CURSO DE PSICOPATOLOGIA SOCIAL DE FRANTZ FANON NO INSTITUT DES HAUTES ÉTUDES DE TÚNIS, NOTAS REUNIDAS POR LILIA BEN SALEM, TÚNIS, 1959–60¹
ENCONTRO ENTRE A SOCIEDADE E A PSIQUIATRIA
O louco é aquele que é “estranho” à sociedade. E a sociedade decide se livrar desse elemento anárquico. O internamento é a rejeição, o alijamento do enfermo. A sociedade exige do psiquiatra que torne o enfermo novamente apto a integrar a sociedade. O psiquiatra é o auxiliar da polícia, o protetor da sociedade contra… O grupo social decide se proteger e tranca o doente. Quando o doente deixa o estabelecimento psiquiátrico sem a anuência do médico, há uma série de consequências a enfrentar. Os psiquiatras se insurgiram violentamente contra esse papel; exigiram das autoridades que deixassem alguma margem de espontaneidade à família e ao paciente. Essa nova visão gerou frutos. Veremos mais adiante como, ao praticar a autointernação, o doente mental pode se conscientizar de sua doença.
O problema da consciência da doença levanta dilemas. Não existe método que permita constatar se uma doença mental desapareceu; a partir de que momento se pode dizer que o doente foi curado? Desde 1930 sociólogos vêm oferecendo à psiquiatria dados interessantes. Uma vez que o doente perdeu efetivamente o sentido do social, é preciso ressocializá-lo. Porém, a qual grupo ele deve se adaptar? Percebemos que alguns poderiam ser admitidos no grupo familiar, mas dificilmente no grupo profissional ou vice-versa. Vemos pervertidos sexuais que são bem-sucedidos no plano social. Existe no esquizofrênico, em sua forma catatônica, um retraimento. Existem masoquistas morais: seriam anormais? Será que o objetivo do ser humano é nunca apresentar problemas ao grupo?
Diz-se também que a pessoa normal é aquela que não cria dificuldades. Mas, então, os sindicalistas que reivindicam e que protestam são normais? Quais seriam os critérios de normalidade? Para alguns, o critério é o trabalho. Mas uma prostituta trabalha! Ora, pode tratar-se de uma neurótica. No mesmo sentido, um desempregado estaria por isso doente? Muitos desempregados adoecem, mas seria porque estão desempregados? O médico está situado entre a sociedade e o enfermo. Por exemplo, em relação à correspondência, o médico lê as cartas vindas da sociedade e destinadas ao paciente. E a sociedade se esforça para controlar o trabalho do psiquiatra. O paciente, com frequência, parece curado e sofre uma recaída no momento da alta, por vezes de forma muito grave (tentativas de suicídio, por exemplo). Daí o esforço para criar uma sociedade dentro do próprio hospital: é a socioterapia.
Antes, a vida no hospital era desorganizada: divisões em alas, em quartos, em celas; o instrumento essencial era a chave. Na base da socioterapia, alguns princípios:
1) É proibida a loucura no hospital. Antes, quando um paciente se punha a chorar, dizia-se que cumpria a sua função de Toda manifestação patológica deve ser enfrentada; a razão deve ser contraposta à desrazão do paciente. É uma experiência extremamente rica para quem a pratica. Não se pode estar doente com um cérebro são, com impecáveis conexões neurônicas; por meio das conexões, há uma espécie de via aberta, por meio da qual o médico deve adentrar com princípios inovadores, de modo que a loucura é permitida.
2) Modificação do ritmo diário. Os trajetos privilegiados do paciente eram outrora ordenados por categorias. Impunha-se um ritmo. Eram criados refeitórios, entrega dos talheres, entrega dos guardanapos, e exigia-se dos pacientes que tivessem atitudes normais. É preciso que o paciente trabalhe e receba uma remuneração. Que se organizem concursos, reuniões das quais ele deve participar na presença do médico. O problema da tolerância do grupo em relação ao paciente é muito importante.
Dificuldades da socioterapia: a tolerância em relação ao paciente pode estar na origem de prejuízos materiais significativos; médicos anglo-saxões criaram a sala de polícia com guarda campal.
Diz-se que a socioterapia cria uma sociedade falsa. Será possível domesticar o ambiente social da mesma forma como se faz com o ambiente natural?
SOCIALIZAÇÃO EM FUNÇÃO DA MATÉRIA CEREBRAL
Abandonamos a perspectiva sociológica clássica pela neurofisiologia. A postura bípede alterou o corpo, fez bascular a cabeça, modelou o rosto, aumentou a capacidade da caixa craniana: essa hominização merece nossa atenção:
- complexidade crescente do sistema nervoso, do cérebro que alcança sua fase final, que é o cérebro humano com o desenvolvimento exagerado dos hemisférios;
- dois tipos de integração: integração subcortical (em muitos animais, o córtex é pouco desenvolvido); no homem, uma espécie de desenvolvimento do manto cerebral. As integrações subcorticais deram lugar ao manto O cérebro humano não só é maior, como também é mais complicado. O máximo de neurônios é acompanhado pelo máximo de capacidades. Existe um grande número de feixes de associação; não existe um só ponto do cérebro que não esteja ligado a todos os outros.
Como funciona o cérebro? Ele se comporta como qualquer protoplasma do animal mais banal (fenômeno de despolarização e repolarização). Será o cérebro humano algo já acabado de modo definitivo? Será que a criança nasce com um cérebro que se desenvolve em função de um fenômeno endógeno (tese de Cuvier)? Será o cérebro um produto social (na origem, não há nada), como sugere a tese de Lamarck?
Existe uma dominância hemisférica: encontramos o centro da linguagem no nível do hemisfério esquerdo; crianças que apresentam hemiplegia direita falam. Quando o hemisfério esquerdo é atingido, ocorre uma inversão e o cérebro direito assume o lugar do cérebro esquerdo. Os surdos não nascem mudos: como não escutam a si mesmos, há um abandono progressivo dos movimentos originais de fala: a pessoa se torna muda por ser surda.
O cérebro humano tem potencialidades enormes, mas é preciso que elas possam se desenvolver num ambiente coerente. É preciso que as mensagens enviadas ao cérebro possam ser recebidas.
Poder ser socializado é, antes de mais nada, ter um cérebro normalmente constituído. Mas, por mais que essa seja uma condição necessária, outros elementos também contam. Piaget confere grande importância à linguagem, no entanto, antes da linguagem há um estágio preliminar.
No nível do cérebro, existe consubstancialidade do nós e do eu: não se pode dizer que a criança é egocêntrica e não enxerga o mundo exterior. Otto Rank descreveu seu “célebre” trauma do nascimento. Na prática do parto sem dor, percebe-se que o parto é um ato fisiológico, e não patológico.
Apoiemo-nos numa série de fatos: 1) um bebê de seis meses não consegue dormir no escuro: ele sempre dormiu com a luz acesa, há uma espécie de intoxicação das células cerebrais; 2) um bebê de três meses desenvolve uma dermatose que resiste a todo tipo de tratamento: a mãe dava de mamar à criança como se esta fosse um objeto repulsivo; 3) um bebê de dois meses e meio não dorme, não come, em seguida começa a comer, mas emagrece: os pais tampouco conseguem dormir; a criança, confiada à avó, recuperou-se e voltou a dormir; 4) um bebê de catorze meses não dorme e é agressivo: o pai, desempregado, bate na mãe; 5) um bebê de catorze meses apresenta vômitos irreprimíveis; a causa se revela ser a atitude dos pais em relação à criança: o pai tem dúvidas quanto à sua paternidade; 6) uma criança não sorri: a mãe tem dupla paralisia facial.
Desde as primeiras semanas, surgem estereótipos. Existe uma presença constante do meio social; desde os primeiros minutos de sua vida, a criança é guiada pelo meio social. Se algumas demoram para falar, geralmente é porque precisam pôr fim às inibições que se instalaram na primeira infância. Os casos de dislexia podem ser tratados.
A FORMAÇÃO DO EGO
O ponto de vista neurológico converge com o ponto de vista psicanalítico, e este estipula que, durante a fase de latência, tudo esteja em ordem. Lacan diz que a criança, quando nasce, está “fragmentada” (as associações ainda não foram estabelecidas). Aos seis meses de idade, produz-se uma mutação, que é o reconhecimento da imagem da mãe pela criança e a certeza que esta adquire de que o outro é igual ao “eu”; Lacan chama essa fase de estágio do espelho: se colocarmos uma criança diante do espelho aos quatro meses, nada acontecerá; aos sete meses, júbilo extraordinário: reconhecimento que ela associa à imagem materna. O fato de eu ser eu é assombrado pela existência do outro. Para o ser humano, o estágio do espelho é uma etapa habitual; a criança reage à face humana bem cedo; existe um reflexo condicionado.
A criança é muito sensível às modificações da atmosfera. O cérebro não é fraco em sua constituição. Ser socializável é poder manter uma tensão constante entre ego e sociedade. Com a linguagem, isso se complica: a palavra se converte no sinal de um sinal. Se o meio não me autoriza a responder, é evidente que me atrofio, que sou detido, retido, que não posso ter um ritmo normal; se o meio me amarra, há conflito; não existe essa perspectiva aberta à complexidade fracionária do cérebro. Ser socializado é responder ao meio social, é aceitar que o meio social influi sobre o ego.
CONTROLE E MONITORAMENTO
Já se disse que os tempos modernos eram caracterizados pelo fichamento do indivíduo. O psiquiatra intervém quando a pessoa faz parte de um esquema de trabalho, de uma técnica; a pessoa trabalhando em equipe, na linha de produção, tem necessidade de ser controlada.
Antes, controlava-se um objeto, controlava-se o trabalho empregado num objeto material; era um controle quantitativo. Em seguida, com o desenvolvimento do mercado, introduziu-se certa quantificação. Passaram a ser consideradas as horas de trabalho, o número de horas de presença no interior de uma linha de produção. Foi isso que deu origem ao sistema de relógio de ponto.
O relógio de ponto tem apelidos – o “negociante”, o “avô”. O patrão o chama de “antifurto”. Ser um bom trabalhador é não ter problemas com o relógio de ponto. Os vínculos do trabalhador com ele são estreitos, registrados minuto a minuto. A pessoa sente a presença do aparelho como um peso. Estar na hora, para o operário, é estar em paz com o aparelho. A noção moral de culpabilidade é introduzida aqui. O aparelho previne e limita a culpabilidade endêmica do trabalhador. Para o patrão, o relógio de ponto é indispensável. O aparelho, por estar continuamente presente, invoca determinado número de condutas no operário. Representa o aparato como um todo que o emprega. Antes do aparelho, havia para o operário a possibilidade de se escusar; dali em diante, ele é constantemente relegado à solidão, com a impossibilidade de persuadir o empregador de sua boa-fé.
Daí as condutas patológicas observadas: tensões nervosas; cóleras explosivas; sonhos desses operários / pesadelos: um trem que parte e me deixa para trás, uma grade que se fecha, uma porta que não mais se abre, um jogo que não me permite jogar, o patrão que se foi, deixando o aparelho em seu lugar…
Mas não é meramente o vínculo que se reifica nesse caso, é o empregado também. Em decorrência disso:
- absenteísmo: o trabalhador chega atrasado, mas não entra, por medo da advertência. Vai então ao médico e tira uma licença médica. Contudo, há o Portanto, o empregado da fábrica não sabe o que é relaxar. Ele sente tédio; tem a impressão de estar excluído do grupo, de estar deslocado;
- reforço das atitudes obsessivas: o tempo não é mais uma coisa dentro da qual me encaminho de forma ordenada, mas algo que preciso incessantemente levar em consideração;
- acidentes: ocorrem 50% mais acidentes antes da chegada ao trabalho do que na volta para casa, momento em que, no entanto, o trabalhador está mais cansado;
- perda de controle dos reflexos.
Existem meios de prevenir esses problemas? Seria preciso que os patrões e a coletividade começassem a se ocupar disso.
AS NEUROSES DAS TELEFONISTAS
O ambiente estudado é o serviço de chamadas interurbanas de Paris. Le Guillant,² com base em inúmeros casos, constatou os seguintes fenômenos entre as telefonistas: sensação de cabeça vazia, trabalho intelectual impossibilitado; impossibilidade de se deitar sem dor: perda do controle dos reflexos; fenômenos obsessivos; perturbações do humor, afetando o marido e o ambiente familiar; impossibilidade de suportar o barulho; insônias; distúrbios somáticos: as pacientes não se alimentam mais e são constantemente acometidas por doenças. Tudo isso influi na vida conjugal.
De onde vêm esses transtornos? Demasiada quantidade de chamadas; é preciso usar o fone na cabeça o tempo todo. Le Guillant fala também do painel de escuta controlado pelo supervisor: a funcionária se sente espionada, ela deve se controlar constantemente; o corpo, na medida em que se manifesta, é perseguido alucinantemente pela percepção auditiva. O papel da funcionária é estabelecer o canal de comunicação, conectar cabos, se abstrair.
Nos serviços públicos, a telefonista não é monitorada e os distúrbios se devem apenas ao caráter mecanizado da profissão, e não ao painel de escuta ou aos supervisores. Nesse caso, temos um exemplo daquilo que se chama em psiquiatria de “síndrome de ação exterior”, que deforma e frequentemente leva ao suicídio.
OS FUNCIONÁRIOS DE GRANDES LOJAS
Especialmente nos Estados Unidos, câmeras operam nas grandes lojas sem que o funcionário seja advertido; existe um monitoramento permanente. Isso, é óbvio, não se destina apenas aos funcionários, mas, antes de mais nada, a ladrões, o que não impede que o funcionário se sinta constantemente espiado. Daí decorrem síndromes do mesmo tipo que as das telefonistas monitoradas pelo painel de escuta. No seio do ambiente tecnológico, a tendência é a redução das comunicações e a transformação das pessoas em autômatos.
O PROBLEMA DO RACISMO (ESTADOS UNIDOS)
Nas sociedades segregadas, observa-se um comportamento caracterizado por uma tensão nervosa predominante, que leva muito rápido ao esgotamento. Entre os negros americanos, o autocontrole é permanente e está presente em todos os níveis, emocional, afetivo… Essa segregação, chamada de color bar, é rígida, sua presença contínua tem algo de lancinante. Quando lemos os romances policiais de Chester Himes (A maldição do dinheiro [1957], A louca matança [1959], entre outros), percebemos muito bem que o traço dominante no Harlem é a agressividade. Por uma espécie de introjeção, a agressividade do negro se volta contra o negro; a condenação é absorvida; o negro “assume” a própria condenação.
Notem a importância dos sentimentos de culpabilidade do negro, assim como os do judeu.
É compreensível que o “negro”³ queira deixar o Harlem, mas isso significa querer ser branco. A religião é vista com frequência como um meio de se “branquear”. Por vezes, também se observam outras tentativas, como a que consiste em mostrar que o paraíso é negro, que Jesus Cristo é negro (ver Mais próximo do céu [The Green Pastures]);4 os temas da evasão, da partida e do sair voando nos negro spirituals;5 o desejo de se tornar grande, de ser campeão em alguma área – nesse sentido, a revanche histórica do negro americano por ocasião de manifestações esportivas como os Jogos Olímpicos.
A obsessão do suicídio: ver o blues e a música negra americana. Em alguns blues, a agressividade é cristalina: “Rezo a Deus para que este trem para o leste se espatife, que o maquinista seja morto…”. Com frequência, só resta aos negros um recurso: matar. Quando um negro mata outro, nada acontece; quando um negro mata um branco, toda a polícia é mobilizada.
PROBLEMA DO ENCONTRO
Em que medida, numa sociedade tão segregada quanto a americana, pode um negro encontrar um branco? Quando um negro americano está diante de um branco, há de imediato estereótipos que intervêm; não é preciso que ele seja “genuíno” com o branco, porque os sistemas de valores não são os mesmos; na base, há uma mentira, que é a mentira da situação. Confessar significa admitir fazer parte do próprio grupo social;6 se o negro é dominado, não se pode exigir dele um comportamento humano. Quando um negro se dirige a um branco, ele assume de saída uma voz específica, assim como uma entonação e um estilo também específicos. Quando o elemento branco intervém no Harlem, a solidariedade racial se manifesta imediatamente.
PROBLEMAS DE PSICOPATOLOGIA
Desde a infância, a sociedade intervém no desenvolvimento da personalidade. Nas histórias de “ninar”, já aparece o tema da negritude: “Dorme, dorme, meu pretinho, leve o tempo que levar, porque depois a mamata vai acabar”. Espécie de condicionamento pelo absurdo. Há um espaço reservado, com tudo o que isso implica em termos de proibição. Há tensão psicológica e muscular intensa, que ocasionará cefaleias e úlceras orgânicas. A inquietude é importante. A rejeição acarreta complexos de inferioridade. A dificuldade de defender o amor-próprio desvaloriza esse amor-próprio. Existem, ao mesmo tempo, uma suscetibilidade, uma sensibilidade à flor da pele.
A SOCIEDADE “COLONIZADA”
Nos territórios sob dominação estrangeira, encontram-se as mesmas atitudes. Argelinos se alistaram no Exército alemão, com a esperança de libertação de seu país pela Alemanha. O Manifesto de 31 de maio de 1943 reivindicava o direito dos argelinos à autodeterminação.7 Enorme relutância dos argelinos a se engajar na guerra. Diziam: “Os inimigos dos nossos inimigos são nossos amigos”. Em ¹939, a convicção do povo argelino era de que os alemães sairiam vitoriosos; chamavam Hitler de “Hadj Belgacem”.8 Em 1942, milícias territoriais foram instituídas. Mas as lideranças políticas conscientes do que era a ideologia nazista explicaram que não se deveriam nutrir ilusões. Os movimentos pró-nazistas no Irã e no Iraque eram, antes de mais nada, anti-ingleses ou antifranceses.
Há um reposicionamento dos valores; quando a independência é alcançada, não há mais glória para o ex-combatente. Aimé Césaire diz que, se os europeus são anti-hitleristas, é porque Hitler tentou aplicar a eles o que eles aplicavam aos povos que colonizaram.9
CONSIDERAÇÕES ETNOPSIQUIÁTRICAS
Foram descritas uma dependência do malgaxe, uma indolência do hindu. Em 1918, um professor de neuropsiquiatria, o prof. Porot, da Faculdade de Argel,10 publicou um tratado de “psiquiatria muçulmana”, no qual caracterizava o muçulmano da seguinte forma: ausência completa ou parcial de emotividade; credulidade; teimosia tenaz; propensão a acidentes e a crises de histeria. Contudo, em 1932 (Annales Médico-psychologiques), ele viria a dizer que o cabila, inteligente, escapava à debilidade mental constatada entre os outros argelinos. Em 1935, Porot,11 por ocasião da discussão de um relatório psiquiátrico, afirmou que o argelino era um grande débil mental; um ser primitivo, cuja vida era essencialmente vegetativa e instintiva; ao menor choque psíquico, reações diencefálicas, em vez de psicomotoras.
O prof. Sutter voltou à questão: “O primitivismo não é uma falta de maturidade, mas uma condição social advinda ao fim de sua evolução”;12 logo, não se pode explicar o primitivismo pela dominação; esse primitivismo se aplica de forma lógica a uma vida diferente da nossa, ele possui bases bem mais profundas.
Esses trabalhos da escola de Argel não ficaram isolados. Afirmações do mesmo gênero foram feitas em Marselha pelo dr. Gallais a respeito dos artilheiros senegaleses. O dr. Carothers realizou no Quênia um estudo sobre a Revolta dos Mau Mau e invocou a noção de ciúme (os ingleses assinalaram sua preferência por determinadas tribos): papel da frustração do amor do pai, simbolizado pelo colonizador inglês. Carothers afirmou que o africano se assemelha, por sua completa inaptidão para a síntese, a um europeu lobotomizado. O africano é, segundo ele, um lobotomizado constitutivo (ver The African Mind in Health and Disease: A Study in Ethnopsychiatry, 1954). Foram esses os trabalhos que lhe franquearam a entrada na Organização Mundial da Saúde.
RELAÇÕES DO COLONIZADO COM O TRABALHO NUMA SOCIEDADE COLONIZADA
Estudar os vínculos de colaboração entre o colonizador, o colono autóctone e o colonizado é mostrar que não existe vínculo.
O trabalhador colonizado e o Estado: o Estado se apresenta de saída como estrangeiro. O trabalhador agrícola dos seringais da Indochina ou o mineiro do sudoeste africano não são comparáveis ao camponês metropolitano. O colono, seu patrão, afirmou-se pela força; a bandeira metropolitana hasteada em seu território é uma violação. Entre os mineiros do norte da França há uma homogeneidade, e, mesmo que existam reivindicações, ocorrem no contexto do círculo nacional, do universo nacional. O colonizado só pode pensar em luta priorizando a contestação radical da dominação do seu país por outro.
Antes da chegada dos estrangeiros, o país colonial não existia; ao menos ele assumia a condição de coisa, no estado natural. A ação da metrópole se exerce sobre a própria natureza e sobre as criaturas ainda em seu estado natural. O trabalho, na medida em que fecunda o ser humano, é privilégio do colono; só o colono trabalha, ao mesmo tempo, a natureza e as criaturas. Autóctones e selva, Mitidja13 e teimosia indolente são a mesma coisa. Assim como é preciso abrir estradas, assim como é preciso lutar contra a lepra e a malária, é preciso também lutar contra os nativos; é preciso transformar a natureza a despeito dela, lançar sobre ela a violência; é preciso brutalizar o nativo, fazer-lhe o bem a despeito dele. Quando se fala do ouro do Transvaal, pensa-se na obstinação do colono. Mas existe hostilidade real do autóctone? O que existe, em vez disso, é inércia, abulia, estagnação, desejo de perpetuar o estado atual das coisas, daí decorre a dificuldade de obter uma ação; existe a preguiça. Estudar o trabalho nas colônias é, de certo modo, estudar a preguiça (tomar como referência sobre esse assunto o artigo “Terre” [Terra] em Présence Africaine, 1952).14
Essa noção de não esforço, de não colaboração do colonizado, é um dado constante nas relações entre metrópole e colônia. Se o que se pretende é gerar obras, se o que se quer é humanizar a natureza, é preciso forçar, é preciso trabalho forçado. O trabalho forçado é a réplica do colono à preguiça do nativo; força-se o autóctone a trabalhar, ele será requisitado em sua casa. O trabalho forçado é uma consequência lógica da sociedade colonial. Uma vez que o nativo pode ser forçado, depreende-se que se pode bater nele.
Essa preguiça se opõe à ganância do colono, à sua avidez por ganhar dinheiro. É uma preguiça vivida no contexto colonial como vontade de não facilitar o lucro; é uma conduta de larápio; o colono não trabalha em função da eternidade; ele trabalha pela própria vida. É por isso que, considerados do ponto de vista do Estado colonial, os investimentos são um contrassenso; pois investir significa se alinhar ao futuro dessa região. Nas colônias, a indústria privada não pode investir nada. Os colonos não se instalaram nas colônias na perspectiva de determinado desenvolvimento econômico, mas para extrair no mínimo de tempo o máximo de lucro.
Se considerarmos o problema sindical, veremos que ele se apresenta em termos muito específicos. Antes de mais nada, o sindicalismo da colônia se implantou usando as mesmas palavras de ordem que na metrópole; o mesmo se aplica aos partidos políticos. O problema não é exposto de forma heterogênea, mas de forma homogênea. As palavras de ordem sindicais eram as mesmas na metrópole e nas colônias. Os trabalhadores colonizados sindicalizados sempre foram operários especializados ou então funcionários; nem sequer se considerou a sindicalização dos trabalhadores agrícolas. Os trabalhadores sindicalizados sempre foram, no plano econômico, “assimilados”, e não era preciso exigir deles a tomada de consciência nacional, mas os 87% de não sindicalizados não tinham como enfrentar o problema nos mesmos termos. Entretanto, a tomada de consciência nacional dos trabalhadores e dos empregados acontecerá.
A noção de desempregado: nas colônias, ele não é um trabalhador sem trabalho; é um nativo cuja energia não foi ainda requisitada pela sociedade colonial. É uma reserva em caso de defecção dos outros trabalhadores: segundo o prof. Porot, o norte-africano se seniliza muito rápido (aos 35 ou quarenta anos de idade). O desemprego não é um problema humano; é uma reserva perpétua; antes de mais nada, para substituir os senis precoces, ou então em caso de reivindicação dos nativos empregados, reserva de chantagem para manter os salários num nível irrisório. A massa dos desempregados não incomoda os colonos.
Se, numa colônia, não existe desemprego, se há escolarização e as faculdades estão abertas, não se trata de uma colônia. O desemprego deve ser endêmico como a febre amarela ou a malária. As estatísticas mostram que, em muitas regiões, as doenças tropicais diminuíram consideravelmente. Trata-se de introduzir novas relações em uma sociedade, e introduzir novas relações significa negar o sistema colonial.
O colonizado é uma criatura ociosa? A preguiça do colonizado é uma proteção, uma medida de autodefesa no plano fisiológico, antes de mais nada. O trabalho foi concebido nas colônias como trabalho forçado e, mesmo que não haja açoite, a situação colonial é, em si mesma, um açoite; é normal que o colonizado não faça nada porque o trabalho, para ele, não leva a nada.
É preciso retomar o trabalho como humanização do ser humano. O ser humano, quando se lança ao trabalho, fecunda a natureza, mas também se fecunda. É preciso que existam ali relações fecundantes de generosidade; há reforma da natureza, transformação da natureza, mas é porque o ser humano se modela a si mesmo.
O colonizado que resiste à razão.
NOTAS
- [Uma primeira edição deste texto foi publicada pela Universidade de Oran, na série “Études et recherches sur la psychologie en Algérie”, do Centre de Recherche et d’Information Documentaire en Sciences Sociales et Humaines (CRIDSSH), realizada com a colabora§ão do Organisme National de la Recherche Scientifique (ONRS) e da Assemblée Populaire de la Wilaya (APW) de Oran, em 1984. Foi revista em setembro de 2013 por Lilia Ben Salem, professora de sociologia da Universidade de Túnis, que então se prontificou a redigir para esta edição uma introdução inédita a suas notas, pelo que lhe somos muito gratos (ela infelizmente veio a falecer em 28 de janeiro de 2015). O prof. Frej Stambouli, que também frequentou as aulas de Fanon e conhecia bem a profª Ben Salem, confirmou a fidelidade dessas notas. Assim como o fizeram diversas outras testemunhas, ele ressaltou que, além dos estudantes matriculados no curso, Túnis inteira frequentava o curso para escutar Fanon, incluindo alguns célebres militantes argelinos que estavam na cidade na época (correspondência de fevereiro de 2016).]
- [Fanon começou a acompanhar bem cedo os trabalhos do psiquiatra comunista Louis Le Guillant, a quem cita no artigo escrito com Slimane Asselah, “O fenômeno da agitação no meio psiquiátrico” (ver p. 129). Ver especialmente: “La Psychologie du travail” (La Raison, 4, pp. 75-103, 1952) e “La Névrose des téléphonistes” (La Presse Médicale, n. 13, pp. 274-77, 1956). Os textos de Le Guillant sobre a psicologia do trabalho foram republicados sob o título Le Drame humain du travail: Essais de psychopathologie du travail, ed. Yves Clot (Toulouse: Érès, 2010).]
- No original, a expressão entre aspas é nègre, termo racial com carga pejorativa na língua francesa. [N. T.]
- [Ao criticar o romance de Mayotte Capécia, Je suis Martiniquaise (Paris: Corrêa, 1943), em Pele negra, máscaras brancas, Fanon se refere também ao filme Mais próximo do céu, dos americanos Marc Connelly e William Keighley (1936): “A retração do ego como processo de defesa bem-sucedido é impossível ao Ele precisa de uma sanção branca. Em plena euforia mística, salmodiando um cântico encantador, Mayotte Capécia tem a impressão de ser um anjo e de alçar voo ‘toda rosa e branca’. Existe, contudo, este filme, Mais próximo do céu, em que os anjos e Deus são negros, porém isso chocou terrivelmente nossa autora: ‘Como imaginar Deus com os traços de um negro? Não é assim que imagino o paraíso. Mas, seja como for, não passa de um filme americano’. Não é possível, o Deus bom e misericordioso não pode ser negro, ele é um branco de bochechas bem rosadas. Do negro ao branco, essa é a linha de mutação. A pessoa é branca da mesma forma como é rica, da mesma forma como é bela, da mesma forma como é inteligente. Contudo, Andrew partiu para outros céus levando a mensagem branca a outras Mayottes: pequenos genes esplêndidos de olhos azuis, pedalando ao longo dos corredores cromossômicos”.
- [Em Lyon, Fanon encontrara Louis Achille, grande especialista francês em negro spirituals, sobre os quais escrevera um artigo no número de maio de 1951 de Esprit, dedicado a “La plainte du Noir”. Esse número continha também, de Fanon, “L’Expérience vécue du Noir”, futuro capítulo de Pele negra, máscaras brancas.]
- [Ver acima, “Condutas confessionais na África do Norte”, 243.]
- [Ferhat Abbas, Le Manifeste du peuple algérien, reeditado com prefácio de Jean Lacouture (Paris: Orients Éditions, 2014).]
- Hadj, Hadji, Hajj ou Haj são transliterações do termo árabe que, como mandamento e um dos pilares da fé muçulmana, designa a peregrinação a Meca a ser realizada ao menos uma vez durante a vida do fiel, que habitualmente incorpora o termo ao nome após a viagem. Belgacem é uma típica contração norte-africana para Abu al-Qasim , um dos nomes atribuídos ao profeta Maomé, significando “pai de Qasim”, seu primogênito, morto com um ano de Em sentido literal, Qasim (também transliterado como Qasem, Kacem ou Gacem) pode significar “aquele que reparte, que distribui”. Assim, o sentido possivelmente atribuído a Hadj Belgacem seria “o peregrino, pai da partilha”. [N. T.]
- [Aimé Césaire, Discours sur le colonialisme, 1955 (Œuvres, Paris: CNRS / Présence Africaine, 2013, 1443-76).]
- [A respeito de Porot e Carothers, ver “Considerações etnopsiquiátricas”, p. 234.]
- [Ibid.]
- [Ver Ibid.]
- Planície do norte da Argélia que se espraia desde os arredores de Argel e que, fértil e abundante em água, foi ocupada por colonos brancos durante a colonização francesa, assumindo lugar de destaque na mitologia colonial da domesticação da natureza argelina por meio das virtudes laboriosas do colonato [N. T.]
- [Trata-se, sem dúvida, da seção “Terre africaine”, do n. 13 de Présence Africaine (1952), dedicado ao “Travail en Afrique noire”. Essa seção contém um artigo de Rosa Luxemburgo: “L’Expropriation des terres et la pénétration capitaliste en Afrique”.]
FONTE
FANON, Frantz. ALIENAÇÃO E LIBERDADE. Escritos Psiquiátricos. Ed. Ubu, 2020. Tradução: Sebastião Nascimento. pp. 276-291.