PARA CAMINHAR COM FRANÇOIS TOSQUELLES

Por que Tosquelles? Na década de 1930, François Tosquelles defendia que os hospitais psiquiátricos deveriam abrir suas portas, estabelecer relações com o território e funcionar apenas como um lugar de passagem. É de suma importância tornar pública a sua história e apresentar a relevância do trabalho e da trajetória desse psiquiatra catalão revolucionário no campo da saúde mental, grande exemplo nas lutas e ações antifascistas. Para ele, quando a loucura desaparece, o humano também desaparece.

Este é o primeiro livro publicado em português desse escritor que, além de psiquiatra, foi praticante da psicanálise e utilizou o marxismo em seu exercício clínico-institucional para estabelecer conexões com a política, a cultura e o social, sendo uma das maiores referências da psicoterapia institucional. Também considerava o teatro, o cinema, a arte e a escrita ferramentas fundamentais para o trabalho na instituição. Ao longo de sua jornada, contou com aliados como Félix Guattari, Frantz Fanon, Ginette Michaud, Hélène Chaigneau, Horace Torrubia, Jean Oury, Lucien Bonnafé, Roger Gentis, Yves Racine, filósofos, surrealistas, militantes comunistas, anarquistas, entre outros.

Uma política da loucura reúne textos, entrevistas, trans­crições e contribuições para a reforma psiquiátrica na França e na Espanha, assim como os movimentos que Tosquelles realizou em meio à Guerra Civil Espanhola e à Segunda Guerra Mundial. De acordo com Tosquelles, o que importa não é a cabeça, ou seja, o racional, o logos, mas os pés, pois são eles que nos movimentam para algum lugar. É preciso algo para que o corpo tenha uma base, um tônus, e possa se desterritorializar. Com Tosquelles, refletimos acerca de uma ferramenta que pode contribuir para a construção coletiva de um outro mundo possível, ou seja, por uma sociedade sem manicômios!

FRANCESC, FRANÇOIS, TOSQUELLES, TOSQUELLAS

Francesc Tosquelles i Llauradó nasceu em 22 de agosto de 1912 em Reus, na região da Catalunha. Durante sua trajetória de vida, exilou-se na França ao fim da Guerra Civil Espanhola e naturalizou-se francês, adotando o nome François Tosquelles. Viveu lá até seu falecimento, em 25 de setembro de 1994 em Granges-sur-Lot.

De acordo com seu filho, Jacques Tosquellas, o verdadeiro sobrenome de seu pai, em catalão, é Tosquelles e não Tosquel­las, porém a invasão espanhola levou a uma espanholização dos nomes e aqueles terminados em “lles” foram alterados para “llas”. Em meio à violência do colonizador, os catalães tentaram salvar algo de sua língua, cultura e história. Tosquelles e seu pai solicitaram permissão para retomar a escrita catalã de seu sobrenome, porém a solicitação foi recusada. Assim, quando chegou à França, em 1939, exilado e lutando contra a depressão após a derrota na guerra, a perda de seu país e a distância de sua esposa, Hélène Tosquelles,[1] e de sua filha Marie-Rose, ele se declarou Tosquelles, deixou de usar gravatas e passou a usar uma fita preta em torno do pescoço. Assim ficou conhecido, sem que questionassem seu sobrenome.[2]

Jacques Tosquellas conta que, apesar disso, a grafia espa­nhola foi mantida nos documentos de identidade e, quando adulto, ele acabou assumindo o sobrenome Tosquellas. Quando seus pais chegaram à França, decidiram não falar mais espanhol nem catalão, pois consideravam que o trilin­guismo não era bom para as crianças.

OS PRIMEIROS PASSOS

François Tosquelles teve formação e trajetória transdisci­plinares antes de chegar ao hospital de Saint-Alban, onde trabalhou até 1962.

Foi aos sete anos de idade que Tosquelles teve o primeiro contato com a psiquiatria, quando visitou o Instituto Pere Mata, em Reus, na Espanha, acompanhando seu pai e seu tio e padrinho, o médico F. Llauradó, para assistir a um jogo de futebol. Surpreendeu-o o fato de serem dois times de loucos e um juiz psiquiatra. Diz que ali começou a entender a lei do movimento dos loucos e dos outros. As regras eram diferen­tes! No entanto, de acordo com ele, o doutor José Briansó e seu tio, ambos médicos do instituto, foram responsáveis por despertar seu interesse pelo campo da saúde mental. Foi lá naquela partida de futebol que ele teve a oportunidade de conhecer o diretor do instituto, o psiquiatra Emilio Mira y López (1896-1964),[3] que mais tarde se tornou seu professor e o iniciou numa prática revolucionária na psiquiatria.

PASSEIOS ENTRE PSIQUIATRIA E PSICANÁLISE

Em 1927, aos dezesseis anos, Tosquelles ingressou na Facul­dade de Medicina de Barcelona e frequentou os centros cul­turais Ateneu Barcelonès e Ateneu Enciclopedic Popular. Aos dezessete anos, durante suas férias de verão, trabalhou no Instituto Pere Mata como “enfermeiro”. Ele afirma que a pro­ximidade com os pacientes “foi uma experiência decisiva e que talvez falte a muitos psiquiatras”.[4] Em 1929 participou do congresso de “alienistas” franceses que ocorreu em Barcelona e Reus e lá iniciou algumas das amizades que viriam a fazer parte de seu futuro.

Em 1930, foi fundado o Bloco Operário e Camponês (boc), uma organização comunista de ideologia marxista da qual Tosquelles foi militante. Na faculdade, lutou contra a ditadura de Primo de Rivera (1923-1936) e a opressão dos castelhanos contra a Catalunha; em seguida, envolveu-se com o Partido Operário de Unificação Marxista (poum).

No âmbito de sua prática clínica, já no período anterior a 1931, Tosquelles conheceu e experimentou a teoria psicanalí­tica e práticas de grupo. Também conheceu seu psicanalista, Sándor Eiminder, um húngaro que fora aluno de Sándor Ferenczi, um dos discípulos mais próximos de Freud. Eimin­der fez parte do círculo vienense do pedagogo radical August Aichhorn e deixou seu país de origem para trabalhar na Ale­manha e na Áustria, antes de se refugiar na Espanha para escapar do antissemitismo. Conheceu Mira em Barcelona e começou a trabalhar como psiquiatra no Instituto Pere Mata. Foi militante político e, durante a Guerra Civil, trabalhou como psiquiatra no exército republicano, colaborando com Tosquelles em Barcelona e Reus. Vale salientar que Eiminder foi responsável por introduzir as ideias psicanalíticas de Sán­dor Ferenczi e Michael Balint (1893-1970) no círculo dos psiquiatras catalães. Neste livro, por meio das palavras de Tosquelles, é possível perceber os efeitos da análise e da pre­sença do analista em sua vida.

Em 1933, aos 21 anos, Tosquelles concluiu sua forma­ção em medicina e foi aprovado em um concurso público para trabalhar no Instituto Pere Mata. Durante esse período, desempenhou não apenas a função de médico, mas também de psicanalista. Para Tosquelles, a psicanálise e o uso locali­zado de medicamentos na psiquiatria eram ferramentas que poderiam contribuir para o tratamento dos pacientes, sem ele ter de se identificar como psicanalista ou farmacêutico. Além de sua análise pessoal com Eiminder e de seus estu­dos em psicanálise com Mira, em 1935 publicou artigos de psicanálise na revista Fulls Clínics, cuja linha de interesse era psicanálise, personalidade, câncer e outros.

Desde a sua formação, não acreditava ser possível estar na psicanálise e na medicina sem contato com outras perspectivas teórico-práticas. Para ele, exercer a função de analista significava ser heterodoxo, pois lidar com o heterogêneo é parte da prática. Além disso, acreditava na importância de a psiquiatria estar presente em diferentes instituições, até mesmo nas feiras públicas, não para diag­nosticar as pessoas, mas para conhecer o ambiente em que elas vivem, assim como os medos que enfrentam no terri­tório em que vivem.

Em julho de 1947, Tosquelles conheceu Jean Oury numa conferência de Jacques Lacan e, dois meses depois, Oury estava em Saint-Alban para realizar uma residência que durou até 1949. Oury carregava consigo um projeto de juven­tude: constituir grupos libertários. Assim, em 1953, fundou a clínica La Borde, que funciona até hoje. De acordo com Oury, Tosquelles foi uma de suas referências para enveredar na psiquiatria e na psicanálise lacaniana, pois cabia a ele distri­buir os textos aos internos e, após um mês de leitura, discutir coletivamente com eles as teses de Lacan.[5]

Félix Guattari foi um dos principais colaboradores da clínica La Borde. Em 1956, em plena Guerra da Argélia, transferiu-se para o hospital de Saint-Alban para evitar ser convocado. Na visão de Guattari, Tosquelles sempre foi um militante político, não por ter ideias políticas, mas sim por seu posicionamento em qualquer situação.[6]

Oury, Guattari e Tosquelles frequentaram juntos alguns seminários[7] de Lacan. Apesar de apreciar a luta de Lacan con­tra a onipotência do “eu” e seus quatro conceitos fundamen­tais da psicanálise, Tosquelles não tinha interesse em fazer parte de sua escola, pois duvidava de muitos aspectos enfati­zados em seu ensino. Contra a ideia de escola, Tosquelles res­peitava os mestres. Sem se considerar freudiano, reconhecia a obra de Freud, mas com reservas: considerava-se “um crítico do marxismo e um crítico de Freud”.[8] Para ele, os pacientes eram os verdadeiros mestres de sua trajetória, pois foram eles que realmente lhe ensinaram a prática da psiquiatria e da psicanálise. Considerava que sua função, enquanto analista, era construir pontes. Se os pacientes dizem o que lhes vem à mente, é preciso estabelecer uma linha e oferecer-lhes uma ponte, visto que uma de suas características é estar à margem, deslocados das pontes.

De acordo com Oury, Tosquelles já falava do heterogê­neo, do policêntrico e, ao mesmo tempo, do transdisciplinar.[9] Dizia que “o corpo é uma biblioteca onde colocamos as pala­vras uns dos outros. As coisas são colocadas lá e começam a falar entre si”.[10] Além disso, acreditava na importância da dupla escuta, pois a língua é também um som e há uma dupla determinação em relação ao que é dito. Enfatizava que os sons e o modo como eles ressoam nas pessoas é o que seria lem­brado. Em sua prática analítica na instituição jamais sugeria apenas uma possibilidade a um paciente, eram ao menos duas, e esse era seu modo de construir interpretações na análise.

ENTREGUERRAS: A LUTA ANTIFASCISTA

Em julho de 1936, Tosquelles partiu com o poum para o front de Aragón, onde se ocupou dos combatentes que estavam nas trincheiras. Tornou-se médico-chefe e participou da evacua­ção do hospital psiquiátrico de Huesca, após dois incêndios, e da coordenação do hospital de Serinyà. Nesse período, cola­borou estreitamente com trabalhadores da saúde ligados a várias organizações políticas.

Através dos psicanalistas da Europa Central exilados em Barcelona, Tosquelles tornou-se responsável por avaliar a experiência daqueles que trabalhavam em ambientes hos­pitalares e clínicas militares, possivelmente pela primeira vez. Sua referência era o discurso de Freud no congresso de Budapeste de 1918. “Tentei concretizar suas profecias daquela época”, declara, apostando em uma psicanálise nas instituições públicas. O hospital central de Almodóvar del Campo foi estruturado de acordo com suas ideias. Ali, con­seguiu organizar a psiquiatria em setores (comarcas) e tratar os pacientes que estavam nos arredores. Ao mesmo tempo que atendia os soldados, atendia a população e os médicos. A partir dessa experiência, estabeleceu uma prova prática de fornecimento rápido de serviços psiquiátricos humani­zados e eficazes não apenas para os neuróticos de guerra, mas também para os psicóticos, que foram recebidos com a população civil da região.

Em suas equipes, tanto em Almodóvar quanto mais tarde em Septfonds, Tosquelles valorizava a participação de pessoas comuns na criação de serviços psiquiátricos de qualidade, como camponeses, padres, prostitutas, pintores e advogados, pois os médicos especialistas eram um obstáculo a qualquer projeto revolucionário: por um lado, exerciam poder sobre os pacientes, tratando-os como objetos e não como pessoas, e, por outro, possuíam uma visão pequeno-burguesa do mundo. Portanto, no decorrer da guerra, ele selecionou os membros de sua equipe com base em sua capacidade de se relacionar com as pessoas sem a arrogância e os preconceitos daque­les que se sentiam superiores, pois “gasta-se muito tempo transformando uma pessoa em alguém que saiba estar com os outros”.[11] Os médicos foram escolhidos entre aqueles que queriam trabalhar com perspectivas teóricas afins e com os quais ele tinha relação de amizade, mas, sobretudo, entre aqueles que não cheiravam à tradição manicomial.

Essa abordagem colaborativa refletia sua visão de que o trabalho no campo da saúde deveria ser baseado na partici­pação ativa da comunidade e na promoção da solidariedade. Dessa maneira, em Aragón, Tosquelles construiu uma prática psiquiátrica pela via comunitária, defendendo uma aborda­gem que considerava a saúde mental parte da luta política e social. Essa experiência marcou significativamente seus trabalhos posteriores e produziu formas inovadoras de tera­pia comunitária que engajavam ativamente a comunidade/ instituição no processo de “cura”.

Após a derrota dos republicanos na Espanha, Tosquelles e milhares de pessoas cruzaram os Pirineus para se refugiar na França. Duas obras o acompanharam nessa travessia: Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade (1932), de Lacan, e Pour une thérapeutique plus active à l’hôpital psychiatrique (1929), de Hermann Simon, em que o autor defende que é preciso cuidar da instituição tanto quanto dos pacientes, e que esse trabalho é uma criação comunitária, ideal que posteriormente se tornaria uma das peças funda­mentais da psicoterapia institucional. Tosquelles utilizava essas duas obras na formação dos novos profissionais desde a sua atuação no Instituto Pere Mata.

Tosquelles passou oito dias escondido nas montanhas, “em uma casa de reclusão mantida por várias mulheres cha­mada Hospice de France”.[12] No início da Segunda Guerra Mundial, ele foi para a cidade de Bagnères-de-Luchon, onde conheceu um membro do Deuxième Bureau[13] a quem mani­festou o desejo de se alistar no exército. Essa pessoa lhe deu autorização para ficar em Toulouse e lhe passou uma infor­mação falsa: que existia um campo de refugiados em Sept­fonds onde havia somente intelectuais. Quando Tosquelles chegou ao campo com seu amigo psiquiatra Jaume Sauret,[14] notou que, “visto de fora, o campo parecia um hospital psi­quiátrico […] era o próprio pátio de um hospital psiquiá­trico mal organizado”.[15] Ao conversar com o comandante Vigouroux, soube que havia muitos suicídios no campo e que, quando os soldados eram transferidos para o hospital psiquiátrico de Cahors, era o fim. “E foi assim que surgiu a ideia de tentar fazer alguma coisa em Septfonds”.[16] Foi ali, em uma barraca localizada no fundo do campo, que ele montou um serviço de psiquiatria improvisado, definindo-o apenas como “um lugar de passagem”, no qual as pessoas podiam entrar por uma porta e sair por outra.

O percurso de Tosquelles mostra que, ao mesmo tempo que a guerra revelou um desejo fascista de destruir os outros, ela fez emergir um desejo revolucionário de compor com as diferenças, de construir de novas maneiras, coletivamente, um outro mundo possível.

HOSPITAL DE SAINT-ALBAN: UMA EXPERIÊNCIA COLETIVA

No coração do Maciço da Margeride, encontra-se o cas­telo medieval de Saint-Alban, construído no século XII. De acordo com Michel Foucault, “em 1348, o grande leprosário de Saint-Alban contém apenas três doentes”.[17] Tornou-se um manicômio em 1821, com a chegada de Joseph-Xavier Tissot, conhecido como irmão Hilarion, que contou com a ajuda das freiras de Marselha para realizar seu projeto. Entretanto, em razão da má administração, o manicômio arruinou-se e foi comprado pelo departamento da Lozère, que instalou ali o asilo regional. Até a década de 1930 estava em ruínas, e tanto pacientes como funcionários viviam em condições precárias. Em 1933, a situação começou a melhorar com a chegada da doutora Agnès Masson à direção, marcando um ponto de virada na história de Saint-Alban.[18]

De acordo com Tosquellas, é possível que seu pai tenha se correspondido com o psiquiatra e professor Maurice Frédéric Dide (1873-1945) enquanto estava em Septfonds. Tosquelles o conhecera em Reus, em 1929, durante o congresso de “alie­nistas” franceses. Dide teria informado ao psiquiatra catalão Angels Vives que Tosquelles estava em Septfonds. Após ser repatriado pelo Estado francês, Vives foi viver na cidade natal de sua esposa, Le Puy, próxima de Saint-Alban. Foi lá que ele se encontrou com o psiquiatra André Chaurand, que traba­lhava no hospital do Puy, e lhe informou sobre a presença de um psiquiatra “vermelho” em Septfonds.

Chaurand[19] tinha uma relação próxima com Paul Balvet, diretor de Saint-Alban naquela época. Foi por meio dessa amizade que ele obteve mais informações sobre Tosquel­les. Assim, Balvet, ao perceber a necessidade de médicos na região, informou o departamento da Lozère sobre a possibili­dade de recrutar um médico estrangeiro. Tosquelles recebeu um telegrama do departamento solicitando que ele fosse a Saint-Alban, além de outro telegrama do diretor Balvet. Essa sequência de eventos levou Tosquelles a Saint-Alban. Apesar de não ter encontrado o local no mapa, Tosquelles aceitou o convite, afirmando que o desconhecido era algo que lhe interessava.[20] Assim, em 6 de janeiro de 1940, Tosquelles começou a trabalhar em Saint-Alban. Inicialmente foi contratado como enfermeiro, mas atuou como médico de maneira informal, visto que eram exigidas uma nova gra­duação em medicina e a naturalização francesa.

Tosquelles marcará profundamente a história de Saint­-Alban ao lançar as bases de uma psiquiatria atravessada pela psicoterapia institucional. Naquele momento, a institui­ção acolhia cerca de seiscentos pacientes e abriu suas portas para a comunidade, promovendo festas e interações entre pacientes e camponeses. Tosquelles valorizava a autonomia da instituição e buscava experimentar novas práticas.

Em 1942, Balvet criou um clube em Saint-Alban, pro­porcionando debates e atividades culturais. Em 1943, a saída de Balvet e a chegada de Lucien Bonnafé (1912-2003), psiquiatra francês, comunista, combatente da resistência e autodenominado “fora da lei”, marca uma mudança signifi­cativa na instituição.[21] Juntos, Tosquelles e Bonnafé acolhe­ram refugiados políticos e cidadãos franceses que tentavam escapar da ocupação alemã, como os “Francs-Tireurs et Partisans”, uma organização da resistência armada criada por líderes do Partido Comunista Francês que sabotava operações nazistas na região. Os pacientes, além de saírem do hospital para se relacionar com a população do entorno, ajudaram os refugiados.

Figuras importantes como George Canguilhem, Paul Éluard e Nusch Éluard foram para a instituição com suas famílias. Segundo Tosquelles, o surrealismo desempenhou um papel importante em sua formação e na história da instituição. Canguilhem escreveu os capítulos finais de seu livro O normal e o patológico em Saint-Alban.[22]

Com a chegada dos artistas surrealistas houve uma grande transformação nas práticas do trabalho institucional em saúde mental em Saint-Alban. Segundo Tosquelles, foi graças a Bon­nafé que isso aconteceu, pois ele tinha a força da crítica surrea­lista e a amizade de Éluard. Bonnafé era comunista e, “naqueles anos, as forças do Partido Comunista estavam do lado da vida: um único corpo natural, autêntico, dos franceses antifascistas, uma única força coletiva organizada”.[23] Portanto, com os sur­realistas e os militantes, muitos outros caminhos foram abertos. Vale salientar que, geograficamente, Saint-Alban era um lugar central. Os surrealistas investigaram a relação entre arte, lou­cura, sexualidade e psicanálise e puderam enxergar na loucura uma inventividade que a atravessava. Sendo assim, saiu dali um movimento experimental mostrando que a arte é uma impor­tante ferramenta para romper a rigidez das instituições que trabalham no campo da saúde mental, assim como a produção de novas concepções e críticas sociais acerca de arte e loucura.

Na primavera de 1952, Frantz Fanon chegou a Saint-Alban para participar do programa de residência em psiquiatria sob a supervisão de Tosquelles por um período de dois anos. Para ele, Fanon desempenhou um papel importante na vida prática da instituição, com uma influência menor em suas elaborações teóricas. Mais tarde, contudo, ele diria que “o destaque que Fanon daria aos camponeses como motor da mudança política, durante sua estadia na Argélia e sua participação na Frente de Libertação Nacional (fln), era também um eco de sua expe­riência tanto na Martinica quanto no Hospital de Saint-Alban”.[24]

Pacientes e militantes, cada qual com sua força, unidos, resistindo ao fascismo. Segundo Tosquelles todos eram refu­giados, logo não havia fronteiras entre eles, pois estavam na mesma situação de “asilo” político. Daí seu apreço pela palavra “asilo” em detrimento de “hospital psiquiátrico”: por mais que ambas tivessem problemas, a palavra “asilo” tinha o sentido de um lugar onde se refugiar.

Para Tosquelles, se Saint-Alban foi uma instituição que pôde fazer alguma diferença, isso aconteceu pela multiplici­dade de pessoas e coletividades que por lá passaram e cons­truíram zonas de liberdade, desde camponeses até artistas e pesquisadores – refugiados ou não. E, para salvaguardar esse espaço, era preciso aceitar que na cooperativa se jogasse um jogo diferente.

Certa vez, houve discussão entre o psiquiatra Paul Sivadon e Tosquelles no hospital de Maison Blanche: o primeiro queria admitir no serviço apenas pacientes de uma mesma estrutura psíquica, enquanto o segundo considerava perigoso manter num mesmo espaço pessoas “iguais”, defendendo que somente a diferença faria diferença. Tosquelles afirmava que algo da ordem da cura só pode acontecer pela diferença na maneira de ler o mundo. Uma diferença que não bloqueia os fluxos da vida, os processos desejantes. Portanto, o processo de cura acontece por meio das diferenças, em diversos sentidos.

A prática antifascista de Tosquelles e a crítica surrealista entendem o paciente não como objeto passivo, mas como agente de seu próprio destino. Portanto, a revolução nas ins­tituições psiquiátricas só pode acontecer com a participação do paciente.[25]

TOSQUELLES COM (E CONTRA) A ANTIPSIQUIATRA?

Tosquelles via a instituição psiquiátrica como um lugar de passagem e defendia que ela fosse uma escola de liberdade. Essa foi uma das lições que aprendeu com os pacientes e argumenta que essa perspectiva o distinguia do psiquiatra italiano Franco Basaglia, seu contemporâneo, que defendia o “fechamento do barracão”, considerando que os hospitais psiquiátricos eram escolas de alienação administrativa.[26]

Tosquelles considera que o tratamento só é eficaz quando o estatuto médico-paciente é rompido: quando se retira tal estatuto social, o paciente consegue se consultar com uma pessoa, independentemente de sua ocupação profissional, e, assim, a instituição pode passar a ter um melhor funciona­mento. Para ele, é preciso “jogar com plena liberdade”. Nesse sentido, a situação italiana se mostrava mais favorável, dada a descentralização de seu sistema de saúde, em contraste com a França, em que tudo se centralizava em Paris. Em uma entrevista com o psiquiatra catalão, Giovanna Gallio menciona que o filme I giardini di Abele [Os jardins de Abel], de Sergio Zavoli (1969), retoma algumas imagens do hos­pital de Gorizia em 1967, no qual Basaglia trabalhou por cerca de dez anos. Nesse hospital, Basaglia possibilitou o surgimento de uma situação próxima da ideia de Tosquelles acerca de uma escola de liberdade.[27] Em Trieste, o espaço protegido do hospital psiquiátrico foi substituído por outros espaços de relação com o paciente, alianças e encontros fora do ambiente cercado de fantasmas. Para Basaglia, a saída do hospital psiquiátrico era a “fase de anomia”, uma confusão causada pela perda das fronteiras, mas um momento de ricas invenções.[28]

Tosquelles se considerava antinosográfico e anti-interna­mento prolongado em hospitais psiquiátricos.[29] Argumentava que o tratamento não consistia em simplesmente internar o paciente, isso era apenas uma forma manicomial e de exclusão. Portanto, era a favor do movimento, da saída, dos encontros e da participação do indivíduo na sociedade. Sendo assim, afirmava uma antipsiquiatria, enquanto um possí­vel deslocamento do paciente em relação a esse modelo de cerceamento psiquiátrico. No entanto, me parece que, nesse sentido, emergiu um paradoxo acerca desse termo, pois de um lado era visto como positivo e de outro negativo, devido ao reconhecimento de que os psiquiatras que estiveram em manicômios e não fizeram nada para combater as violências institucionais eram, de fato, aliados a uma antipsiquiatria, a lógica manicomial e colonial envolvida sob as égides do capitalismo. Além disso, para ele, ser antipsiquiatria era tam­bém ser dogmático e antiloucura. Tosquelles reivindicava o direito de exercer a psiquiatria e acreditava que todos tinham a capacidade de enlouquecer e manifestar sua humanidade, visto que “onde desaparece a loucura, desaparece o humano.”

ÚLTIMA CAMINHADA: PÓS SAINT-ALBAN

Com a chegada de Tosquelles e outros, Saint-Alban tornou-se um centro de resistência na França, onde surrealistas, anar­quistas, comunistas, pacientes, residentes, resistentes e outros grupos se uniram em uma prática coletiva e antifascista, con­tra a fome, o frio e o individualismo. Eles buscaram alterar radicalmente a relação entre o hospital psiquiátrico e a socie­dade, permitindo que todos participassem da gestão do local. No contexto global de resistência, as estruturas da instituição abriram-se para o exterior, paredes foram derrubadas, comu­nidades misturaram-se, produções artísticas foram trocadas por alimentos em épocas de escassez e alguns pacientes e residentes foram trabalhar com os camponeses nas colheitas. Do alto, aviões lançavam armas para os combatentes que esta­vam entre os residentes de Saint-Alban. Eles reconheceram que a luta contra a hierarquia e a violência nos hospitais devia acontecer coletivamente. A solidariedade, a coletividade e o antifascismo foram valores fundamentais nessa ação.

A Sociedade do Gévaudan, criada por Tosquelles, Bonnafé e outros, chamou esse movimento de geopsiquiatria, isto é, a inserção da psiquiatria nos territórios, o que incluía bus­car pacientes em suas casas, quando necessário, e fazer o acompanhamento em domicílio. Não se tratava de uma socie­dade “declarada”, pois funcionava de maneira clandestina, mas alguns textos foram publicados posteriormente. Essa sociedade analisou minuciosamente a situação nos hospi­tais, desafiando as concepções tradicionais da psiquiatria e fazendo um questionamento crítico das normas vigentes no campo da saúde mental.

Tosquelles pôde construir, de modo coletivo, uma psiquia­tria nômade. Ele inventou uma rede relacional e intersubjetiva para a sobrevivência na França entre 1940 e 1944, quando mais de 40 mil pacientes foram vítimas da fome. A ação cole­tiva naquele hospital permitiu que muitos sobrevivessem.

Em 1962, Tosquelles se desloca de Saint-Alban para Mar­selha, onde começa a trabalhar no hospital de La Timone, administrado pela assistência pública. Posteriormente retorna a Lozère como diretor de um centro de acolhimento e aten­dimento para crianças com deficiência intelectual grave, de cuja fundação havia participado enquanto ainda estava em Saint-Alban. Na Lozère, ele desenvolveu atendimento ins­titucional e psicoterapêutico, principalmente com base nas teorias de Melanie Klein.[30]

Em 1965 foi criada a Sociedade de Psicoterapia Institucio­nal (spi), visando regionalizar o Grupo de Trabalho Institu­cional de Psicoterapia e Socioterapia (gtpsi), cuja primeira reunião ocorreu no dia 1º de maio de 1960, em Saint-Alban. A spi criou a revista Pédagogie et Psychothérapie Institutionnelle, cujos dois primeiros números foram escritos praticamente na íntegra por Tosquelles.[31]

Em 1967, Tosquelles retorna ao Instituto Pere Mata, em Reus, a pedido do diretor Ramón Vilella, que buscava uma nova orientação para a instituição. Ele se torna, em sua instituição de origem, o responsável pela formação profis­sional de médicos e outros cuidadores. Para ele, o conflito na vida humana é de suma importância: sem conflito, não há violência, não há resistência nem amor, e o indivíduo se torna passivo, distante dos afetos, neutralizados pela força da medicalização.[32]

Após essa experiência, nos anos 1970 ele vai para o Hos­pital Geral de Melun, onde enfrenta uma relação negativa de colaboração com uma administração e um corpo médico hostis à psiquiatria. Assim, transfere-se e assume a dire­ção de um centro para adolescentes difíceis e violentos em Compiègne e encerra sua carreira pública em Agen. Mesmo aposentado, e até a sua morte, em 1994, Tosquelles mante­ve-se atuante na formação de cuidadores, transmitindo sua experiência em seminários vinculados sobretudo à Facul­dade de Bordeaux.[33]


NOTAS DE RODAPÉ

[1] Em 1935, Tosquelles conheceu em um bonde Hélène Alvarez, que em breve viria a se tornar Hélène Tosquelles. Juntos, tiveram quatro filhos: Marie-Rose (1936), que nasceu na Catalunha, Germaine Montserrat (1942), Jacques (1944) e Michel (1948), que nasceram na França. Somente no fim de 1940, Hélène e sua filha chegaram a Saint-Alban.

[2] Informações dadas por Jacques Tosquellas em julho de 2023, durante conversa com o organizador deste livro.

[3] Emilio Mira y López (Santiago de Cuba, 1898 – Petrópolis, 1964), foi um renomado psiquiatra, psicólogo e sociólogo. Atuou como diretor do Insti­tuto Pere Mata, foi militante da União Socialista da Catalunha e ocupou o cargo de chefe dos serviços psiquiátricos do exército republicano durante a Guerra Civil Espanhola, em 1938. Após a derrota, Mira exilou-se na França. No tumultuado contexto da Segunda Guerra Mundial, Mira passou por vários países da América Latina e pelos Estados Unidos, finalmente estabe­lecendo-se no Brasil, onde ministrou cursos na Universidade de São Paulo em 1945 e em outras instituições. Mira desempenhou um papel fundamental na luta pela regulamentação da psicologia como profissão e pela formação acadêmica regular dos profissionais dessa ciência no Brasil.

[4] F. Tosquelles, “La Destruction de l’asile d’aliénés (1972)”. Texto inédito cedido por Jacques Tosquellas ao organizador deste livro.

[5] Jean Oury e Marie Depussé, À quelle heure passe le train… Conversations sur la folie. Paris: Calmann-Lévy, 2003, p. 243.

[6] Ver O divã de Félix Guattari, filme de François Pain [1986]. Entrevista de Danielle Sivadon com Félix Guattari realizada em maio de 1986.

[7] Encontram-se disponíveis, na transcrição da Staferla, intervenções de Tosquelles, Oury e Guattari em Séminaire 15: L’acte (1967-1968), realizado no dia 31 de janeiro de 1968.

[8] F. Tosquelles, “Entrevista al Dr. Francisco Tosquelles por T. Angosto”, op. cit.

[9] J. Oury, “Entrevista com François Dosse”, in François Dosse, Gilles Deleuze e Félix Guattari: biografia cruzada, trad. Fatima Murad. Porto Alegre: Artmed, 2010, p. 47.

[10] F. Tosquelles, “Algunes conferències inèdites del doctor Francesc Tos­quelles i Llauradó (1912-1994)”, in Josep M. Sánchez Ripollès (org.), Escrits periodístics del doctor Leandre Cervera (1891-1964). Reus: Universitat Rovira i Virgili, Unitat d’Història de la Medicina, 2000, pp. 32-34.

[11] Ibid., p. 99.

[12] Ibid., p. 91.

[13] O Deuxième Bureau de l’État Major Général é um serviço de inteligência militar francês, criado em 1871. Em 1946, foi substituído pelo Service de Documentation Extérieure et de Contre-Espionnage.

[14] Em conversa com Jacques Tosquellas, fui informado de que Tosquelles atravessou as montanhas com o amigo psiquiatra Jaume Sauret, com quem trabalhou em Almodóvar del Campo. Sauret também era de Reus e mili­tava no poum. Posteriormente foi viver na Venezuela e, quando retornou a Barcelona, veio a falecer em pouco tempo.

[15] F. Tosquelles, apud G. Gallio e M. Constantino, “François Tosquelles: a escola de liberdade”, op. cit., p. 92.

[16] Ibid., p. 92.

[17] Michel Foucault, História da loucura na idade clássica [1961], trad. José Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 9.

[18] Informações coletadas em: “Château de Saint-Alban-sur-Limagnole”, Office de Tourisme Margeride en Gévaudan, ; e “L’esprit de Saint-Alban”, Radio France, 9/1/2023, série Une Autre Histoire de la Folie à Saint-Alban­-sur-Limagnole.

[19] Mais tarde Chaurand seria expulso pelas freiras do hospital do Puy – que era de propriedade privada, embora funcionasse como um serviço público (como acontece em alguns hospitais psiquiátricos na França) – e iria trabalhar em Saint-Alban, onde se tornaria amigo de Tosquelles. Infor­mações dadas por Jacques Tosquellas ao organizador deste livro.

[20] F. Tosquelles, apud G. Gallio e M. Constantino, “François Tosquelles: a escola de liberdade”, op. cit., p. 91.

[21] Sally Davies, “Asylum”. Aeon, 24/9/2021.

[22] F. Tosquelles, apud G. Gallio e M. Constantino, “François Tosquelles: a escola de liberdade”, op. cit., p. 105.

[23] Ibid.

[24] F. Tosquelles, “Entrevista al Dr. Francisco Tosquelles por T. Angosto”, op. cit., p. 46.

[25] Ibid., p. 123.

[26] Ibid., p. 93.

[27] Ibid., p. 94.

[28] Ibid., p. 124.

[29] Ibid., p. 47.

[30] J. Tosquellas, “La Guerre d’Espagne vue par une personne dite de la deuxième génération”, op. cit.

[31] Ver “Notice biographique succincte”, in Patrick Faugeras (org.), L’Ombre portée de François Tosquelles. Toulouse: Érès, 2007, pp. 357-59.

[32] F. Tosquelles, apud G. Gallio e M. Constantino, “François Tosquelles: a escola de liberdade”, op. cit., p. 116.

[33] J. Tosquellas, “La Guerre d’Espagne vue par une personne dite de la deuxième génération”, op. cit.


apresentação do livro escrita por ANDERSON SANTOS

psicanalista, graduado em psicologia,
especialista em “Saúde Mental, Imigração e Interculturalidade”
pela Universidade Federal de São Paulo (unifesp), membro do coletivo Psicanálise na Praça
Roosevelt. Além do presente livro, foi organizador da obra
Psicanálise e Esquizoanálise: diferença e composição (2022, n-1
edições) e Guattari/Kogawa. Rádio livre. Autonomia. Japão
(2020, sobinfluencia edições).


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

Uma Política da Loucura e outros textos – François Tosquelles, organizado por Anderson Santos, 2024, eds Ubu e Sobinfluencia.

 

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