CINQUENTA TONS DE RUPTURAS – por Comitê Invisível

“Não dá mais”, dizem os maus jogadores. “O mundo vai mal”, opina a sabedoria popular. Antes, nós dizemos que o mundo se fragmenta. Tinham nos prometido uma nova ordem mundial. É o contrário que se produz. Anunciavam a generalização planetária da democracia liberal. O que se generaliza são, pelo contrário, as “insurreições eleitorais” contra tal democracia e sua hipocrisia, como lamentam amargamente os liberais. Bairro após bairro, a fragmentação do mundo prossegue, sem rodeios, sem interrupção. E isso é apenas questão de geopolítica. É em todos os âmbitos que o mundo se fragmenta, em todos os domínios em que a unidade se tornou problemática. Em nossos dias não há mais unidade na “sociedade” do que na “ciência”. Os assalariados explodem em toda sorte de nichos, de exceções; de condições derrogatórias. A ideia de “precariado” oculta de modo oportuno o fato de simplesmente já não haver mais experiência comum do trabalho, mesmo precário. Embora tampouco possa haver uma experiência comum de sua interrupção, e que o velho mito da greve geral deva ser colocado na seção dos acessórios inúteis. A medicina ocidental se vê reduzida a fazer colagem com técnicas que explodem sua unidade doutrinal, como a acupuntura, a hipnose ou o magnetismo. Para além das usuais adulterações parlamentares, não há mais, politicamente, maioria para nada. O comentário jornalístico mais judicioso, durante o conflito iniciado com a lei do Trabalho, na primavera de 2016, constatava que duas minorias, uma governamental e outra de manifestantes, afrontavam-se diante dos olhos de uma população de espectadores. Nosso Eu próprio se apresenta como um quebra-cabeça cada vez mais complexo e menos coerente – ainda que, agora, para que isso aconteça, sejam necessários, mais do que sessões com psicólogos e comprimidos, os algoritmos. É apenas por antífrase que chamamos de “muro” o fluxo contínuo de imagens, de informações, de comentários, por meio do qual o Facebook ensaia dar forma ao Eu. A experiência contemporânea da vida, em um mundo feito circulação, telecomunicação, rede, um caos de in­formações em tempo real e imagens que pretendem captar nossa atenção, é fundamentalmente descon­tínua. Em uma escala completamente diferente, os interesses particulares dos notáveis cada vez mais têm dificuldade em se passar por “interesse geral”. Basta ver como os Estados penam para realizar seus grandes projetos de infraestrutura, do Vale de Susa a Standing Rock, para notar que a coisa já não vai. Que agora seja preciso a intervenção do exército e suas tropas de elite no território nacional para qualquer obra de pouca importância mostra muito bem que estas já são percebidas como operações mafiosas, que elas também são.

As unidades da República, da ciência, da personalidade, do território nacional ou da “cultura” sempre foram apenas ficções. Mas elas eram eficazes. Certo é que a ilusão da unidade não consegue mais iludir, alinhar, disciplinar. Em todas as coisas, a hegemonia morreu e as singularidades tornam-se selvagens: levam em si mesmas seu próprio sentido, que já não esperam de uma ordem geral. A pequena visão aérea que permitia aos que tinham um pouco de autoridade falar pelos outros, julgar, classificar, hierarquizar, moralizar, intimar a todos sobre o que devem e como devem ser, tornou-se inaudível. Todos os “é preciso” foram por terra. O militante que sabe o que é preciso fazer, o professor que sabe o que é preciso pensar, o político que vai nos dizer o que é preciso para o país, falam no deserto. Nada mais pode estar acima da experiência singular aí onde ela existe. Redescobrimos que se abrir ao mundo não é se abrir aos quatro cantos do planeta, que o mundo está aí onde nós estamos. Abrir-se ao mundo é abrir-se à sua presença aqui e agora. Cada fragmento é portador de uma possibilidade de perfeição própria. Se “o mundo” deve ser salvo, será em cada um de seus fragmentos. A totalidade só pode ser gerenciada. A época produz atalhos históricos surpreen­dentes. A democracia é enterrada no mesmo lugar onde nasceu dois mil e quinhentos anos atrás pela maneira como Alexis Tsipras, tão logo eleito, não cessou de negociar Sua rendição. É possível ler, sobre sua tumba, ironicamente, as palavras do ministro da economia alemão, Wolfgang Schauble: “Não podemos deixar que as eleições mudem nada”. Mas. o mais assustador é que o epicentro geopolítico da fragmentação do mundo seja precisamente o lugar de onde partiu sua unificação sob o nome de “civilização”, há cinco mil anos: a Mesopotâmia. Se certo caos geopolítico-perece ganhar o mundo, é desde o Iraque e a Síria, isto é, desde o endereço exato onde começou a ordenação geral. A escritura, a contabilidade, a História, a justiça real, o parlamento, a agricultura organizada, a ciência, a medida, a religião política, as intrigas de corte e o poder pastoral – todas essas maneiras de pretender governar “para o bem dos súditos”, em benefício do rebanho e de seu bem-estar -, tudo isso a que se resume o que ainda chamamos hoje de “civilização”, tudo isso já era, três mil anos antes de Cristo, a marca própria dos reinos Ácadio e Sumério. É claro que haverá tentativas de estabelecer um novo Estado confessional iraquiano. É claro que os interesses internacionais culminarão em operações bizarras de state building na Síria. Mas tanto na Síria como no Iraque a humanidade estatizada morreu, A intensidade dos conflitos cresceu demasiado para que uma reconciliação honesta seja ainda possível. A guerra contrainsurrecional que o regime de Bachar-Al-Assad comandou contra sua população, com os apoios que sabemos, chegou a tal ponto que nenhuma negociação jamais conseguirá algo como um “novo Estado sírio” digno desse nome. E nenhuma tentativa de peopleshaping – a operação sangrenta do poema irônico de Brecht que seguiu a insurreição operária de 1953 contra o novo regime soviético na Alemanha do Leste: “O povo por sua culpa/Perdeu a confiança do governo/E é apenas redobrando os esforços/Que ele pode recuperá-la/Não seria/Mais simples então para o governo / Dissolver o povo/ E eleger outro?”- será útil: as sombras dos mortos não se deixam apagar por explosões de barris de TNT. Quem quer que tenha se debruçado sobre o que foram os Estados europeus no tempo de seu “esplendor” só pode ver nisso que hoje sobrevive com o nome “Estado” um fracasso. Os Estados só se mantêm na condição de hologramas em relação às potências transnacionais. O Estado grego não é mais do que uma correia de transmissão de instruções que o ultrapassam. Com o Brexit, o Estado britânico está condenado a ser um funâmbulo. O Estado mexicano não controla mais nada. Os Estados italiano, espanholou brasileiro parecem não ter outra atividade senão sobreviver às avalanches ininterruptas de escândalos. Seja sob o pretexto de “reforma’ ou por um impulso de “modernização”, os Estados capitalistas contemporâneos se entregaram a um exercício de autodesmantelamento metódico. Sem falar das “tentações independentistas” que se multiplicam pela Europa. Não é difícil discernir, por trás das tentativas de restauração autoritária em tantos países do mundo, uma forma de guerra civil que não cessará mais. Seja em nome da guerra contra “o terrorismo” ,”a droga” ou “a pobreza’, por toda parte as costuras do Estado cedem. As fachadas permanecem, mas elas só servem para mascarar um monte de escombros. A desordem mundial já excede toda capacidade de reordenação. Como dizia um antigo chinês: “Quando a ordem reina no mundo, um louco não pode perturbá-la sozinho; quando o caos dele se apodera, um sábio não pode reordená-lo sozinho.”

Somos os contemporâneos de uma prodigiosa inversão do processo de civilização em processo de fragmentação. Agora, quanto mais a civilização aspira a seu cumprimento universal, tanto mais ela se implode na base. Quanto mais este mundo pretende a unificação, mais ele se fragmenta. Quando ele insensivelmente se desequilibrou sobre seu eixo? Foi pelo impacto mundial que sucedeu aos atentados de 11 de setembro? A “crise financeira” de 2008? A derrota da cúpula de Copenhague sobre as mudanças climáticas em 2009? Com certeza essa cúpula marcou um ponto de irreversibilidade nesse desequilíbrio. A causa da atmosfera e do planeta oferecia à civilização o pretexto ideal para seu arremate. Em nome da espécie e de sua salvação, em nome da totalidade planetária, em nome da Unidade terrestre, íamos poder reger cada uma das condutas de cada um dos habitantes da Terra, e de cada uma das entidades que ela abriga em sua superficie. Estávamos a dois passos de proclamar o imperium mundi universal e ecológico. Era “do interesse de todos”. A pluralidade dos meios humanos e naturais, dos usos, das formas de vida, o caráter telúrico de cada existência, tudo isso cederia diante da necessidade da unidade da espécie humana, que íamos enfim poder gerenciar a partir de não se sabe qual diretório mundial. Era a conclusão lógica do processo de unificação que não cessou de animar “a grande aventura da humanidade” desde que um pequeno bando de sapiens escapou do vale do Rift. Até esse momento tínhamos a esperança de que os chamados “responsáveis” encontrassem um acordo em comum, que os “responsáveis”, em uma palavra, seriam responsáveis. E catapum! O que aconteceu em Copenhague é que justamente não aconteceu nada. Aliás, é por isso que todo mundo a esqueceu. Nenhum imperador e nem mesmo um colegiado. Nada de decisão dos porta-vozes da Espécie. A partir de então, com a “crise econômica” ajudando, a pulsão de unificação tornou-se um salve-se quem puder mundial. Uma vez que não haverá salvação comum, cada um terá de salvar a si mesmo, não importa em qual escala, ou renunciar a toda ideia de salvação. E tentar se embriagar numa fuga para as tecnologias, ganâncias, festas, drogas e devastações, com a angústia cravada na alma.

O desmantelamento de toda unidade política induz em. nossos contemporâneos um evidente pânico. A onipresença da questão da “identidade nacional” no debate público o atesta. “A França”, manufatura mundial do Estado moderno, vivera particularmente mal sua decomposição. Evidentemente porque “se sentir francês” nunca teve tão pouco sentido como agora, e por isso os políticos ambiciosos deste país se veem condenados a um fantasiar sem fim sobre “a identidade nacional. E, como, apesar desses famosos “1500 anos de História” com os quais quebramos a cabeça, ninguém parece ter uma ideia clara do que pode querer dizer “ser francês”, nós nos debruçamos sobre os fundamentos: o vinho e os grandes homens, os terraços e a polícia, quando não simplesmente o Antigo Regime e as raízes cristãs. Pálidas figuras de uma unidade nacional para manuais de quinta categoria.

Da unidade só resta a nostalgia, mas ela fala cada vez mais alto. Por toda parte candidatos se apresentam. para restaurar a grandeza nacional, para “Make America great again” ou “Remettre la France en ordre“. Ao mesmo tempo, quando se é nostálgico da Argélia francesa, de que não se pode ser nostálgico? Por toda parte prometem assim refazer pela força a unidade perdida. Só que quanto mais se “segrega” dissertando sobre o “sentimento de pertencimento”, mais se expande a certeza de não fazer parte desse todo. Mobilizar o pânico para restaurar a ordem é esquecer o que há de essencialmente dispersivo no pânico. O processo de fragmentação geral é tão irrefreável que todas as brutalidades às quais se recorrerá, a fim de refazer a unidade perdida, acabarão apenas por acelerá-lo, por torná-lo mais profundo e irreversível. Quando não há mais experiência comum, salvo encontrar-se diante das telas, é possível criar breves momentos de comunhão nacional depois dos atentados, despertando todo um sentimentalismo meloso, falso e oco; é possível decretar todos os tipos de “guerras contra o terrorismo”, prometer recuperar todas as “zonas de não direito” que se queira, mas isso não passa de um boletim de notícias da BFM-TV¹ no fundo de uma lanchonete, e, portanto, não ouvimos seu som. Esse tipo de bobagem é como os medicamentos: para que continuem eficazes, é preciso forçar a dose continuamente, até a neurastenia final. Aqueles que veem com bons olhos a perspectiva de terminar sua existência em uma cidadezinha minúscula e super militarizada, mesmo grande como “a França”, enquanto a água sobe ao seu redor e carrega os corpos dos desafortunados, poderão declarar “traidores da Nação” todos aqueles que lhes desagradam. Em seus latidos se escuta somente sua impotência. A longo prazo, o extermínio não é uma solução.

Não há que se desesperar com o estado de aviltamento do debate na esfera pública: Se nela se grita tão alto, é porque ninguém mais escuta. a que acontece verdadeira e subterraneamente é que tudo se pluraliza, tudo se localiza, tudo se revela situado, tudo foge. Não é apenas que o povo falta, que ele não se mostra, que não dá notícias, que mente aos entrevistadores, é que ele já fez as malas, em mil direções insuspeitadas. Não é apenas abstencionista, à margem, inencontrável: ele está em fuga,mesmo quando sua fuga seja apenas para o interior ou imóvel. Ele já está em outro lugar. E não vão ser os arrebatadores da extrema esquerda, os senadores socialistas ao estilo da Terceira República que se tomam por Fidel Castro, como Mélenchon, os que vão fazê-lo voltar ao ninho. a que nomeamos “populismo” não é apenas o sintoma criador da desaparição do povo, é uma tentativa desesperada para reter o que nele resta de assombro e desorientação. Uma vez que uma situação política real sé apresenta, como o conflito da primavera de 2016, o que se manifesta de maneira difusa é toda a inteligência, sensibilidade e determinação comuns que os clamores da publicidade procuram esconder. O acontecimento que foi a aparição, nesse conflito, da “marcha de cabeça”² mostrou isso bem. Enquanto o corpo social naufragava por todas as partes, incluindo o velho corpo do enquadramento sindical, mostrou-se evidente, para todo manifestante vivo, que os desfiles em marcha lenta exibiam a pacificação pelo protesto. Assim, marcha após marcha, viu-se agregar à cabeça da manifestação todos que aspiram desertar do cadáver social para não se contagiar por sua pequena morte.”³ Isso começou com os estudantes do ensino médio. Em seguida, todos os tipos de jovens e de mais jovens, de militantes e de desorganizados, vieram a engrossar suas fileiras. Para terminar, quando da manifestação de 14 de junho, seções sindicais inteiras, até mesmo os estivadores do Havre, uniram-se à cabeça incontrolada de uma manifestação de dez mil pessoas. Seria um erro ver na tomada da cabeça dessas manifestações uma espécie de revanche histórica daqueles que, “anarquistas”, “autônomos” e outros costumeiros frequentadores de finais das manifestações, encontravam-se tradicionalmente no fim da fila da marcha, com o intuito de se entregar a escaramuças rituais. O que ali se passou naturalmente é que um certo número de desertores criou um espaço político onde compor sua heterogeneidade, um espaço efêmero, por certo, insuficientemente organizado, mas acessível e, no período de uma primavera, realmente existente. A marcha de cabeça se constituiu como o receptáculo da fragmentação geral. Como se, ao perder toda força de agregação, essa “sociedade” livrasse por toda parte pequenos núcleos autônomos, territorial, setorial ou politicamente situados, e esses núcleos conseguissem pela primeira vez se agrupar. Se a marcha de cabeça conseguiu finalmente atrair uma parte não negligenciável daqueles que combatiam o mundo da lei do trabalho, não é porque todas essas pessoas teriam repentinamente se tornado “autônomas” – a multiplicidade de seus componentes dá um suficiente testemunho disso -, mas é porque, para elas, existia, na situação, a presença, a vitalidade e a verdade que faltava ao resto.

A marcha de cabeça era mais do que um sujeito separável do resto da manifestação, apenas um gesto, que a polícia jamais conseguiu, como ela se empenhou tão regularmente em fazê-lo, isolar. Para acabar com o escândalo de sua existência, para reestabelecer a imagem tradicional do desfile sindical com, à sua cabeça, os chefes de diferentes centrais, para neutralizar essas cabeças da marcha sistematicamente compostas de uma massa de jovens encapuzados que desafiam a polícia, de gente mais velha que os apoia ou operários liberados que rompem a linha do batalhão de choque, finalmente foi preciso cercar a totalidade da manifestação. No fim de junho, produziu-se então a humilhante ronda ao redor do porto do Arsenal, encapsulada por um formidável dispositivo policial- bela manobra de desmoralização levada a termo conjuntamente pelas centrais sindicais e o governo. Naquele dia, o jornal comunista L’Humanité destacava seus titula­res com a insígnia “vitória”, que representava essa “manifestação” – é uma tradição, entre os stalinistas, cobrir suas retiradas com litanias de triunfo. A longa primavera francesa de 2016 teria estabelecido esta evidência: o motim, o bloqueio e a ocupação formam a gramática política elementar da época.

A “ratoeira” não constitui apenas uma técnica de guerra psicológica que as forças de segurança francesas tardiamente importaram da Inglaterra.”[4] A ratoeira é uma imagem dialética do poder presente. É a figura de um poder desprezado, desonrado e que não faz mais do que manter a população em suas redes. É a figura de um poder que não promete mais nada e não tem outra atividade senão trancar todas as saídas. De um poder ao qual ninguém mais adere positivamente, do qual cada um tenta, à sua maneira, fugir e que não tem outra pavorosa perspectiva senão a de manter em seu estreito círculo todo aquele que, incessantemente, lhe escapa. Essa figura do encapsulamento o é porque também reúne aquilo que tem vocação de aprisionar. Nela se produzem encontros entre aqueles que tentam desertar. Cantos inéditos e cheios de ironia aí nascem. Uma experiência comum nela se faz. O dispositivo policial é inapto para conter a saída vertical que nela se produz sob a forma das pichações, que não tardam em figurar em todo muro, marquise, comércio, testemunhando que o espírito se mantém livre, mesmo quando os corpos são detidos. “Vitória pelo caos”, “. em cinzas, tudo se torna possível”, “a  França, seu vizinho, suas revoluções”, “homenagem às famílias das vitrines”, “kiss kiss bank bank”, “penso logo quebro”: desde 1968 os muros não viam tanta liberdade de espírito. “Daqui, deste país onde nós respiramos mal um ar cada dia mais rarefeito, onde nos sentimos cada dia mais estrangeiros, não podia nos chegar nada mais do que este cansaço que nos devora com tanto vazio, com tanta impostura, Na falta de algo melhor, nós nos conformávamos com palavras, a aventura era literária e o engajamento era platônico. A revolução de amanhã, a revolução possível, quantos dentre nós ainda acreditávamos nela?” É assim que Pierre Peuchmaurd descreve, em Plus vivant que jamais, o ambiente que maio de 1968 enterrou.

Um dos aspectos mais marcantes do processo de fragmentação em curso é que ele toca inclusive aquilo que até agora tinha como dever assegurar a manutenção da unidade social: o Direito. Legislações antiterroristas de exceção, esfacelamento do Direito do Trabalho, especialização crescente das jurisdições e das fiscalizações, o Direito não existe mais. Tomemos o Direito Penal. Sob o pretexto de antiterrorismo e de luta contra o “crime organizado”, o que se desenha, ano a ano, é a constituição, em matéria penal, de dois direitos distintos: um direito para os “cidadãos” e um “direito penal do inimigo”. É um jurista alemão, valorizado em seu tempo pelas ditaduras sul-americanas, que o teorizou. Ele se chama Günther Jakobs. Jakobs nota que os desprezíveis, os opositores radicais, os “vadios”, os “terroristas”, os “anarquistas”, enfim, o conjunto daqueles que não têm tanto respeito pela ordem democrática em vigor e representam um “perigo” para “a estrutura normativa da sociedade”, cada vez mais têm reservado para si um tratamento derrogatório no direito penal normal, ao ponto de já não se respeitar seus direitos constitucionais. Não é lógico, em certo sentido, tratar como inimigos aqueles que se comportam como “inimigos da sociedade”? Não estão “eles próprios se excluindo do direito”? E não devemos, a partir de então, admitir a existência, para eles, de um “direito penal do inimigo”, que consiste justamente na ausência completa de todo direito? É, por exemplo, o que pratica abertamente, nas Filipinas, o presidente Duterte, que mede a eficácia de seu governo na guerra declarada “às drogas” pelo número de cadáveres de “traficantes” que chegam ao IML, sejam os “produzidos” pelos esquadrões da morte ou pelos simples cidadãos. No momento em que escrevemos, a conta passa de 7 mil assassinatos. Que ainda aí se trate de uma forma de direito, eis o que é atestado pelas interrogações das associações de juristas que se perguntam se não estaríamos, por acaso, a caminho da “saída do estado de direito”. O “direito penal do inimigo” é o fim do direito penal. E isso não é pouca coisa. Aqui, a farsa está em fazer crer que ele seria aplicado a uma população criminal previamente identificada, quando o que ocorre é justamente o contrário: só é declarado “inimigo” aquele que já se escutou, prendeu, sequestrou, molestou, maltratou, torturou e, finalmente, matou. Um pouco como quando os policiais denunciam por “desacato e rebelião” aqueles que acabam de chamar atenção de uma maneira um pouco ostensiva.

Por paradoxal que possa parecer essa afirmação, nós vivemos o tempo da abolição da Lei. A proliferação por metástase das leis é só um aspecto dessa abolição. Se cada uma das leis já não tivesse se tornado insignificante no edifício rococó do direito contemporâneo, seria preciso produzir tantas? Seria preciso promulgar uma nova legislação para cada fato pitoresco que se produz? Na França, o objeto dos grandes projetos de lei dos últimos anos se resume quase exclusivamente à abolição das leis em vigor, ao desmantelamento progressivo de toda garantia jurídica. De modo que o Direito, que pretendia proteger os homens e as coisas dos acasos do mundo, tornou-se, antes, algo que au­menta esta precariedade. Um traço distintivo das grandes leis contemporâneas é colocar tal ou qual, administração, tal ou qual potência, sob leis. A lei da Informação abolia todo recurso diante dos ser­viços de informação. A lei Macron, que pôde ins­taurar o “segredo comercial”, denomina-se “lei” em virtude de uma estranha novilíngua: ela consistia mais em desfazer todo um conjunto de garantias das quais dispunham os assalariados – em relação ao trabalho de domingo, às licenças ou as profissões regulamentadas. A própria lei do Trabalho só continuava um movimento já muito avançado: o que é a famosa “inversão da hierarquia das normas” senão, justamente, a substituição de qualquer marco jurídico geral pelo estado de exceção de cada empresa? Se resultou tão natural para um governo socialdemocrata inspirado pela extrema direita a declaração de estado de urgência após os atentados de novembro de 2015, é porque o estado de exceção já reinava sob a forma da Lei.

Aceitar ver a fragmentação do mundo até mesmo no direito não é nenhuma obviedade. É que na França, somos herdeiros, há quase um milênio, do “Estado de justiça” – o bom rei São Luís, que compartilhava a justiça sob seu robe etc. No fundo, a chantagem que renova sem cessar as condições de nossa submissão é esta: o Estado, o Direito, a Lei, a polícia, a justiça, ou a guerra civil, a vingança, a anarquia e todo seu barulho. Essa crença, esse justicialismo, este estatismo, impregnam de maneira uniforme o conjunto das sensibilidades politicamente admissíveis e audíveis neste país, da extrema esquerda à extrema direita. É inclusive segundo esse eixo inamovível que se opera a conversão de uma boa parte do voto operário em voto na Frente Nacional, sem crise existencial maior para os envolvidos. É isso também que provoca todas as reações indignadas diante da enxurrada de “casos” que compõem o cotidiano da vida política contemporânea. Nós propomos outra percepção das coisas, outro modo de apreendê-las. Aqueles que fazem as leis evidentemente não as respeitam. Aqueles que pretendem inculcar em nós a “moral do trabalho” têm empregos fictícios. Os policiais da “narcóticos” – e isso já é notório – são os maiores traficantes de haxixe da França. E quando um magistrado é extraordinariamente submetido à escuta, não se tarda a descobrir os inqualificáveis, arranjos que se escondem por trás do augusto pro­nunciamento de uma sentença, de urna apelação ou de uma suspensão processual. Apelar à Justiça neste mundo é como pedir para um ogro cuidar de suas crianças. Quem quer que conheça o reverso do poder, cessa imediatamente de respeitá-lo. Os amos sempre foram, em seu mais profundo íntimo, anarquistas. Eles só não gostam que os outros o sejam. E os patrões sempre tiveram um coração de bandido. É essa honorável maneira de ver as coisas que desde sempre inspirou os operários lúcidos à prática de pequenos furtos e, até mesmo, da sabotagem. É de fato preciso chamar-se Míchéa”[5] para crer que o proletariado sempre fora moralista e legalista. Na vida, é entre os seus que o proletário manifesta sua ética, não nas relações com a “sociedade”. Diante da “sociedade” e sua hipocrisia, ele não pode ter outra relação senão a guerra mais ou menos aberta.

É essa maneira de raciocinar que, da mesma forma, inspirou a fração mais determinada dos manifestantes do conflito da primavera de 2016. Pois um dos traços mais chamativos desse conflito é o fato de ter acontecido em pleno estado de urgência. Não é por acaso que as forças organizadas, que em Paris contribuíram para a formação da marcha de cabeça, sejam também aquelas que desafiaram o estado de emergência na Place de la République. durante acor 21.[6] Há duas formas de afrontar o estado de emergência. Pode-se denunciá-lo verbalmente e suplicar o retorno a um “Estado de Direito” que, se bem nos recordamos, sempre nos parecia excedente no tempo em que ainda não estava “suspenso”. Mas é possível dizer: “Ah! Façam o que quiser! Vocês se consideram livres das leis das quais supõem obter sua autoridade! Então nós também, vejam!” Há aqueles que protestam contra um fantasma, o estado de urgência, e aqueles que o tomam como causa e a partir dele desenvolvem seu próprio estado de exceção. Aí onde um velho reflexo de esquerda nos leva a tremer diante do estado de exceção fictício da democracia, o conflito da primavera de 2016 preferiu justamente opor, na rua, seu estado de exceção real, sua própria presença no mundo, a forma singular de sua liberdade.

O mesmo vale para a fragmentação do mundo: é possível deplorá-la e tentar subir a nado o rio do tempo, mas também se pode dela partir e ver como fazer. Seria demasiado simples opor um afeto nostálgico, reacionário, conservador “de direita” e um pós-modernismo caotizante, multiculturalista, “de esquerda”. Ser de direita ou de esquerda é escolher dentre as inumeráveis maneiras que se oferecem ao homem para ser imbecil. E, de fato, de um lado a outro do espectro político, os apoiadores da unidade estão equitativamente repartidos. Há nostalgias de grandeza nacional por todos os lados, à direita e à esquerda, de Soral a Ruffin.[7] Há a tendência em esquecer, mas já há um século. que um candidato se apresentou para tomar o lugar da forma de vida universal: o Trabalhador. Se pôde aspirar a tal cargo, é como consequência do grande número de amputações que ele se impôs – em termos de sensibilidade, de apegos, de gosto ou de afetividade. Isso lhe dava; por certo, um ar curioso. De modo que, ao vê-lo, o júri fugiu e, desde então, o candidato vaga sem saber aonde ir ou o que fazer, sobrecarregando o mundo de forma lastimável com sua glória passada. No tempo de seu esplendor, contava com fãs de todos os cantos, nacionalistas ou bolcheviques, até mesmo nacio­nal-bolcheviques. Observamos, em nossos dias, uma explosão da figura humana. A “Humanidade”, como sujeito não tem mais rosto. À margem de um empobrecimento organizado das subjetivida­des, somos testemunhas da persistência tenaz e do surgimento de formas de vida singulares, que tra­çam seu caminho. É esse escândalo que pensamos esmagar, por exemplo, com a selva de Calais. Esse ressurgimento de formas de vida, em nossa época, resulta assim da fragmentação da universalidade perdida do trabalhador. Ela realiza o luto do trabalhador como figura. Um luto mexicano, no mais, que não tem nada de triste.

Desde os conflitos da primavera de 20I6, por assim dizer, temos assistido, coisa impensável há alguns anos, à fragmentação da própria CGT [Con­federação Geral do Trabalho]. Enquanto a CGT Marselha desembainhava os cassetetes contra os “jovens”, a CGT Douai-Arrnentiêres, aliada dos “incontroláveis”, saía no braço com a S0 [8] da CGT Lille, ainda mais desesperadamente stalinista. A CGT Energia reivindicava, em Haute-Loire, a sabotagem dos cabos de fibra óptica utilizados pelos bancos e operadoras de telefonia. Durante todo o conflito, o que acontecia no Havre em nada se parecia com o que acontecia em outras partes. As datas de manifestação, as posições da CGT local, a discrição imposta à polícia: tudo isso acontecia em um sentido autônomo do todo nacional. A CGT, no Havre, votou essa moção e convocou as forças de polícia e o prefeito para avisá-los: ‘~ cada vez que um estudante for levado para a delegacia de polícia, não é complicado, fecha-se a porta!” O Havre tinha a fragmentação feliz. As fricções entre “marcha de cabeça” e afiliados sindicais marcaram um compromisso notável. Então aconteceu que um bom número de, afiliados da CGT passou à posição estritamente defensiva: não mais pretendiam se fazer de policiais nas manifestações, quebrar a cara dos “autônomos” e entregar “os selvagens” para os policiais, só se concentravam na simples proteção de seu canto na marcha. Um deslocamento apreciável e, quem sabe, durável. Não obstante um comunicado de condenação das “violências”, exigido após a manifestação contra a Frente Nacional em Nantes, em 25 de fevereiro de 2017, a CGT 44 se organizou para a ocasião com zadistas [9] e outros incontroláveis. É  um dos felizes efeitos do conflito da primavera de 2016 e que com certeza deve inquietar alguns do lado do governo e também do lado da central.

Uma vez acontecido, o processo de fragmenta­ção do mundo pode levar à miséria, ao isolamento, à esquizofrenia. Ele pode se mostrar, na vida dos seres, como uma pura perda. A nostalgia então nos invade. O pertencimento é tudo o que resta àqueles que não têm mais nada. Ao preço de admitir a fragmentação como ponto de partida, ela pode também dar lugar a uma intensificação e uma pluralização dos lugares que nos conformam. Fragmentação, então, não significa separação, mas cintilação do mundo. Visto em perspectiva, é muito mais o processo de “integração à sociedade” que se revela ter sido uma lenta perda de ser, uma separação continuada, um deslizamento para uma vulnerabilidade cada vez mais frequente e sempre mais maquiada. A ZAD [zona a ser defendida] de Notre-Dame-des-Landes ilustra o que pode significar o processo de fragmentação do território. Que uma porção de terra se destaque do continuum nacional para entrar em secessão e aí permanecer de forma durável; para um Estado territorial tão antigo como o Estado francês, prova de forma ampla que este não existe mais da mesma maneira que no passado. Algo assim teria sido inimaginável sob de Gaulle, Clemenceau ou Napoleão, Na época, seria enviada a infantaria para liquidar o assunto. Agora, nomeia-se uma operação “Cesar” e saem em retirada diante de uma guerrilha de bosques. Que nas rodovias das imediações da Zona os ônibus da Frente Nacional possam ser atingidos num “ataque de diligência”, ou que uma viatura de polícia colocada num canto de um bairro para vigiar uma câmera que vigia “os traficantes” seja incendiada por um coquetel Molotov, indica que, de fato, este país se converteu um pouco num faroeste. O processo de fragmentação do território constituir um distanciamento do mundo, só multiplicou as circulações mais inesperadas, as mais planetárias e as mais próximas. A ponto de ser possível dizer que a melhor prova de que os extraterrestres não existem é que eles não tiveram contato com a ZAD. Por sua vez, o destacamento desse pedaço de terra induz sua própria desagregação interior, sua fractalização, a multiplicação dos mundos em seu seio e, assim, territórios que aí coexistem e se sobrepõem. Novas realidades coletivas, novas construções, novos encontros, novos pensamentos, novos usos, recém-chegados em todos os sentidos, com os confrontos necessariamente induzidos pela fricção entre os mundos e os modos de ser. E daí uma intensificação considerável da vida, um aprofundamento das percepções, uma proliferação de amizades, de inimizades, de experiências, de horizontes, de histórias, de contatos, de distâncias – e uma grande fineza estratégica. Com a fragmentação sem fim do mundo, cresce também, de maneira vertiginosa, o enriquecimento qualitativo da vida, a profusão de formas, por pouco que se apegue à promessa de comunismo que ela contém.

Há na fragmentação algo que aponta na direção do que chamamos “comunismo”: é o retorno à terra, a ruína de todo pôr em equivalência, a restituição a si mesmas de todas as singularidades, a derrota da subsunção, da abstração, do fato de que momentos, lugares, coisas, seres e animais adquirem todos um nome próprio – seu nome próprio. Toda criação nasce de uma ruptura em relação a tudo. Como mostra a embriologia, cada indivíduo é a possibilidade de uma espécie nova, desde que faça seus os dados do que está ao Seu redor de maneira imediata. Se a Terra é tão rica em recursos naturais, isso se dá em virtude de sua completa ausência de uniformidade. Realizar a promessa de comunismo contida na fragmentação do mundo demanda um gesto, um gesto a se refazer interminavelmente, um gesto que é a própria vida: o gesto de compartilhar passagens entre os fragmentos, de colocá-los em contato, de organizar seu encontro, de abrir os caminhos que levam de uma extremidade de mundo amigo a um outro, sem passar por terra hostil, o gesto de estabelecer a boa arte das distâncias entre os mundos.

Que a fragmentação do mundo desoriente e desconcerte todas as certezas herdadas, que ela desafie todas as nossas categorias políticas e existenciais, que ela faça desaparecer o solo sob os pés da própria tradição revolucionária, é algo certo: ela nos põe um desafio. Lembremo-nos do que Tosquelles contava a François Pain a propósito da guerra civil espanhola. Alguns, então, eram milicianos; Tosquelles era psiquiatra. Ele constatava que os doentes tendiam a se rarefazer, porque a guerra, rompendo a trama da mentira social, curava os psicóticos de forma mais segura do que o manicômio. Ele dizia: “A guerra civil está em relação com a não homogeneidade do Eu. Cada um de nós é feito de pedaços contrapostos com uniões paradoxais e desuniões no interior de cada um de nós. A personalidade não é feita como um bloco. Se assim o fosse, seria uma’ estátua. É preciso reconhecer um fato paradoxal: a guerra não produz novos doentes, ao contrário. Há muito menos neuroses durante a guerra do que na vida civil, e há até mesmo psicoses que se curam”. Eis o paradoxo: a coação à uni­dade nos descompõe, a mentira da vida social nos psicotiza e é o abraçar a fragmentação que nos faz reencontrar uma presença serena no mundo. Há um certo ponto na mente em que esse fato deixa de ser percebido contraditoriamente. É aí que nós nos colocamos. Contra a possibilidade do comunismo, contra toda possibilidade de felicidade, levanta-se uma hidra de duas cabeças. Na cena pública, elas fingem ser inimigas juradas uma da outra. De um lado, há o programa de restauração fascistizante da unidade, de outro, há a potência mundial dos mercadores de infraestruturas – Google tanto quanto Vinci, Amazon quanto Veolia. Quem crê que é ou um ou outro terá os dois. Pois os fascistas têm apenas o discurso folclórico em relação àquilo de que os grandes construtores de infraestruturas têm os meios. Para estes, a crise das unidades antigas é, então, a oportunidade de uma nova unificação. Há, no caos contemporâneo, na desagregação das instituições, na morte da política, um mercado perfeitamente rentável para as potências infraestruturais e paras os gigantes da internet. Um mundo perfeitamente fragmentado permanece de todo gerenciável do ponto de vista cibernético. Um mundo dividido é mesmo a condição da onipotência daqueles que gerenciam os meios de comunicação. O programa dessas potências consiste em desdobrar, por trás das fachadas esfaceladas das velhas hegemonias, uma nova forina de unidade, puramente operacional, que não se incomoda com a pesada produção de um sentimento de pertencimento sempre vacilante, mas opera diretamente no “real”, reconfigurando-o. Uma forma de unidade sem limites e sem pretensões, que intenta construir sobre a fragmentação absoluta a ordem absoluta. Uma ordem que jamais pretende fabricar um novo pertencimento fantasmático, mas se contenta em fornecer, por suas redes, seus servidores, suas rodovias, uma materialidade que se impõe a todos de modo inquestionável. Nenhuma outra unidade senão a uniformização das interfaces, das cidades, das paisagens; nenhuma outra unidade exceto a da informação. A hipótese do Vale do Silício e dos grandes mercados de infraestrutura é a de que não há mais necessidade de se fatigar para pôr em cena uma unidade de fachada: eles pretendem criar a unidade no mundo mesmo, incorporada em suas redes, colada em seu cimento. Evidentemente que não nos sentimos pertencer a uma “humanidade Google”; mas isso é proveitoso para a Google toda vez que nossos dados lhe pertencem. No fundo, por pouco que aceitemos ser reduzidos ao simples estatuto de “usuários”, nós pertencemos à cloud, que não tem nenhuma necessidade de proclamar isso. Dito de outro modo: só a fragmentação não nos protege de uma tentativa de reunificar o mundo pelos “governantes de amanhã”: para estes, isso é inclusive a condição e a textura ideal. De seu ponto de vista, a fragmentação simbólica do mundo abre espaço para sua unificação concreta; a segregação não se opõe à configuração em rede, ela lhe dá, pelo contrário, sua razão de ser.

A condição do reino dos Gafa (Google, Apple, Facebook, Amazon) é que os seres, os lugares, os fragmentos do mundo, permaneçam sem contato real. Onde os Gafa pretendem “vincular o mundo inteiro”, o que fazem é, ao contrário, trabalhar para o isolamento real de cada um. É imobilizar os corpos. É manter cada um recluso em sua bolha sig­nificante. O golpe de força do poder cibernético consiste em gerar, em cada um, a sensação de ter acesso ao mundo inteiro, quando se está, na reali­dade, cada vez mais separado; de ter cada vez mais “amigos”, quando se é cada vez mais autista. A multidão em série nos transportes coletivos sempre foi uma multidão solitária, mas cada um que dela fazia parte não transportava consigo sua bolha pessoal, tal como acontece depois do aparecimento dos smartphones. Uma bolha que imuniza contra todo contato, além de constituir uma vigilância absoluta. Essa separação desejada pela cibernética leva, de maneira não fortuita, à constituição de cada fragmento como uma pequena entidade paranoica, a um processo de deriva dos continentes existenciais em que o estranhamento reinante entre os indivíduos nessa “sociedade” se coletiviza ferozmente em mil pequenos agregados delirantes. Contra isso, é preciso sair de nossa casa, ir ao encontro, tomar o caminho, trabalhar a ligação conflitiva, prudente e feliz, entre os fragmentos de mundo. É preciso se organizar. Organizar-se verdadeiramente nunca foi outra coisa do que se amar.


NOTAS

1.  Canal de notícias 24 horas da televisão francesa. [N.T]

2. Em francês, cortège de tête. Trata-se da inversão da expressão tête de cortêge, que remete às “lideranças de uma marcha (OU cortejo)”. A expressão invertida designa um grupo de pessoas quaisquer que se recusa a ser conduzido pela segurança da manifestação, e que, portanto, não reconhece nenhuma liderança. [N.T.]

3. Em francês, petite morte. Trata-se de expressão que também pode designar o gozo sexual [N.T.]

4. Técnica conhecida como kettling. caldeirão de Hamburgo ou encapsulamento. [N.R.]

5.  Jean-Claude Michéa é um filósofo francês que contesta o que, para ele, são as correntes dominantes da esquerda. [N.T.]

6. Conferência Mundial das Nações Unidas sobre mudanças climáticas. [N.T.]

7. Alain Soral é um ensaísta francês que, depois de sua participação no Partido Comunista Francês, nos anos 1980, tem sido considerado como um ideólogo da extrema direita, sobretudo depois do início dos anos 200o.Já François Ruffin é um jornalista e ensaísta francês. É fundador do jornal Fakir, considerado da esquerda radical. [N.T.]

8. Membres du service d’ordre, afiliados da Confederação. [N.T.]


FONTE

Comitê Invisível in: Motim e Destituição Agora. 2017, 1ª edição. n-1 edições.


Comitê Invisível, grupo anônimo de pensadores e ativistas sediados na França.

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