagem. O que isso quer dizer? Aqui eles são bastante fortes. Vejam por que razão Jaspers utilizava muito os métodos fenomenológicos. Com efeito, em quê essa ideia de processo pertence um pouco à fenomenologia? É que isso responde muito a um tipo de experiência vivida, por exemplo, pelo esquizofrênico, ele próprio: o tema da viagem; que aparece constantemente. Não é por acaso que na mesma época os drogados lançaram – os drogados americanos foram bem longe numa concepção de viagem. Bem, todas essas coisas.
Então, eu creio que Guattari e eu entendíamos “processo” ainda em outro sentido. Mas, aqui, pouco importa. Parece-me que é a essa tradição que nos conectávamos. Então, daqui, será que podemos avançar? Se dissermos: a esquizofrenia, ou a psicose, é fundamentalmente ligada a um processo. E eu creio que isso quer dizer o quê? Isso quer dizer, talvez, que a esquizofrenia revele algo que nos chega em peças desconectadas, ou em pequenos trocados, e sempre, por todo lado, e bem constantemente. A saber, que não cessamos de ser pegos, raptados, carregados, pelo quê? É aí que trazíamos uma pequena novidade, já que dizíamos a palavra mais conveniente: é o fluxo. Passamos nosso tempo sendo atravessados por fluxos.
E o processo é o percurso de um fluxo. O que isso quer dizer? Nesse sentido o processo quer dizer, antes de tudo: é a imagem, bem simples, como de um riacho que escava seu leito. Ou seja, o trajeto não preexiste à viagem. É isso um processo. O processo é um movimento de viagem enquanto que o trajeto não preexiste, ou seja, enquanto ele traça, ele mesmo, seu próprio trajeto. De uma certa maneira, chamávamos de “linha de fuga”. É o traçado de “linhas de fuga”. Ora, as linhas de fuga não preexistem a seus próprios trajetos. Podemos sempre dizer que as outras linhas – há, com efeito, viagens nas quais o trajeto preexiste. Se alguns dentre vocês se lembrarem, por exemplo, o que fazíamos ano passado, quando eu tentava determinar o movimento em um tipo de espaço particular que chamávamos de “espaço liso”; isso daria no mesmo. No “espaço liso” toda linha se torna, ou tudo tende a se tornar uma linha de fuga porque, precisamente, as trajetórias não preexistem às próprias projetivas. Não se trata do percurso sobre trilhos, não é o espaço estriado, ou seja, não há estrias que preexistem ao movimento.
Bom, então, suponhamos que em nossa vida – eu não digo que nós sejamos feitos disso, mas que, seja em momentos, seja mesmo inconscientemente, no fim das contas, o inconsciente é feito disso: de fluxo e de processo. Vocês compreendem que nós já nos engajamos bastante, uma vez que, se eu digo que o inconsciente, talvez, seja feito disso, isso equivale a dizer: ora, ele não funciona sob a lei de estruturas? Ele não funciona sob a distribuição de pessoalidades? Trata-se de outra coisa. É um mundo que é completamente despersonalizado, que é desestruturado, de modo algum que alguma coisa lhe falte, mas seu assunto é em outra parte. O processo é, finalmente, a emissão de fluxos quaisquer.
Então, já é possível captarmos algo da esquizofrenia. Bem, sim, tentemos ver: em quê, precisamente, a esquizofrenia tem a impressão, ela própria, de viajar, com tudo o que isso implica? Cada um, cada vez que considera, ou cada vez que se ocupa de alguma coisa, privilegia certos aspectos. Necessariamente, quando reencontramos a esquizofrenia, o que nós fomos levados a privilegiar? As mil declarações, finalmente, dos esquizofrênicos, nas quais seus problemas – não são aqueles do problema pessoal – seus problemas – não são aqueles do problema estrutural – seus problemas são, literalmente: o que me carrega? E isso, me carrega também? Aonde isso me conduz? Ora, a esse respeito, o que me fascina é a maneira que os esquizofrênicos têm de – fazer o quê? Vocês compreendem: de passar o seu tempo. Era isso que gerava uma de nossas reações contra as eternas coordenadas da família da psicanálise. É que eu nunca vi um esquizofrênico que tenha realmente problemas familiares, trata-se mesmo de algo completamente distinto. Enfim, é muito fácil isso que digo, já que podemos sempre dizer: há problemas familiares, mas, em todo caso, ao menos, me concedam que ele não os enuncia, e não os vive, como problemas familiares. Como ele os vive?
Um dos pontos fortes, me parece realmente – é quase agora aquilo que mais me agrada quando repenso n’O anti-Édipo. Uma das coisas fortes de O anti-Édipo, a meu ver, e que deveria poder permanecer, é essa ideia de que o delírio é, imediatamente, investimento de um campo histórico-social. Digo que isso deveria poder permanecer porque é um tipo de ideia simples, não é complicado dizer: bem, vocês sabem, o que vocês deliram, finalmente, é a história e a sociedade, e não sua família! Sua família … Eu repenso sempre as palavras satisfatórias de Charlus, em Em Busca do Tempo Perdido, quando Charlus chega, belisca a orelha do narrador e lhe diz: “Hein, sua pequena avó, você não dá a mínima? Você não se importa, canalha?”. De uma certa maneira estamos todos aí. O que não quer dizer que nós não amamos nossos avós, nossos pais, nossas mães, é claro que os amamos. Mas a questão é saber de qual forma, e enquanto o quê.
Eu creio que nunca é o campo social. Se preferirem, toda a operação da psicanálise é rebater perpetuamente o campo social sob personagens familiares e a estrutura familista. Chamo personagem familiar: a imagem do pai, a imagem da mãe, etc. E essa tendência da personologia. Chamo estrutura familista ou familiar: o nome do pai, a função-mãe, definidos como funções estruturais. Ora, quais sejam as diferenças, há ao menos um ponto comum: é o rebatimento perpétuo sob as coordenadas familiares; que elas sejam interpretadas em termos de estrutura. Ora, para mim, o delírio é exatamente o contrário. Alguém que delira é, literalmente, alguém que assombra o campo social, o campo histórico. E a verdadeira questão é: por que e como ele opera suas seleções, suas seleções histórico-mundiais? O delírio é histórico-mundial. Então, dizer isso, ainda uma vez! Creio que é a ideia mais simples, a mais concreta, e à qual eu retorno, acima de tudo. Ora, bizarramente, ela não funcionou de modo algum, no fim das contas. E eu me digo que o que é surpreendente é que, ainda assim, creio que O anti-Édipo seja um livro que teve muita influência, mas a título individual.
A derrota melancólica é que isso, estritamente, jamais impediu minimamente que os psicanalistas continuassem suas debilidades, e, sem dúvida, era forçoso, era inevitável. Mas, à época, era menos evidente que inevitável. Então, sim, eu insisto um pouco nesse ponto. Se vocês considerarem um delírio: é alguém que através de um campo histórico-mundial, através de um campo histórico e social, traça as suas linhas. Então, é a mesma coisa que o processo que nos carrega. Ainda uma vez, o delírio consiste em quê? Ele não consiste em delirar “meu pai e minha mãe”. Ele consiste em delirar o negro, o jovem, o grande mongol, a África, etc. E se vocês pegarem – então, eu compreendo, eu ouço a objeção imediata que pode surgir: tudo bem, mas o que há sob isso? Eu diria que não há nada atrás disso, porque é isso o “atrás”, é isso o “abaixo”. E se vocês não compreendem, então, tomo o exemplo de grandes delirantes. E é por isso que um ano havíamos formado, aqui, um grupo, particularmente, com Claire Parnet e com um outro que se chamava André Scala. Éramos alguns a fazer a seguinte operação – que nesse momento muito nos interessava: pegávamos os delírios, e os comparávamos. Os delírios nos quais psicanalistas ou psiquiatras falavam, e o enunciado do delírio. Os enunciados do delírio, e os enunciados que retínhamos de psiquiatras e psicanalistas. Então, aí, tínhamos realmente como que dois textos … E, justamente, os juntávamos!
Ora, era inacreditável. Quero dizer, fazer essa experiência! Não é possível esquecer essa experiência, pois aí vemos a espécie de imposição da operação psicanalítica ou psiquiátrica. Vemos o quanto essa imposição é feita. Então, sobre os pontos! Tomo um exemplo: o que é que Schreber, o presidente Schreber, o famoso presidente Schreber – então, nós o havíamos estudado muito minuciosamente, isso tinha nos tomado muito tempo. Se vocês pegarem seu delírio; o que é? O que vocês veem? É muito simples. Vocês veem um tipo que não cessa de delirar; o quê? A Alsácia e a Lorena. Ele é uma jovem alsaciana – Schreber é alemão. Ele é uma jovem alsaciana que defende a Alsácia e a Lorena contra o exército francês. Há todo um delírio de raças. O racismo do presidente Schreber é desenfreado, seu antissemitismo é desenfreado, é terrível! Toda sorte de coisas nesse sentido. É verdade que Schreber tem um pai. Seu pai, o que ele faz? Não é nada. O pai é um homem muito conhecido na Alemanha. E é um homem muito conhecido por ter inventado verdadeiras máquinas de tortura, máquinas sádicas, que estavam muito na moda no século XIX, e que tinham por origem Schreber. Em seguida, muitos o imitaram. Eram máquinas de tortura para crianças, para a administração adequada das crianças. Nas revistas, ainda do fim do século XIX, vocês encontrarão anúncios dessas máquinas. Cito, por exemplo, as mais inocentes: máquinas antimasturbatórias; as crianças dormem com as mãos atadas, coisas desse tipo. E são máquinas bastante assustadoras, pois a mais pura, a mais discreta, é uma máquina com uma placa de metal atrás, e um suporte para a mandíbula em metal para que a criança se atenha à mesa. Essas máquinas faziam muito sucesso. Bom, o pai é inventor dessas máquinas.
Quando o presidente Schreber delira, ele delira também todo um sistema de educação. Há o tema da Alsácia e da Lorena, há o tema do antissemitismo e do racismo, há o tema da educação das crianças. Há, enfim, a relação com o sol, com os raios do sol. Eu digo: mas, ele delira o sol, ele delira a Alsácia e a Lorena, ele delira a língua primitiva do Deus primitivo, ele inventa para si uma língua que remete às formas do baixo Alemão! Bom, ele delira o Deus Sol … Peguem o texto de Freud ao lado; o que vocês veem? Bem, acontece precisamente que Schreber escreveu seu delírio, então, é um bom caso. Peguem o texto de Freud ao lado, eu os asseguro, enfim, se vocês tiverem a lembrança desse texto: em nenhuma página se tem a questão de nada disso! É a questão do pai de Schreber enquanto pai, e unicamente, todo o tempo, todo o tempo. O pai de Schreber. E o sol é o pai, e Deus é o pai, etc., etc.
Ora, a mim, o que sempre me impressionou, é que os esquizofrênicos, mesmo em sua miséria e dor, não carecem de humor. Não os incomoda muito quando lhe dizemos coisas desse tipo, quando eles sofrem um tal discurso. Eles estão, antes, de acordo. Antes de tudo, eles têm tamanha vontade de ser bem-vistos, de ser cuidados, que, assim, eles não vão – ou então eles se irritam, eles dizem: “Esqueça, não se incomode comigo, paz”! Houve na televisão uma transmissão sobre a esquizofrenia não há muito tempo, na qual havia um perfeito esquizo que pedia um cigarro. A psiquiatra, não se sabe porque, lhe diz que não: “Não, não, nada de cigarro”. Então ele diz: “Ah, bom, tudo bem”. Ora, vocês compreendem? Quando dizemos coisas como: “Você delira o sol, mas, no fim das contas: você não percebe que o sol é seu pai”? O que vocês querem que o esquizofrênico diga? O que vocês pensam que ele diz? É como quando lhe perguntamos: “Qual é seu nome”? Para inscrever seu nome no carnê, nos registros do hospital. Isso não os incomoda muito. No fim, eles dirão: “Sim, sim doutor; sim, o sol é meu pai, apenas meu pai”. Bem, ele delira sobre a Virgem. Por exemplo, Gérard de Nerval. Se dissermos: “Mas você não vê que a Virgem é sua mamãe”? Ele dirá: “Bom, sim, mas é claro, é o que eu sempre disse, eu sempre disse que minha mãe é a Virgem”. Ele “endireita” seu delírio, e o recoloca a seus pés. É recorrente. Eu nunca vi alguém delirar, ainda uma vez, nas coordenadas familiares.
Como é que, certamente, o tema dos parentes interfere no delírio? E, por quê? Unicamente enquanto eles valem como espécies de intermediários, de portas, ou seja, eles colocam o sujeito delirante em relação com coordenadas histórico-mundiais. “Oh, minha mãe é a Virgem”; mas o que conta é a relação com a Virgem. Peguem, por exemplo, Rimbaud. Quero dizer, é preciso realmente não esmagar os delírios! Então, certamente, nem todo delirante é Rimbaud. Mas, ainda assim, acredito que o delírio tem uma grande potência. Mas qual é a potência do delírio? Rimbaud se coloca a delirar, não sob a forma de suas relações com sua mãe. Porque, francamente, não se deve abusar, é vergonhoso, é humilhante, há algo de deprimente em remeter isso perpetuamente a – como se as pessoas que deliram estivessem a tagarelar historinhas. Não posso nem mesmo dizer “histórias de criança”, pois a criança nunca viveu dessa maneira. Vocês compreendem? Uma criança vive seus parentes num campo histórico-mundial. Ela não os vive num campo familiar, ela os vive imediatamente.
Imaginem: vocês são uma pequena criança africana durante a colonização. Vocês veem seu pai, sua mãe. Eles estão em relação com o quê, seu pai, sua mãe, nessa situação? Eles estão em relação com as autoridades coloniais. Eles estão em relação com isso, com aquilo. Considerem um filho de imigrante hoje na França. Ele vive seus pais em relação com o quê? Ele não vive seus pais simplesmente como pais. Nunca ninguém viveu seus pais como pais. Considerem alguém cuja mãe faz limpeza, e alguém cuja mãe é uma rica burguesa. É bem evidente que o que a pequena criança visa – e muito rapidamente, muito cedo – o que ela visa através dos temas parentais: são os vetores do campo histórico-social.
Por exemplo, se uma pequena criança é levada bem cedo por sua mãe à casa de um estrangeiro, ou seja, da patroa da mãe, como isso acontece frequentemente com as trabalhadoras domésticas. É evidente que a criança tem uma certa visão de “linhas” de um campo histórico, de um campo social. Se bem que, mais uma vez, eu salto! Mas é a mesma coisa … Enquanto Rimbaud lança suas espécies de delírios-poemas, o que ele nos diz? Ele nos diz: eu sou um negro, sou um viking, sou Joana D’Arc, pertenço a uma raça inferior por toda a eternidade. É isso delirar? Sou um bastardo, etc. E “sou um bastardo” não quer dizer “tenho problemas com meu pai e minha mãe”. Significa que o delírio é essa espécie de investimento, essa espécie de investimento, pelo desejo, do campo histórico e social. De modo que a interpretação que propúnhamos, as regras para compreender um delírio, eram essencialmente essas. É evidente que os parentes não são senão “placas indicadoras” de todos esses vetores que atravessam o campo social. De modo que, já resgatar essa dignidade ao delírio, ou resgatar essa dignidade ao delirante, é, me parece, conceber que o delirante não é pego num problema de infância, pois já é verdade que a criança, se delira, delira dessa maneira
Vocês compreendem, havíamos feito o experimento nessa mesma perspectiva de pesquisa, havíamos feito o experimento a propósito da psicanalista que nos parecia a menos comprometida nessas histórias de rebatimento sob o campo familiar, a saber, Melanie Klein. Ora Melanie Klein analisa um pequeno garoto que se chama Richard. E, para mim, é realmente uma das psicanálises mais vergonhosas que possamos imaginar. Pois é durante a guerra, Richard é um jovem judeu, e ele não tem senão uma paixão: os mapas geográficos de guerra. Ele os fabrica, ele os colore. Seus problemas são Hitler, Churchill. O que é tudo isso, o que quer dizer a guerra? Sim … ele faz avançar os navios, os exércitos. E, aí, é dito por Melanie Klein – é por uma má vontade – ela não cessa de dizer: “Eu o interrompia, eu mostrava a ele que Hitler era o pai malvado, que Churchill era a boa mãe”, etc., etc. É sofrível! E o pequeno quebra.
Essa análise é muito interessante, pois há não sei quantas sessões, e tudo é cronometrado. Essa psicanálise vergonhosa apareceu na França nas edições Tchou. É alarmante; a princípio, ele aguenta o golpe. Ele é espirituoso com a senhora Klein. Ele diz: “Oh, você tem um relógio”? Ele diz o que “claramente” quer dizer: “Tenho vontade de tirá-lo”. Então, ela lhe diz: “Por quê você pede isso”? E, em seguida, ela interpreta, ela diz que ele se sente ameaçado em suas defesas inconscientes. Diga você, há apenas uma vontade: escapar, escapar. E, depois, pouco a pouco, ele já não pode mais. Então, ele aceita tudo. Ele aceita tudo, mas a que preço? Eu mesmo não o sei.
Bom, e para cada caso é assim. Cada vez que vocês deliram, vocês encontram essas afirmações que são de esplendor. Esses delírios são, ao mesmo tempo, verdadeiras razões de ser. É a relação de alguém com os Celtas, com os Negros, com os Árabes, e etc. E quem não tem? E se é um árabe, são relações com os brancos, com tal época histórica. Falemos do masoquismo. Pronto, é um caso no qual nem mesmo há delírio. Pode haver nele delírio; não há necessariamente delírio. Pego, então, – pois é um caso que estudei muito, há muito tempo – o caso de Sacher Masoch, ele próprio. A psicanálise não cessa de falar do papel do pai e da mãe como geradores do masoquista. A saber, em qual caso e em qual figura, sempre essa dupla, pai e mãe, vai engendrar, seja uma estrutura masoquista, seja acontecimentos masoquistas. Mas é extremamente sofrível tudo isso! O pai de Masoch, por exemplo. Se pegamos seu caso – não digo que seja um caso geral: ele é diretor de prisão. Então, a psicanálise, em relação a isso, dá uma resposta engraçada, que é a famosa noção, que me parece particularmente sinuosa, de “posteriormente”. Ela diz: ah, está bem, tudo isso intervém posteriormente. Mas, no âmbito da pequena infância isso não interfere, o que conta é a constelação familiar.
Eu diria que mesmo bebê, mesmo antes de falar – vocês perguntariam: não haveria comparação? Não há espaço para comparação. Ele não se diz: “Eu estou numa prisão”, ou “meu pai dirige uma prisão”. O que ele experimenta é uma certa constelação muito impressionante, que é aquela de uma potência sobre um lugar escuro e fechado. E pouco importa que ele não compare, posto que ele não sabe nem mesmo da existência de outros lugares. Mas, é evidente que, ainda pequeno, ele não vive simplesmente seu pai como pai, ele vive seu pai sob a potência-pai e … E … – isto estando indissociável – pai … E … guardião da prisão. Bom, isso conta? Em seguida, à medida que Masoch pessoalmente desenvolve, em certos momentos, um verdadeiro delírio, esse delírio consiste em quê? Esse delírio não é simplesmente um delírio, é também uma política. Masoch vive no império Austro-húngaro. Toda sua vida é uma espécie de reflexão, mas de reflexão ativa, e de participação no problema das minorias no império austríaco. E o que são esses temas obsessivos? Seus temas obsessivos são o amor cortês, com as provações que os amantes se impõem, e o papel das mulheres nas minorias. Para mostrar que os movimentos minoritários – Masoch é um desses que disseram mais profundamente: os movimentos minoritários são profundamente animados pelas mulheres. Há tudo isso que se mistura para constituir essa espécie de masoquismo que delira as minorias, que delira a Idade Média no âmbito do amor cortês, e que delira o mundo das prisões. Digo, se vocês reduzem isso a um problema de Masoch criança em relação com seu pai e sua mãe, então, não há mais nada a ser dito, é grotesco… Eu os peço, cada vez que vocês estiverem, seja frente a uma transcrição, seja frente a um áudio de algo delirante, vocês verão que o que está investido é fundamentalmente um campo histórico-mundial. E eu chamaria de “linhas de fuga”, as linhas que reconectam o delirante a tal direção, ou a tal região do campo histórico mundial.
Então, se é assim, tento apenas dizer “processo”. Talvez fique um pouco mais claro. Alguma coisa nos acontece, alguma coisa nos carrega. Toda a questão de uma análise que não seria uma psicanálise; é qual? O que é? Seria: quais linhas você traça? Quero dizer, para mim, a análise não pode ser nem uma interpretação, nem uma operação de significação, mas um traço cartográfico. Se vocês não encontram a linha que compõe alguém, que compreende suas linhas de fuga, vocês não compreendem o problema colocado, ou que se coloca. Ora, com efeito, as linhas de fuga não são uniformes. Uma linha de fuga mesmo é uma operação ambígua. E é isso o processo, é isso que nos carrega. Evidentemente, isso quer dizer que, para mim, as linhas de fuga são o que há de criador em alguém. As linhas de fuga não são linhas que consistem em fugir – se bem que isso consiste em fugir, mas é a fórmula de que gosto muito, de um prisioneiro americano que lança o grito: “Eu fujo, sem parar, mas fugindo eu procuro por uma arma”.¹ Procuro uma arma, ou seja, eu crio alguma coisa. Finalmente, a criação é o pânico, sempre. Quero dizer, é sobre linhas de fuga que criamos, pois é sobre linhas de fuga que não temos mais certeza alguma, as certezas ruíram. Então, o processo – e aqui eu creio responder mais diretamente enfim à sua questão. Eu diria, precisamente, que as linhas não preexistem ao traçado que fazemos, e, em seguida, que nem toda linha é uma linha de fuga: há outros tipos de linhas. Então, um ano, aqui, estávamos empenhados nisso. Creio que não passamos longe de um ano a estudar os tipos de linha que compõem alguém. Que compõem alguém no sentido individual ou de grupo, num campo social ou num campo histórico-mundial.
No limite, distinguiríamos como que vários tipos de linha. Nos interessávamos muito por uma novela esplêndida, já que, também aí, o delírio não está longe. Uma novela muito bela de Fitzgerald, na qual ele distingue – ele tem toda uma linguagem, todo um vocabulário – os grandes cortes, pequenas fissuras, ou verdadeiras rupturas. E, finalmente, vivemos disso. E ele tenta mostrar, e mostra muito bem, que esses três tipos de linhas – eu creio que há, sempre, na vida de toda gente, esses três tipos de linhas, mas uns que abortam, e outros que … Bom, é quase uma análise de linhas num sentido de linhas da palma da mão, salvo que não estão na palma da mão essas linhas. Eu mesmo não seria capaz de compreender alguém se não pudesse traduzi-lo numa espécie de desenho linear. Seria preciso três cores. Ao menos três cores. De fato, muito mais. E traçar as linhas nas quais ele se encontra, e como ele se resolve². Vocês compreendem? Todas essas linhas que se desembaraçam, que se emaranham terrivelmente, eu proporia chamá-las de “linhas de segmentaridade dura”.
E todos temos linhas de segmentaridade dura. Não se trata de dizer que umas são más e outras boas. Se trata de se resolver com todas essas linhas. As linhas de segmentaridade dura, para mim, são coisas que todos conhecem bem. Mas, já aí, existem muitos casos. Há casos muito diferentes nesse primeiro pacote de linhas. Eu mesmo gostaria realmente de chegar quase a me conceber e a conceber os outros como, unicamente, pacotes de linhas abstratas. Então, essas linhas não representam nada, mas elas funcionam, elas operam. E, para mim, a Esquizoanálise é unicamente isso: é a determinação de linhas que compõem um indivíduo ou um grupo, o traçado dessas linhas. Ora, isso concerne a todo o inconsciente. Essas linhas não são imediatamente dadas, nem em sua importância respectiva, nem em seus avanços. É por isso que antes que uma história, eu sonho uma geografia, ou seja, uma cartografia. Fazer o mapa de alguém ….
Então, o que é a segmentaridade dura? Bom, somos segmentarizados por todos os lados. Somos segmentarizados por todo lado. É um primeiro tipo de linha que nos atravessa. Quero dizer, somos, a princípio, segmentarizados imediatamente: o trabalho, o lazer, os dias da semana, o dia, a noite. Vocês veem? É uma linha de segmento. O trabalho, o dia de férias, o domingo, enfim, o tipo de metrô, de trabalho, etc. Uma espécie de segmentaridade. Há toda uma burocracia da segmentaridade. Quando vocês vão de um escritório a outro para conseguir um documento, o menor que seja; vê-se bem o que é a segmentaridade social. Enviam-nos de um segmento a outro.
Mas também há uma segmentaridade ainda mais perturbadora, mais difícil. É que eu não poderia dizer: há “uma” linha de segmentaridade. Não é a mesma para todos. Isso é tão variável para cada um, a partir do ofício, a partir dos modos de vida … Somos segmentarizados como vermes! Mas não podemos dizer que não é certo, isso depende, depende do que vocês retiram disso. Mas é um primeiro composto de suas linhas. Um segmento, um outro segmento … “Ah, eu entro aí”? “Ah, estou em casa, o dia acabou”? “Que não venham me importunar”! Passar de um segmento a outro … Há aqueles – reparem – que possuem bem pouco, nos quais essa linha é como que debilitada, enfraquecida. Eles são muito sedutores, esses que tem uma segmentaridade muito enfraquecida. Tem-se a impressão de que eles são bastante móveis, que passam de um segmento a outro muito mais rapidamente que os outros, que tem uma segmentaridade muito mais flexível. Bom, mas digo por alto. Há nesse domínio da segmentaridade já todo um pacote de linhas, e não apenas uma. Pois vocês compreendem que a linha de segmentaridade é bem orientada do ponto de vista do tempo.
Nomeadamente, é a partir de segmentaridades que se faz a triste evolução da vida. Por exemplo, envelhecesse: jovem–velho. É outra segmentaridade. Vocês veem que elas se subdividem em todas essas segmentaridades: homem–mulher. Aqui os homens, lá as mulheres! Tudo isso é segmentarizado: “Ah, eu era jovem, não sou mais”? “Ah, eu tinha talento” … “O talento, o que se fez dele”? Vocês reconhecem o tom. Mas não é de modo algum um tom melancólico na obra de Fitzgerald – para aqueles que gostam. O que são esses fenômenos de perda da juventude, de perda da beleza, de perda do talento; o que se faz sobre essa linha? E como poderemos suportar tudo isso? É aí! Há, sobre essa linha, sempre rupturas, fissuras. Passa-se de um segmento a outro por uma espécie de fissura. Há pessoas que suportam… Essa linha é bem difícil para cada um, ou para os grupos. Mas os grupos conferem todo um status já a essa primeira linha.
E, depois, há uma outra espécie de linha. Sabe-se bem que, ao mesmo tempo, não é que a primeira seja uma aparência, mas que, ao mesmo tempo, ela se passa por outras coisas. Que não se tem simplesmente os homens aqui e as mulheres lá. Que há a maneira pela qual os homens são mulheres, e a maneira pela qual as mulheres são homens, em coisas muito mais … Como dizer? Literalmente, muito mais moleculares. Uma linha na qual é muito menos aparentemente determinado que – alguém faz um gesto, hein? Alguém faz um gesto no âmbito de sua profissão e eu tenho como que uma impressão de desconforto. Os romancistas sempre jogaram muito com isso. Tenho uma impressão desconfortante, e digo: então, esse gesto não se adapta, de onde vem ele? Ele parece um pouco incongruente, ele vem de outra parte, ele vem de outro segmento. Aí se faz como que uma espécie de interferência de segmentos.
Não é mais uma linha de segmentaridade preestabelecida de tipo algum. É uma linha de segmentação fina, em vias de se fazer: pequenos surtos, coisas pequenas, caretas… Que vêm de onde? Estranho. Uma linha que não procede mais por cortes, espécies de binaridade, dualismos: homem–mulher, rico–pobre, jovem–velho, mas que procede por … Fitzgerald soube dizer: por pequenas fissuras. Pequenas fissuras, como uma louça que só se quebrará após pequenas fissuras. Mas não é o mesmo caminho, aquele do grande corte, e esse das pequenas fissuras. Então, finalmente, apercebemo-nos de que envelhecemos sobre a primeira linha, enquanto que envelhecer é uma espécie de processo que segue longamente sobre a segunda linha. O tempo das duas linhas não é o mesmo. Eis um segundo tipo de linha que, por sua vez, é muito diverso. É um segundo pacote de linhas.
E, depois, há linhas, uma vez mais, de um outro tipo: linhas de fuga. As linhas que criamos, e sobre as quais nós criamos. Às vezes, nós nos dizemos: mas elas estão como que encalhadas, elas estão como que bloqueadas. Às vezes, elas se desvencilham, elas passam por verdadeiros buracos, elas se destacam. Às vezes, elas estão perdidas … Os outros dois tipos de linhas as engoliram. E, depois, elas podem sempre ser retomadas. O que é esse terceiro tipo de linha? Se dizemos: fazer uma esquizoanálise de alguém. Isso seria chegar a determinar essas linhas, e os processos dessas linhas. Ora, para responder, enfim, à questão, uma coisa muito simples: chamemos “esquizofrenia” o traçado de linhas de fuga. E esse traçado de linhas de fuga é estritamente coextensivo ao campo histórico-mundial. Eu, pequeno burguês francês que não saí do meu país; o que eu deliro, ainda uma vez? Eu deliro a África e a Ásia, à guisa de vingança. E, por quê? Pois é isso o delírio… E não é preciso ser louco para delirar.
Então, se chamo isso de processo: é esse fluxo que me carrega pelo campo histórico-social a partir de vetores. Chamemos isso de viagem, à maneira de Laing e Cooper. Não vejo nisso um inconveniente, pois, com efeito, posso, também, muito bem delirar a pré-história, posso muito bem ter algo a tratar com a pré-história. De toda maneira, é isso que deliramos. Então, o que se passa? Eu digo que cada tipo de linha tem seus perigos. Eu creio que o perigo próprio à linha de fuga, a essas linhas de delírio, é qual? É, com efeito, uma espécie de verdadeiro desmoronamento. O que é um desmoronamento? E, bom, o perigo próprio às linhas de fuga – e é fundamental, é o mais terrível perigo – é que a linha de fuga se torne uma linha de abolição, de destruição. Que a linha de fuga que, normalmente, e enquanto processo, é uma linha de vida, e que deve traçar como que novos caminhos de vida, se torne uma pura linha de morte. E, finalmente, há sempre essa possibilidade. Há sempre a possibilidade de que a linha de fuga cesse de ser uma linha de criação e gire em círculos, como que se pondo a girar sobre si mesma, e desmoronando naquilo que chamamos um ano de “buraco negro”. Ou seja, tornando-se uma linha de destruição pura e simples. E é isso que, a meu ver, explica um certo número de coisas. Isso explica, por exemplo, a produção esquizofrênica enquanto entidade clínica, a esquizofrenia enquanto doença. E creio que o esquizofrênico é fundamentalmente e profundamente doente. É aquele que “apreendido” pelo processo, carregado por seu processo, por um processo… não aguenta o golpe. Ele não resiste ao golpe. É duro demais … É duro demais.
Vocês me dirão: é preciso ainda dizer o porquê; o que se passou? Se necessário, nada aconteceu. Quero dizer, nada se passou, pois não havia nada. Há um texto maravilhoso de Chestov a propósito do famoso escritor russo Tchekhov. Chestov não gosta de Tchekhov, equivocadamente, ele não o aprecia, ele até o detesta. Ele diz a razão pela qual ele não gosta de Tchekhov, ele diz: “Vocês compreendem? Quando vocês leem Tchekhov, vocês têm sempre a impressão de que alguma coisa se passou e nem é possível dizer o quê!”. A saber, tudo se passa como se Tchekhov estivesse tentando alguma coisa que exigisse mesmo um esforço considerável, e depois, como que tropeçasse. E que ele se mostra, então, incapaz do que quer que seja. Que para ele – para ele, Tchekhov – o mundo está acabado, e não é senão amargura.
O que se passou? O que se passa para que alguém quebre? Vocês me dirão: quebrar à maneira de Tchekhov, nada mal hein? Sim, mas, talvez possamos ter uma visão toda outra de Tchekhov. Mas o que se passa quando alguém quebra? Efetivamente, o que ele não pôde suportar? Em todo caso, eu digo que é aí, e é nesse nível: o que alguém não pode suportar? E, bem, é alguma coisa que não se pode suportar que marca, me parece, o desvio da linha de fuga, que cessa de ser criadora, e se torna linha de morte pura e simples. Há duas maneiras de se tornar linha de morte: de se tornar linha de morte para os outros – e frequentemente as duas são muito ligadas – e linha de sua própria morte. E, finalmente, por que isso está ligado? É complicado, mas pego o caso, por exemplo – pego casos aqui sempre literários. O que se passa nos casos célebres, como o de Kleist? Kleist que escreve realmente por um processo. Esse processo lhe dá toda sorte de signos muito esquizofrênicos: a gagueira, as estereotipias, as contrações musculares, tudo isso. Mas tudo isso nutre durante muito tempo um estilo. E um estilo não é simplesmente alguma coisa de estética. Vocês vivem como vocês falam, ou antes, vocês falam como vivem. Um estilo é um modo de vida. Com tudo isso ele inventa um estilo, uma espécie de estilo, que faz com que uma frase de Kleist seja reconhecível entre outras. O que se passa? Tudo isso levará a uma ideia muito delirante que estava lá desde o início, no pensamento de Kleist, a saber: como se matar a dois? Como se matar a dois? O que faz com que sua linha de fuga – ele atravessa a Alemanha! Vê-se bem o que é o processo no caso de Kleist: ele salta sobre o cavalo e atravessa a Alemanha. É o grande momento romântico alemão. Bem, vocês me dirão: “O processo não é apenas isso”. Está bem, o processo não é apenas isso. Digamos que isso já é o signo geográfico do processo. Há pessoas que permanecem em seu lugar e que são apreendidas pelo processo.
Parece-me evidente que as personagens de Beckett vivem intensamente o que poderíamos chamar de processo. Ao que me parece, interpreta-se Beckett muito dificilmente em termos de pessoas, de personologia, ou em termos de estrutura. É uma questão de processo, aí também. Bom … e algo vai mal. O que isso quer dizer? Quer dizer que o processo que devia – mas o que quer dizer “que devia”? – ser uma linha de vida, ou seja, de criação, e que devia ter sido uma espécie de chance suplementar dada à vida; torna-se empreendimento de morte. Como se matar a dois? Uma morte exasperada à maneira de Kleist, ou mesmo uma morte tranquila. O que faz com que Virginia Woolf se lance no lago e se afogue dessa forma? Não se trata de modo algum de uma morte exasperada, é que de certa maneira ela se cansou. Ela está cansada; de quê? Ela que, com efeito, tinha um processo prodigioso.
O que se passa, então, sob as formas exasperadas? É dessa maneira, se preferirem. Eu tento dar um conteúdo concreto, vivido, vívido, à noção de fascismo. Eu tentei dizer algumas vezes em qual ponto, para mim, o fascismo e o totalitarismo não são de modo algum a mesma coisa. É que o fascismo – parece um tanto místico isso que digo, mas me parece que não é – é tipicamente um processo de fuga, uma linha de fuga, que vira imediatamente linha mortífera: morte dos outros e morte de si mesmo. O que isso quer dizer? Todos os fascistas sempre o afirmaram. O fascismo implica, fundamentalmente, contrariamente ao totalitarismo, a ideia de um movimento perpétuo, sem objeto nem fim. Movimento perpétuo sem objeto nem fim: de uma certa maneira, pode-se dizer, é isso um processo. Com efeito, o processo é um movimento que não tem nem objeto nem fim. Que não tem senão um objeto: sua própria realização, ou seja, a emissão de fluxos que o correspondem.
Mas eis que há fascismo enquanto esse movimento sem fim e sem objeto vira movimento de pura destruição. Estando entendido o quê? Estando entendido que se fará morrer os outros, e que sua própria morte coroará essa dos outros. Isso que digo sobre o fascismo parece bastante místico, mas, com efeito, me parece que as análises concretas o confirmam bem fortemente. Quero dizer, um dos melhores livros sobre o fascismo, que já citei, que é aquele de Arendt, e que é uma longa análise das instituições fascistas, mostra muito bem que o fascismo só pode existir por uma ideia de uma espécie de movimento que se reproduz sem cessar, e que se acelera. Ao ponto que na história do fascismo, quanto mais a guerra corre o risco de ser perdida pelos fascistas, mais se faz a exasperação e a aceleração da guerra. Até o famoso e derradeiro telegrama de Hitler, que ordena a destruição do habitat e a destruição do povo.
Tudo começará pela morte dos outros, mas é entendido que chegará a hora de nossa própria morte. É esse o discurso de Goebbels desde o início; sustentando-o. Pode-se chamar de propaganda, mas o que me interessa é: por que a propaganda era orientada em tal sentido desde o início? É completamente diferente de um regime totalitário a esse respeito. E uma das razões históricas importantes me parece ser: por que, ainda uma vez, os Americanos, e mesmo a Europa, não fizeram aliança com o fascismo? E, bem, pode-se ter certeza de que não foi nem a moralidade, nem o anseio de liberdade, que os determinou. Então, por que eles preferiram se aliar à Rússia, e ao regime stalinista? O qual, diga-se o que se quiser, era um regime que pode ser chamado de totalitário, mas que não era um regime do tipo fascista. E é bem diferente.
É evidente que o fascismo não existe senão por essa exasperação do movimento, e que essa exasperação do movimento não podia dar garantias suficientes. Enfim … E a desconfiança a respeito do fascismo no âmbito dos governos e dos Estados que formou a aliança durante a guerra. É o que parece. Se vocês quiserem, é aí que há sempre um fascismo potencial, enquanto uma linha de fuga vira uma linha de morte. Então, é por isso que, vocês compreendem, a distinção que eu faria entre esquizofrenia como processo e esquizofrenia como entidade clínica, é que a esquizofrenia como processo é o conjunto desses traçados de linhas de fuga, mas a produção da entidade clínica se dá enquanto, precisamente, alguma coisa não pode se manter sobre as linhas de fuga. Alguma coisa é dura demais, “alguma coisa é dura demais para mim”. E, nesse momento, isso se transforma em: seja em linha de abolição, seja em linha de morte.
Peguem uma coisa, uma simples experiência objetiva como a da música, a música que vocês escutam. Em quê se pode falar de um fascismo potencial na música, se se pode falar de um fascismo potencial? É que a música, me parece, é o processo em estado puro. É por aí que, de todas as artes, essa seria sem dúvida a arte mais adequada, a mais imediatamente adequada. Para apreender sob a pintura um processo da pintura, é preciso muito mais esforço. Quer dizer, apreender os fluxos da pintura é muito mais difícil que apreender imediatamente o fluxo sonoro da música. E, ainda aí, eu diria que, para mim, a música não é uma questão de estrutura, nem de forma, mas de processo. Penso, muito rapidamente, para fazer aproximações, que um dos músicos que mais pensa a música em termos de processo é John Cage. Bem, quero dizer, a música é processo. De certa maneira, ela é amor à vida, fundamentalmente.
Ela é mesmo criação de vida. Ora, será por acaso que, ao mesmo tempo, eu devo dizer o contraditório, que a música nos inspira, em certos momentos, e que não há música que não nos inspire, em certos momentos, um bastante bizarro, um estranho desejo, que é preciso chamar de abolição, um desejo de extinção, um desejo de extinção sonoro, uma morte tranquila? E que na experiência musical mais simples – e aí não há privilégios de uma sobre outra; eu penso que é verdade de toda música. Que é verdade da música pop, que é verdade da música clássica … Que são os dois ao mesmo tempo, e um pego pelo outro, uma criação vital sob forma de linha de fuga ou sob a forma de processo, e implantado lá dentro um risco constante de conversão do processo numa espécie de desejo de abolição, de desejo de morte. E que a música carrega tanto esse desejo de morte quanto deixa de trazer o processo. De modo que, nesse nível, trata-se realmente de uma parte muito incerta, que cada um joga sem saber. Nunca se está certo de que não é sua vez de quebrar, quem pode dizer? E, ainda uma vez, não se quebra sob muito forte agitação visível. Quebra-se, talvez, no momento que, de certo ponto de vista, é o melhor. Não se sabe, não se sabe.
Simplesmente, parece-me que a psiquiatria e a psicanálise não prestam serviço, cada vez que se propõem a esses fenômenos de interpretação que podem ser vistos como interpretações pueris. Isso desonra as pessoas … Acontece que as pessoas ficam contentes. Elas aguentam escutar a isso. É assunto delas, uma vez que funcione. Mas eu penso que é desonroso aceitar escutar – ao menos é preciso muito sofrer para suportá-lo – durante horas e horas tudo isso: “É porque você não está de acordo com seu pai e sua mãe que tudo isso se dá”. “Pois há alguma coisa que se passa da parte de seu pai”. Seja em termos de estrutura, seja em termos de imagem de pessoa. Ainda uma vez, personologia e estrutura, isso me parece tão parecido que, de qualquer maneira, deve-se ter, me parece, a elementar dignidade de adoecer, ou de se tornar louco, à necessidade de muitas outras pressões e muitas outras aventuras que não estas.
Então, nesse sentido, eu respondo, se bem compreendi a questão: a ideia da esquizofrenia como processo implica que esse processo resvale incessantemente na produção de uma espécie de vítima do processo. Pode-se ser, a todo instante, vítima do processo que se carrega em si. E, por processo, ainda uma vez, eu invoco – pois, aí, torna-se uma linguagem comum, que nos pertence a todos – os grandes nomes como Kleist, Rimbaud, etc. Bom, Rimbaud, o que dizer de Rimbaud? O que é esse homem? Ele sai pela Etiópia, ou seja, ele prolonga sua linha de fuga. Mas ele o faz de que maneira? Essa espécie de renegação de todo seu passado: é algo que não é mais suportável para ele. O que isso vai virar? Como vai virar? É sobre esta linha que ocorre um verdadeiro devir, ainda uma vez. Ora, esse devir também pode virar um devir mortífero. Então, se há uma lição, é que não se trata somente de desenredar as linhas que compõem alguém. É tentar, por não importa qual meio, impedir que as linhas se tornem linhas de morte.
Ora, nesse ponto, não há solução milagrosa. Creio apenas que há uma espécie de complacência que é extremamente duvidosa: a complacência ao discurso psicanalítico faz nossa desonra. Há muito tempo que o romancista Lawrence dizia que havia uma espécie de reação amena à psicanálise. Ele dizia: “Mas tudo isso é repugnante”. Lawrence é muito forte, vocês compreendem? Pois não é alguém a quem se possa dizer: “Ah, você está chocado pela sexualidade”? Ele não estava chocado pela sexualidade, ele até mesmo encabeçava uma espécie de descoberta, e uma singular descoberta, da sexualidade. Mas ele tem a impressão de que a psicanálise é repugnante. O que ele quer dizer? De qualquer forma, não é Lawrence que dirá: “Eu protesto contra a ideia de que tudo seja sexual”. Pelo contrário, isso não o incomoda. Ele diz: “Mas, vocês percebem o que eles fazem da sexualidade? Vocês se dão conta”? “Mas é uma vergonha!”, ele diz. A sexualidade? Ela tem relação com o quê? Bom, ele diz a mesma coisa que acabo de dizer sobre o processo. Ele diz: “A sexualidade? É evidente que tem a ver com o sol”. É uma questão de delirar o mundo, e, de modo algum, se faz uma concepção romântica da sexualidade. É assim aquilo que vocês querem, aquilo que se gosta. Por exemplo, o tipo de mulher ou homem que se persegue, aquilo que se espera: vai muito além das pessoas tudo isso.
Delira-se o mundo. Com efeito, dependendo, pode ser tanto um oásis, quanto um deserto, quanto tudo o que vocês quiserem. Em todo caso, a ideia de que tudo isso remonta a Édipo, ou seja, a uma constelação pai–mãe, mesmo que se adicione a Lei, é algo de escandaloso. Isso tudo é desonroso. É evidente que a sexualidade não é isso. Quando o presidente Schreber diz, literalmente: “Eu tenho raios de sol no ânus”. Ele os sente. Ele sente os raios do sol. Ele os sente dessa maneira. Bom, se tentamos remeter essas relações a seu pai, eu penso que corremos o risco de não compreendermos coisa alguma nisso. Nesse momento, o que é toda a sexualidade então? Quando Lawrence protesta contra a psicanálise, ele diz: “Mas eles não querem nada além do sujo segredinho? Um pequeno segredo miserável. Realmente miserável essa história de querer matar seu pai e dormir com sua mãe. É miserável”. Então, pode-se interpretar em termos de estrutura: continua sendo miserável. Vocês se dão conta? Não, mas, jamais, jamais … É uma ideia corrompida essa. Quero dizer, é preciso reagir contra a psicanálise e contra a psiquiatria psicanalisante em nome da sexualidade. Pois é inteiramente outra coisa. Na sexualidade há um verdadeiro processo que, também nesse caso, pode tomar um rumo mortífero. Muito bem, eu queria dizer tudo isso. Então, eu continuo. É por isso que um ano…
(Intervenção Inaudível)
Escute. Há apenas uma coisa que não é boa no que você disse, na sua intervenção. É a maneira com que você repetiu bastante: “É verdade, é verdade, é verdade”. Eu mesmo nunca digo “é verdade” porque, em certo sentido, a coisa não se coloca mais nesse nível. Mas era como que uma maneira pela qual você se reconfortava me dizendo: “E, afinal, não é como você diz, é como eu digo.” Então, o que eu responderia…
(Intervenção Inaudível)
Você disse: “É verdade, é verdade”. O que mostra que você se prendia a essa ideia. Então, se você se prende a essa ideia, eu faço duas respostas simultâneas, mas nessas repostas eu tomo tanto uma questão como a outra. E a primeira, infelizmente, tem um ar insolente. Mas ela não o é de modo algum.
É que, num certo nível, quando dizemos alguma coisa que pensamos, justamente, quanto mais o que dizemos responde ao que pensamos, menos podemos invocar uma verdade qualquer, já que não temos certeza. E é mesmo uma única e mesma coisa: é enquanto perdemos todas as certezas que podemos dizer alguma coisa. Então, é por isso que, se alguém, como você, – mas não é minha primeira resposta – me diz: “Ah, não, eu não consigo pensar que uma linha de fuga, por exemplo, seja essencialmente vital e criadora, eu não consigo acreditar, eu sinto dessa maneira. Eu diria, no máximo, que ela tem duas cabeças: vida e morte. E que tudo se decide nesse momento, mas que não há nenhuma razão para se privilegiar o polo vital sobre o polo mortífero”. Aí, minha resposta seria: bom, está bem, vá nessa direção. É a sua! Não posso dizer nada, não posso dizer nada. Tudo em mim se ofusca diante dessa ideia, mas não posso dizer nada. Não há espaço para tentar mostrar que sou eu que tenho razão, se alguém sente diferentemente de mim. Quero dizer, há um “eu sinto” filosófico. O “eu sinto” não é somente “tenho a impressão”; é que há um “eu sinto” filosófico que é como uma espécie de fundo dos conceitos. Ou seja, esse conceito não te agrada, mesmo vitalmente, posto que os conceitos têm uma vida. Mas, ao mesmo tempo, minha segunda razão é quase – então, não se trata de um desejo de convencer quem quer que seja. Digo ao menos que isso serve a alguma coisa, caso haja alguém que não concorde.
O que eu responderia por minha própria conta? Eu responderia isso aqui, com muitos suspiros, pois no ponto em que nos encontramos, se preferirem, trata-se realmente de afetos. Não estamos simplesmente no nível dos conceitos, estamos plenamente num domínio particular que eu tentava, um pouco, fazer pressentir, a propósito de Leibniz. A saber, os afetos do conceito. Não há conceito que seja neutro ou inocente. Um conceito é carregado de potência afetiva. Ora, eu, quando escuto a ideia de que a morte possa ser um processo – é todo meu coração, são todos meus afetos que sangram. E é por isso que eu excluo que morte e vida tenham o mesmo estatuto sobre as linhas de fuga, e que eu não falaria, nunca, por exemplo, de um caráter bipolar que seria a vida e a morte. Pois, a morte é o contrário do processo. Aí, seria preciso definir “processo” melhor, o que eu não fiz. Mas eu me atenho apenas às ressonâncias afetivas explícitas.
Para mim, a morte é a interrupção de um processo. É por isso que jamais eu compreenderia os fenômenos de morte, ou de preparação para a morte, dentro de um processo enquanto tal. É mesmo por isso que, para mim, processo e vida, processo e linha vital não formam, senão, estritamente um. E isso que chamo de linha de fuga: é esse processo enquanto linha de criação vital. Se me dizem, aí, que há necessariamente por correlato a morte; isso pode ser compreendido de duas maneiras, tamanha a complexidade. Ora, as duas maneiras podem quase que, teoricamente, se aproximar uma da outra ao infinito; afetivamente, elas se opõem absolutamente.
E eu digo que, nesse caso, os afetos têm mais importância ainda que os conceitos. A saber, se eu digo que a morte é inseparável desse processo definido como linha vital, eu posso o compreender sob a forma: a morte fará parte do processo; o que eu recuso por gosto… Tudo desmorona diante dessa ideia, tudo desmorona em mim, e é mesmo uma ideia que me causa horror. Ou, então, eu compreendo inteiramente outra coisa, a saber: é que nós não temos nunca nada ganho, e, a cada instante, essa linha vital corre o risco de ser interrompida, e, não mais o processo, mas sua ruptura radical, é precisamente a morte. Ora, com efeito, eu não posso garantir que ela não será interrompida pela morte. O que posso pedir, e que é, de fato, diferente, é que tudo se coloque a trabalhar para que ela não seja interrompida por uma morte voluntária. E eu chamo de morte voluntária, sob qualquer forma que seja, um culto à morte. E por culto à morte, eu entendo também o fascismo. Reconhece-se o fascismo, ainda uma vez, pelo grito: “Viva a morte”! Toda pessoa que diz “viva a morte” é um fascista.
Então, esse culto à morte pode ser representado pelo fascista, mas pode ser representado, conforme a necessidade, por coisas completamente outras, a saber, uma certa complacência suicida, um certo narcisismo suicida, pelos empreendimentos suicidas. Todas as empresas suicidas fazem parte e implicam uma espécie de campo de morte, de culto à morte.
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In: Trechos selecionados da aula Anti-Édipo e outras reflexões. Fractal: Revista de Psicologia, v. 28, n. 1, p. 160-169, jan.-abr. 2016.
Notas:
1. N. do T. George Jackson: “Pode ser que eu fuja, mas ao longo da minha fuga eu procuro uma arma!”
2. N. do T. Se débrouiller: Se resolver, ou escapar a uma situação difícil. Débrouiller significa ainda: desembaraçar, desenredar; no que se refere a um emaranhado de linhas. Deleuze explora amplamente os sentidos do termo.
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