DA PSICANÁLISE À ESQUIZOANÁLISE: OS POLOS DO INCONSCIENTE. PARA UMA GENEALOGIA CLÍNICA DO ESQUIZO, DO PARANOIDE E DOS PARANO-ANALISTAS
A proposta deste texto é realizar uma aproximação desde um ângulo psi para alguns conceitos (não exclusivamente psi) que Gilles Deleuze e Félix Guattari abordam ao formular sua proposta de esquizoanálise, e cujo phyllum, cuja genealogia é frequentemente desconsiderada e/ou confundida, senão desconhecida. Começo com a impressão de que profissionais e estudantes desse campo ao abordarem a obra desses autores podem não somente ter dificuldades com as referências de filosofia política ou geral, antropologia, linguística, literatura, etc., mas também sobre aquelas que derivam especificamente do domínio “psi”.
As noções dos polos do inconsciente, também nomeados como polos de delírio, do desejo, etc., são casos exemplares que tomarei aqui e que permitirão dar o pontapé: estes são denominados paranoico e esquizofrênico, porém, não se tratam de referências diretas a entidades clínicas em si (diagnósticos psicopatológicos individuais), mas para tomar os tipos correspondentes de delírio como modos de funcionamento do inconsciente, do desejo, do sentido e da percepção.[1] Na sequência, realizarei um pequeno percurso genealógico através de algumas noções psicanalíticas que poderiam elucidar a construção desses conceitos esquizoanalíticos, considerando o lugar que diferentes teorias dão as psicoses associadas a determinados termos e a loucura, no sentido amplo.[2]
Penso que é preocupante o fato de que a obra da dupla francesa tenha sido tão mal compreendida nos espaços psi, assim como o fato da grande maioria dos que estudam esses autores em profundidade (mesmo profissionais psi ou outros terapeutas) não estudarem com seriedade a psicanálise, a qual estes também dialogavam. Para tentar contribuir com tal atitude de pesquisa, que poderá permitir debates mais sérios do que os atuais (demasiados anti uns dos outros para poder discutir com argumentos) tentarei ser o mais compreensível possível. Por outro lado, ao final do texto, será proposto as noções de paradigma terapêutico hegemônico e parano-analista, que tentará ser operações para nos reposicionar em relação aos problemas clínicos, epistêmicos e sociais.
a. Breve panorama geral de nossos autores de referência:
Quando Deleuze e Guattari se conheceram, em 1969, este último trabalhava no hospital psiquiátrico de La Borde (desde o início dos anos 1950) e desde antes militava em partidos de esquerda. Como analista individual, de grupo, militante, e apaixonado pela filosofia, ele se preocupou, entre outras questões, com a reprodução prática de abordagens segregativas da loucura e a extensão dos usos da psicanálise que não trabalham em uma perspectiva contraria a opressão social de uma classe sobre outra. Por sua vez, encontrou em Gilles Deleuze alguém interessado em localizar a loucura com uma potência do pensamento e não como um erro, um fracasso, ou um desvio para corrigir ou desacreditar. Entre ambos foi construída uma complexa máquina, não apenas teórica, mas uma análise concreta dentro da qual as figuras do indócil, do desobediente, do louco, do desviado, do degenerado, do revolucionário, do anormal (e do anomal[3]), mas também da mulher e da criança (cada qual à sua maneira), tomaram valiosos lugares para re-pensar a subjetividade, o desejo e o social. Quando Deleuze e Guattari escrevem seu primeiro livro juntos, eles formularam a ideia de que “a” psicanálise tende a pensar o psiquismo não apenas pelo familiarismo (e de um lugar acrítico para com a reprodução social), mas também com o que eles conceituam como um polo paranoico-segregativo (que mencionaremos mais adiante); tal familiarismo (conservador de todas as relações sociais hegemônicas burguesas) têm a conceitualização acerca da neurose, da psicose, da infância, etc. Inspirados em Lévi-Strauss, afirmam que o Édipo da criança é uma ideia do macho, adulto, pai e paranoico (e aqui não se referem à pessoa com tal diagnóstico psicopatológico, mas a quem agarra o saber e o afirma como Verdade). Édipo, assim, expressa o medo do déspota-patriarca de perder seu lugar de segurança e poder; é ele quem (supostamente) entende e diz o que acontece com a criança (que não possui voz ou voto), e o sanciona com desconfiança.
b. A desprestigiada escola inglesa de psicanálise e algumas derivas. Loucura e realidade:
Melanie Klein forneceu uma leitura inovadora do psiquismo infantil, assim como contribuiu com uma consideração teórica inédita na psicanálise a respeito do que seria o esquizofrênico e o paranoide, pensando os desde ansiedades/angustias precoces. Nos anos 1940 formulou a posição paranoide como o primeiro modo de organização do que seria um eu precário e primitivo, e algumas relações de objeto nos primeiros três meses de vida.[4][5] Não é um fato menor que Klein tenha começado postulando que aquele eu primitivo e sua dinâmica pulsional e objetal, partiam de uma organização mínima egóica e paranoide, remetendo este adjetivo ao medo persecutório de ser atacado pelo ambiente (depois de ter projetado nele uma pulsão de morte inata). Conceituar o outro a partir do próprio é um mecanismo conhecido: tal organização tão incipiente, aquele “eu” nos primórdios da vida humana individual é apenas outro suposto de adultos paranoides. E o próprio Lacan apontará para um núcleo paranoide no funcionamento do eu.
O esquizo que Melanie Klein logo agregará aquela posição, refere-se aos processos de excisão e dissociação, que também serão articulados ao destrutivo da pulsão de morte, a qual Freud já se referia como um desligar, e aqui seria um desmembrar daquela organização precária. Neste modelo teórico, a psicose do adulto será lida como aquela preparada por particulares modos precoces de transitar as ansiedades dessa posição. No entanto, e isto é importante, tal posição (esquizo-)paranoide não seria exclusiva de tais adultos; o resto dos seres humanos também operariam por regressões transitórias a essa posição, como mecanismos de defesa frente a angústia/ansiedade (e o esquizo sobre ela seria visto em ocasionais rupturas do fio lógico do discurso e na desconexão entre palavras, ou entre pensamento e ação).[6] Assim, no modelo kleiniano podemos ser tomados em afetos paranoide, esquizoide ou depressivo, sem que haja algo como uma estrutura de personalidade que se organize da maneira que corresponde a entidades isoladas pela psicopatologia sob cada um desses nomes. Ao mesmo tempo, segundo Klein, o analista deve trabalhar no sentido de integração e síntese do dissociado (o qual seria alcançado na chamada posição depressiva), interpretando as causas da excisão para progredir[7] na relação do eu com os objetos[8]. Em Klein o inconsciente é um saber já sabido (pelo sujeito ou pelo analista de plantão). Algo mais conhecido acerca dessa teoria é a conceituação dos objetos parciais, aos quais Deleuze e Guattari se referem diversas vezes, mas não os conceituarão como necessários para ser superados em direção a um objeto total (não são hegelianos como a Sra. Klein, que busca sintetizar). Nesta escola inglesa de psicanálise, o pulsional projetado dominará a cena conceitual, e na técnica clínica isso repercute de modo que os analistas fazem esforços para não mudar elementos em seus consultórios nem modificar suas roupas ou aparência pessoal, uma vez que tudo o que emerge em sessão deve ser a projeção pura do psiquismo individual do paciente, portanto, o analista não será capaz de pensar em si mesmo a não ser influenciando negativamente). O ideal científico positivista de neutralidade, observar sem participar, é levado ao extremo. Nunca antes a psicanálise foi tão individualista, conservadora, reacionária, liberal, opressora, biologicista e naturalizada. Isso é sabido, mas ao mesmo tempo, e curiosamente, nunca até então havia sido menos preconceituosa com as psicoses: faz a psicanálise falar de posições e núcleos psicóticos como parte de cada um (e para além do psicopatológico), não apenas no passado, mas também como um possível virtual aberto.
Outra coisa acerca de Klein: a interpretação analítica leva a atualizar uma posição depressiva: em grande parte de seus relatos clínicos, ela conta como seus pacientes se tornaram apáticos, caem na inércia, na indiferença, e ela os lê como um sucesso![9], [10]Com razão, as operações de Klein para levar o paciente a posição depressiva serão as que um analista que codifica e bloqueia o desejo poderia fazer (como diremos com Deleuze e Guattari) e que está localizado em um polo paranoide; é isso que chamamos de parano-analista (quem sabe ler a Verdade e revela-la): explicar, dar todo o sentido, unificar, sintetizar, reconhecer, restituir, etc. Retomaremos isto em outro momento.
Antes de prosseguir, cabe recordamos de alguns elementos da teoria de Sigmund Freud: nunca lhe pareceram corretas as denominações de demência precoce (Kraeplin) nem a de esquizofrenia (Bleuler) para a entidade psicopatológica em questão. Em sua história do Caso Schreber[11], ele nos conta de sua discordância com a denominação da esquizofrenia (literalmente mente dividida), uma vez que esquizo não seria o exclusivo (ou essencial) de tal quadro psicopatológico, mas um postulado teórico geral a respeito do funcionamento psíquico em relação aos seus mecanismos de defesa (visibilizado, em princípio, nas neuroses). Por conseguinte, propõe outra denominação para a entidade clínica, uma mais consonante ao que observou nesse caso: parafrenia[12], a qual torna perceptível a articulação entre paranoia e esquizofrenia.
Anteriormente, em 1908, em uma carta a Jung, Freud diz que “há, por assim dizer, uma paranoia inconsciente, que se torna consciente no curso da psicanálise”, e na seguinte frase acrescenta “através da análise levamos os histéricos pelo caminho da demência precoce”.[13] Esta última frase não contradiz a anterior, indica apenas uma direção de cura, da qual Jean Allouch agrega pertinentemente: 1) Freud-Jung utilizam nestas cartas de 1908 as denominações paranoia e demência precoce como equivalentes, de modo que, como é evidente a partir do contexto dessas cartas, análoga sua psicanálise a uma paranoização (notemos que será oposta à esquizofrenização proposta por Deleuze e Guattari); 2) Levar pelo caminho não implica converter o histérico em paranoico (nem em esquizofrênico, na proposta da dupla francesa), apenas transitar por um caminho semelhante. E precisamente o que deve ser investigado é “semelhante em que ponto?” …
Outra ideia freudiana que também concederá um lugar em “O” psiquismo (todo psiquismo) a um sintoma que até então era atribuído exclusivamente aos fenômenos psicóticos, é que a primeira pegada mnêmica seria o signo perceptivo (representação-coisa, representação não verbal) de uma alucinação de desejo (a famosa experiência alucinatória de satisfação). Portanto, a pedra fundamental de cada aparelho psíquico tratar-se-ia de uma inadequação à realidade, através da percepção de um baú que preenche plenamente (naquele momento), um peito alucinado.
Por último, em distinções freudianas, temos em grande estima uma ideia na distinção neurose-psicose de 1924, a qual posteriormente parece ter ecos em Donald Winnicott: “Chamamos de normal ou saudável um comportamento que une certos traços de ambas as reações: que, como a neurose, não desmente a realidade, mas, como a psicose, procura modificá-la”.[14] Depois disso, ele nos diz que tal comportamento normal (veja que aqui ele não fala de uma pessoa normal), “adequado para fins”, tenta efetivamente modificar algo no mundo exterior, em vez de produzir uma modificação interna, como aconteceria nas entidades psicóticas. Com Deleuze e Guattari (e com Foucault) se torna evidente quem são os que trabalham assim, e que nunca foram denominados normais (estes estão mais ligados à imagem que Freud nos insere de neurótico, em que a vassalagem-obediência prevalece sobre as demandas da realidade externa… ou seja: quem perde ali é o desejo).
Retomemos aqui as escolas inglesas: em ruptura teórica com Klein, Winnicott postulará que os estados de não-integração seriam primários em relação a todo tipo de organização-integração. Ele não parte, como ela, de um eu primitivo já organizado, temeroso, e de algum modo pensante sobre seu entorno, mas precisamente do desorganizado e do fazer experiência (sem ainda poder pensa-la). Em relação a isso, já em 1952 postula o que chamou de espaço transicional, o qual chegou a denominar como zona intermediária da loucura[15], a qual não possui nenhuma relação com o psicopatológico, mas pelo contrário: implica sentir a vida e fazer uma experiência em um campo não egóico nem de relação de objeto, um campo inapreensível do “entre”, que volta a se abrir no jogar (como na arte, na espiritualidade e na experiência cultural). Trata-se de jogar como um verbo, não do jogo como substantivo (muito menos interpretá-lo, como Klein). Winnicott argumenta que os pacientes esquizoides são os que estão cheios no problema de sentir a vida, e que ensinam os analistas a considerar uma dimensão que não possui relação com o pulsional e que não foi desenvolvida em teoria. Ao falar de esquizoides ele se refere àqueles que mostram um acentuado desinteresse no mundo, uma profunda retração libidinal (o que Bleuler denomina de autismo do esquizo), porém não possuem os sintomas característicos da entidade clínica esquizofrenia (nem os do espectro autista). Ele os considera mais próximos de uma possível saúde (criativa e ligada à experiência), do que daqueles pacientes exitosos e racionalmente adaptados à realidade que buscava Freud.[16] A adaptação bem sucedida à realidade para este inglês seria efetivamente patologizante. O só posso jogar se você souber e entender de antemão que as regras produziriam robôs que existem e falam uma língua morta (como ele disse sobre os kleinianos), não seres sensíveis que vivem e experimentam. A mera sanidade é pobreza, se referirá repetidamente, por isso é claro que sua teoria da loucura não está orientada por uma vontade de classificação nosográfica e ainda é mais positiva que outras concepções psicanalíticas. Sustentará que para ser encorajado a jogar e a inventar novos jogos será preciso se arriscar em uma experiência que não estará previamente estruturada; sua suposição é que o não estruturado pode liberar terapeuticamente, ao contrário de Klein, para quem isso só levaria a mais ansiedade e mecanismos de defesa (por exemplo, por ameaça de fragmentação). Entretanto, Winnicott pensará na possibilidade de construir saúde como algo mais valioso do que atacar patologias (outra clínica). Além disso, neste modelo teórico-clínico analisar alguém será analisar um ambiente: o bebê (e o adulto) como um indivíduo-ilha não existe. Em vez de buscar o átomo que funciona mal, estudará o sistema de relações que engendra sofrimento (outra epistemologia). Um conceito deste autor, mais explicitamente mencionado por Deleuze e Guattari, será o de objeto transicional, o qual a psicanálise dominante restringe a infância individual e o coloca como avatar na relação com a mãe (algo a ser superado na linearidade do desenvolvimento), enquanto o inglês o estendeu a toda a vida, em especialmente à experiência cultural.[17], [18] Outro procedimento que poderia ser chamado de pré-esquizoanalítico deste pediatra e psicanalista será o de capturar o dissociado sem negá-lo ou integrá-lo, e, às vezes, nem mesmo compreendê-lo; a distância com Klein aqui, como com o pulsional e o individual, é máxima.[19] O que não constituirá um aspecto esquizo positivo para ele, mas uma organização defensiva, será o que ele conceitualizou de medo do colapso (breakdown)[20], e que pode levar a uma invulnerabilidade para com o outro. Assim, temos neste autor uma distinção fundamental entre a introversão e a retração libidinal do estado esquizoide (que não é claramente diferente de saúde[21]) e esta invulnerabilidade ao outro (um bloqueio de afeto-desejo) que geralmente é encontrado em muitos quadros de esquizofrenia clínica. A profunda conexão consigo mesmo (em detrimento da vassalagem-obediência neurótica que apresenta Freud) teria um potencial desejante salutogênico, enquanto o colapso implicaria ir ainda mais longe e ter se desconectado muito, dizem Deleuze e Guattari: ricochetear sobre a parede, caindo em um buraco negro anti-produtivo e anti-conectivo.
- Processo, afectos, esquizes. No caminho do esquizo e passando por Lacan.
Ronald Laing e David Cooper, antipsiquiatras ingleses, tomam a herança winnicottiana mais provocativa junto com o marxismo e propõe que, de fato, no delírio, possa haver um processo (como dizia Karl Jaspers) cuja interrupção seria iatrogênica: as instituições e abordagens psi hegemônicas não permitem nada mais do que um breakdown (naufrágio/colapso), onde deveria ser favorecido um breaktrough (abertura/atravessamento): dar os meios para o paciente realmente fazer algo na realidade, seja através de uma teatralização do delírio, uma modificação do ambiente ou outros modos. Não será mais interessante referir que o paciente denominado psicótico não é realista (como pensava certo Freud com a psiquiatria clássica e as significações instituídas em “sentidos comuns”), mas que a alucinação e o delírio exigem alguma realização em um determinado ambiente (modificar a realidade, como colocado por aquele Freud de 1924). Segundo Winnicott, precisamente seria explicitada essa realidade à qual não deveria ser muito bem adaptada: é a do capitalismo, suas instituições e práticas.
Deleuze e Guattari sustentam a ideia de tal processo de delírio/desejo (e seus bloqueios, que impedem o breaktrough) e falam sobre o processo esquizofrênico[22](uma esquizofrenia não psicopatológica que atravessa todos nós, uma multiplicidade, uma não-integração, que nos é sempre atual; um movimento aberrante não-pessoal que passa através das pessoas e as impulsionam). O aprisionamento deste processo daria lugar a entidades clínicas psicopatológicas (embora este não seja o único critério que eles propõem a esse respeito). Pensando no aberto, fragmentário e sensível desse esquizo, eles também dirão que a pessoa chamada de “esquizofrênica” é quem mais se aproximou desse centro de vida intenso e processual (não-egóico-organizado)[23], porém foi reterritorializada em uma patologia, tornou-se um produto-interrupção. Naquele solo esquizo-desejante haveria um sentir sobre o qual é construído todo eu penso.[24] Com isso, mencionam que o conteúdo racional ou racionalizante dos delírios é construído sobre algo não linguístico e especialmente desestruturador. Além disso, eles nos dizem que a racionalidade de uma sociedade (a realidade dominante que naturalizamos) é a racionalidade que pode ser construída para aquela coisa profundamente irracional que passa por ela de ponta a ponta. O reverso da estrutura[25] é o que explicamos postulando no lugar de O inconsciente está estruturado como uma linguagem: O inconsciente des-estruturante como um desejar.
É preciso destacar duas considerações lacanianas que farão uma marca em Deleuze e Guattari, e os levou a dizer que “Lacan esquizofrenizou a neurose”[26]: a) objeto a é tanto o que causa desejo, não no sentido de causa-efeito, mas no qual produz, empurra, põe em movimento (o desejo e a análise) o que é buscado, ou seja, o maquinário em movimento, não um objeto pontual de satisfação: o desejo deseja desejar. Isso implica, segundo esses autores uma identidade do produzir e do produzido (o desejo produz desejo). Ao mesmo tempo, essa noção também quebra a concepção da estrutura como fechada, sendo objeto a (assim como o transicional) um fragmento chave que se demarca do dualismo interior-exterior e opera no seu meio; assim, seria uma partícula que se autonomiza do corpo individual e da estrutura, e os coloca em movimento. Nesta leitura singular deste objeto (sem se referir a uma falta ou perda como Lacan) é que esses autores o equiparam as suas máquinas desejantes; b) o paciente esquizofrênico seria aquele que pode perceber o que é falado por outros, que não é aquele que pensa tal ou qual coisa em sua cabeça (por exemplo, nos delírios de intrusão ou controle do pensamento) e esse fenômeno realmente acontece em todas as entidades clínicas (não só nessas psicoses), uma vez que (afirma-se que) o inconsciente e o discurso são sempre discurso do Outro. Na neurose essa questão é encoberta, ofuscada: acredita-se que seja a si próprio quem fala, mas somos falados por Outro; enquanto nas psicoses o inconsciente estaria a céu aberto (primeira amostra: os polos aparecem nus). Essas noções inspiraram a dupla francesa a falar que a enunciação não é individual e/ou de um sujeito, mas coletivo, como parte de um agenciamento coletivo de enunciação (segunda amostra, que leva a estudar o conteúdo sócio-histórico-político dos chamados delírios psicóticos).
Apesar de duas referências lacanianas do que esquizofreniza a neurose, eles dizem que os psicanalistas neurotizaram a psicose medindo-a em relação a um Édipo ausente, e novamente deixando o psicótico no lugar de déficit em relação ao neurótico. E aqui intervém o que já sabíamos de entrada: no modelo teórico lacaniano tudo falta, a todos nós nos falta algo: Pai, lei, falo, etc. Entretanto para entender uma falta há necessidade de se ter uma certeza paranoide onde deveria haver algo.[27] Isso não escapou de Lacan quando disse que no Real não falta nada, porém ele preferiu escolher o caminho do simbólico durante a maior parte de sua vida. Deleuze e Guattari terão uma impressão semelhante à de Winnicott: em vez disso, deveria seguir para algo do esquizo, da experiência e da presença-imanência, uma direção contrária a todo esforço estruturalista, paranoizante ou melancolizante, mas isso não deve implicar em rejeitar tudo isso, mas estudá-lo.
Um terceiro elemento que tomam de Lacan: ele falou de uma esquize, uma certa divisão ou dissociação fundamental – entendida como bipartição. Já em seu segundo Seminário utilizará essa noção para explicar a teoria de Fairbairn (onde falará de uma esquize do eu e uma do objeto), contudo, nove anos depois falará de uma esquize primitiva do sujeito e do ser, a qual está em relação aos objetos a. Uma das referências mais conhecidas, por exemplo, é a esquize entre o olho e o olhar: Onde vejo o olho, não vejo que sou olhado; onde não sou olhado, não vejo o olho.[28] Assim como já havia argumentado com uma lógica semelhante (e reformulando o cogito cartesiano): sou onde não penso, penso onde não sou.[29] Ambas formulações procedem de tal divisão no sentido de uma disjunção, mas que pode comunicar-se ao dissociado entre si se introduzirmos uma sequência temporal: quando estou em a não estou em b, mas depois disso posso me mover ao lugar lógico b, e já não estarei em a. Não se trata de disjunções exclusivas-excludentes, como as distinções estruturais (quando estou em a jamais posso estar em b: quando estou em neurose eu nunca mais posso estar em psicose. Tampouco se trata de ocupar dois lugares ao mesmo tempo e negar a sequência temporal, mas de estudar os diferentes tipos de divisões: Deleuze e Guattari estão interessados em disjunções inclusivas (“e”, “e também”) que não implicam simultaneidade; nesse sentido, pensaram nas esquizes do desejo, a partir do fluído e comunicante. Isto é o que eles apontam como um inconsciente esquizo-desejante que se encontraria nitidamente em certos momentos do caso Schreber: o movimento de ser filho para ser pai, de estar vivo para ser morto, ser um homem para ser uma mulher, e a detenção posterior em algum dos termos seria um bloqueio ou colapso [breakdown] do processo, não uma reconstrução necessária ou estabilização metafórica delirante. O que eles resgatam aí, mais uma vez, é uma potência de abertura/atravessamento que não engloba as diferenças ao juntá-las, nem as desconecta ao separa-las.[30] Em nenhum momento se referem ao fato de que todo o caso se reduz a isso; simplesmente tomam essas divisões fluidas e comunicantes (homem/mulher, pai/filho, vivo/morto), como uma mostra do inconsciente a céu aberto, do qual um neurótico se defenderia com recursos paranoides, como as identidades e disjunções excludentes. Vale ressaltar que o termo esquize em Lacan significava necessariamente bipartição, fratura em dois, enquanto que em Deleuze e Guattari implicará principalmente (partição em) multiplicidades. Curiosamente, o esquema Freudiano utilizado em seu texto de 1924 referido acima (A Perda da Realidade na Neurose e na Psicose) chega ao ponto de dizer que o patológico é aquele (o processo, diríamos) que antecede o delírio (o qual seria apenas uma tentativa posterior de cura pela via da racionalização, como então Freud entende a cura)[31], enquanto aqui o sofrimento é colocado em relação a esse bloqueio.
Um capítulo à parte dos conceitos e ideias lacanianas é o do freudo-lacanismo dominante, que aliado à Psicopatologia herdada constituiu uma verdadeira hegemonia do campo psi, apelando para os usos mais reacionárias e burgueses das obras de Freud, Lacan, entre outros. Assim, afirma que ainda existem entidades clínicas diferenciadas, mas elas não serão mais fenomenológicas ou comportamentais como nos tempos da psiquiatria clássica, senão (pior ainda) a noção de estrutura será utilizada como forma de reforçar os imaginários sociais instituídos mais reacionários acerca da loucura (periculosidade, segregação, custódia, dependência). Aqui as diferenças são menos comunicativas entre si: se a estrutura de tal ou qual paciente for neurótica, psicótica ou perversa, seria de uma origem diferenciada e para sempre. Essas disjunções estruturais são exclusivas-excludentes: “se é neurótico, psicótico ou perverso”, etc. Se o que chamamos de surto psicótico acontecer ao suposto neurótico, então se diz que foi diagnosticado erroneamente; a autocrítica é feita desta ou daquela operação diagnóstica ou a quem realizou, porém o a priori estrutural sempre sai ileso. Em nossa leitura, a noção de estrutura em si, permanece visível como um reduto platônico no pensamento da escola francesa: uma verdade eterna e imutável, contida na alma – não é um fenômeno observável, pois, dizem que os sentidos enganam; assim, obtemos uma construção racional naturalizada. Isto somente pode aumentar as abordagens segregativas para uma gama ativamente expandida de pacientes (uma vez que não há necessidade de ter sintomas psicóticos para ser assim para sempre) e alimentar aqueles significados sociais reacionários e neuróticos-paranoides que chamamos de medo da loucura, do outro, ao qual não é moldado nas boas maneiras da Razão normalizadora.
- Retomando os polos:
Cabe destacar que as características retiradas, por Melanie Klein, das entidades clínicas homônimas para definir a posição esquizo-paranoide, não são as mesmas que Deleuze e Guattari tomam para construir os polos de desejo, delírio e semiótica perceptiva. Trata-se de situar contatos específicos entre os saberes, sem que os sistemas sejam os mesmos, e, portanto, seus elementos, embora sejam chamados de iguais, assumem um caráter diferente em cada conjunto teórico. Como vemos, Deleuze e Guattari herdam algumas profundas questões do kleinismo que são típicas das correntes inglesas, e independentes das críticas de Lacan sobre as mesmas, enquanto retomam esta ideia típica da clínica anglo-saxã de cuidar dos elementos psicóticos que não só os neuróticos possuem, mas todos os seres humanos. De qualquer forma, a dupla considerará o que de cada teoria abre e o que fecha as teorias e práticas, e como, em cada caso, pensam o desejo, a subjetividade e o social.
Lembremos que tender ao polo esquizo, como propõem em seu primeiro livro juntos, não implica fazer/tornar-se esquizofrênico, nem romantizar a loucura, ignorá-la, nem subestimar qualquer sofrimento, muito menos algo que só acontece em/com tais pacientes “psicóticos”. Simplesmente o esquizo não é a esquizofrenia-entidade, mas outra produção conceitual (assim como qualquer psi sabe que o gozo não é prazer, termos intercambiáveis no senso comum instituído, mas de forma alguma nas teorias). Quando a dupla francesa levanta seu polo esquizo, está pensando em tender ao processo de abertura e divisões comunicantes, uma construção conceitual não caprichosa que terá enormes consequências clínicas, ao mesmo tempo em que permite elucidar as práticas de saber-poder-subjetivação – e não as justificar, como fazem os aparentemente saudáveis racionalistas paranoides. O processo de abertura é, por si só, desterritorializante e envolve pensar a situação, ao invés de aplicar respostas “familiares”, já conhecidas e estabelecidas. Desse modo, o desejo não seria um conteúdo mental a ser reconhecido, mas uma ação incodificável para desejar, fazer, conectar, etc. Não esgotável de direito, apenas extinguível em tal ou qual fato. Assim, fazer esquizoanálise seria tender ao que abre o desejo, como para estudar o que o fecha (porque também há fechamentos temporários que são necessários para viver a vida); é resistir à leitura para um polo paranoico (já-saber, organizar apenas racionalmente), o estabelecido, a impotência de ação, o individualismo, o juízo de valor e qualquer posição moral, estupidez, morte, auto justificada, a estreiteza da vida, a superioridade de alguns, a segregação de outros, etc.
- Do parano- analista à uma refundação das democracias:
Até agora propusemos um percurso, parcial e fragmentário por alguns dos saberes psi que atravessaram direta ou indiretamente algumas noções de Deleuze e Guattari sobre esquizo, esquize, esquizofrenia, paranoia, tipo de objetos, etc. O trabalho pode ser ampliado e aprofundado em muitas outras referências psi, e fora desse campo, em direção ao campo filosófico, sociológico, antropológico, entre outros. Precisamente, falamos de uma genealogia clínica, dando a entender que é fragmentária e que outras poderiam ser traçadas, menos centradas em disciplinas psi. Para finalizar, queremos recordar que, para além da letra explícita da teoria, a reconfiguração esquizoanalítica desses conceitos acarreta diversas consequências sobre as práticas analíticas e sociais. O esquizo e o paranoico, não seriam mais características essenciais e individuais de determinado indivíduo (o que reforçaria o estigma social associado à loucura), e os profissionais psi deveriam ser capazes de perceber que temos sido formados por conhecimentos que justificam e perpetuam a consequente segregação aos mesmos.[32] Vamos nos aprofundar um pouco nisso.
Segundo Eduardo Menéndez, no campo das abordagens em Saúde prevalece um Modelo Médico Hegemônico[33]que se estendeu além da medicina para abarcar todas as práticas assistenciais e terapêuticas; a Psicologia, tal como a conhecemos hoje, foi reconstituída à imagem e semelhança deste modelo. Para ser mais preciso, devemos dizer que se configura assim um Paradigma Terapêutico Hegemônico, cuja constituição abriga múltiplos modelos teóricos e práticos (não apenas médicos ou psicológicos), nem todos coincidem entre si em suas lógicas, mas se comunicam em seus efeitos práticos. Este paradigma hegemônico exerce seu poder sobre as tentativas de estabelecer campos divergentes com ele, por exemplo, a medicina social, a Saúde Coletiva, a Epidemiologia Crítica, ou as psicologias jurídica, social, educacional e institucional. No caso da psicanálise, é notório como a Psicopatologia, recarregada de estruturalismo, tem operado como um operador central desse paradigma, a fim de capturar qualquer noção provocadora e qualquer tentativa de modificar a chamada organização racional do trabalho (por exemplo: médico/analista saudável e sapiente – paciente doente, objetalizado e desconhecedor do que lhe sucede) e suas pretensões científicas – o que não significa o mesmo que científico. Notemos que essa dinâmica somente pode exercer a condição de rejeitar, marginalizar ou extinguir, aquelas ideias, noções e conceitos que (como vimos neste texto), na psicanálise, restauraram uma condição humana central e geral ao esquizo, ao paranoide e às loucuras.
Com isso, não devemos supor que a Psicanálise conhecida e criticada por Deleuze e Guattari em 1972 é a mesma que outras psicanálises existentes nos dias de hoje – nem que não tenha relação. Eles atacam uma instituição burguesa-capitalista entre outras, uma instituição muito específica que tem sido diretora de batuta do dito Paradigma Terapêutica Hegemônico. Ora, a figura pessoal que caracteriza as práticas profissionais associadas a esse paradigma nem sempre diz respeito ao Psicanalista, mas às vezes também aos Cognitivo-Comportamentais, e por que não ao Esquizoanalista? No entanto, se move, age, de um modo particular, e, por isso, podemos nomeá-lo aqui como parano-analista, o qual tendemos a ler desde aquele polo paranoide. Dizer que alguém funciona desse modo não é atribuir-lhe uma identidade profissional (quem atribui identidades já opera naquele polo), mas sim vê-la de um ponto de vista entre outros possíveis. Não é atribuição de uma (pretendida) realidade para o outro, é uma localização conceitual que reside no olhar que percebe e significa um modo de ação; não tem nada a ver com saber algo sobre aquele, mas com situar seus atos e movimentos em coordenadas que não pretendem ser objetivas; esta operação permitiria abrir dimensões pragmática-políticas (no sentido amplo). Os parano-analistas não podem se elucidar, pois estão apaixonados pelo Poder, e não por qualquer um, senão pelo Saber algo sobre o outro: com isso não me refiro a um sentimento, mas a uma prática. Eles precisam ter Códigos Despóticos que serão sua palavra sagrada, sua Verdade revelada e conhecida. Eles pensam que sabem qual é a verdadeira nosografia psicopatológica. Amam as teorias hegemônicas, as posições distintas, a territorialidade de sua poltrona, seu pavilhão, suas salas de aula universitárias, etc. Uma característica que vale ser salientada é a necessidade de o parano-analista desconfiar e acusar os outros – responsabilizar subjetivamente, dizem. Ele nem sequer acredita ser parte do problema. É que o polo paranoide gira sobre um eixo com duas faces bem marcadas: desconfiança-certeza. Ao desconfiar da alteridade torna-se um corolário da certeza em relação à própria posição (o método indiciário de Giovanni Morelli, Sherlock Holmes, e Freud, é ilustrativo a esse respeito: é feito para encontrar o criminoso e mentiroso). Ele vê perigo e manipuladores em todos os lugares, especialmente em seus pacientes. Esse personagem acha que pode saber quem ele é. Ele “sabe” a Verdade sobre o psiquismo, os grupos, as instituições, etc. Tem a capacidade de ler os códigos de forma “adequada”, ele nos fala, por exemplo, da “verdadeira psicanálise” ou do “verdadeiro Deleuze”, e nos diz que o resto do mundo está nitidamente errado (“a síndrome do déficit de atenção é inventada, mas há outros diagnósticos, os que eu uso, que não são”). Ama a Razão, as essências, as transcendências, tanto quanto tudo estabelecido desde que seja conservador e implique algum sistema de privilégios (do qual ele não irá se afastar).[34] Assim que o parano-analista é um profissional psi, vemos na práxis repetir certas ações e decisões baseadas no paternalismo, suspeitas, identificação e a objetivação-objetalização dos outros. Isso está de acordo com o chamado Modelo Asilar de assistência-segregação-custódia da loucura, o Modelo Tutelar jurídico e a Psicopatologia. Todos esses são fragmentos daquele Paradigma que sustenta um determinado discurso de ordem e suas práticas, fabricam o que os estudiosos queer chamam de policiais do psiquismo.
Note-se que, neste esboço de um percurso genealógico, não é aleatória a proposta da figura do parano-analista: a segunda referência que fizemos anteriormente a Lacan nos levou à sua reformulação do cogito cartesiano: penso onde não sou, sou onde não penso. Pensar não garante Ser. Em uma inspiração deleuzo-guattariana que retoma algumas dessas reflexões lacanianas, postularemos que dizer, dizer-se, ou dizer-lhe respeito de si, o que um “é” psicanalista ou esquizoanalista não tem implicação necessária para o que se “é” ou “se torna”, nem com a posição efetivamente ocupada em um determinado campo – acreditar que se sabe o que “é”, mesmo que fosse algo, seria sustentar um cartesianismo consciencialista, pré-freudiano. Visto que um não É uma essência, e um não pode saber o que está sendo, estando, ou se tornando, então, se levamos o inconsciente a sério, dizer/dizer-se não deveria implicar mais que uma tomada de posição sempre arriscada e provocadora, nunca uma afirmação identitária autodenominada – segundo Lacan, esta é uma das versões da “loucura”, acreditar que alguém sabe quem se é[35], como se não dependesse de todo um jogo de relações exteriores que transborda a consciência de si Apenas a partir de um polo paranoide, consciencial, de certeza, de saber absoluto, se pode esperar que uma autodenominação do que alguém seria (e não estou afirmando que alguém seja algo); para isso, haveria que, curiosamente, se esquecer, de tudo o que foi dito acerca do discurso e desejo do Outro, bem como o sócio-histórico. A esquizoanálise, nisso também, retoma a psicanálise para aprofundá-la. “Contra aqueles que pensam “eu sou isto, eu sou aquilo” […] é preciso pensar em termos incertos e improváveis: eu não sei o que sou, seriam necessárias tantas investigações e tentativas, não-narcísicas, não-edipianas […]. O problema não é ser isto ou aquilo como ser humano, mas antes o de um devir inumano”.[36]
Também se conecta a isso o raciocínio que esses autores evidenciam ao pensar questões como o que seria o revolucionário e a filosofia, cruzando do primeiro ao último livro juntos. Assim, o filósofo, não é definido por seus diplomas universitários que o habilita, mas pelo que faz quem cria conceitos. Dessa forma, Nietzsche e Guattari foram filósofos sem a necessidade de diplomas universitários: eles simplesmente criaram conceitos filosóficos, o que nem todo acadêmico sobre o assunto faz. Embora seja um militante de esquerda, nem ele, nem ninguém poderia dizer “na Verdade” que é um revolucionário (individual-pessoalmente), não apenas por causa do essencialismo implícito no enunciado, mas também porque tal adjetivo se aplicaria melhor a um processo e a posições concretas nas relações de poder que deverão ser analisadas a cada vez – há que ver como esse “revolucionário” trata sua esposa e os que considera loucos.[37] Então, eles nos dizem que o revolucionário não é um Ser, mas um Devir, e não se devêm na imaginação. Precisamente aquele que devêm, um devir-minoritário, faz o que Deleuze em sua penúltima entrevista relaciona a sua ideia de que “não há governo de esquerda”[38], porque a esquerda não implica em uma questão molar e macropolítica de um Partido ou de um governo. Portanto, mais importante do que Ser, é a ação. Sendo assim, pouco importa, por exemplo, que os psicanalistas critiquem a “Psicologia” ou os chamados esquizoanalistas os psicanalistas, como, infelizmente vemos com frequência, dado que são formas, modos de fazer e perceber, de devir e não de molaridades. É apropriado seguir a indicação da época de O anti-Édipo: combater o fascismo não é acusar o outro de fascista, mas estudar até que ponto e de que maneira, todavia, ainda somos. Qualquer um que se diga esquizoanalista deveria estar ciente dessas questões. Por isso, talvez a esquizoanálise (como a filosofia) não permita se definir em uma identidade no sentido disciplinar tradicional, e é algo que se faz, às vezes, e nem sempre por vontade própria, às vezes, apenas porque é forçado. Desse modo, assim como há escritores (como Joyce, Kafka, Proust, Beckett) que, sem saber, fizeram esquizoanálise, há psicanalistas que também a fazem em tal ou qual situação ou que fazem também uma terapia cognitivo-comportamental, mesmo sem saber. Por outro lado, haverá quem se autodenomine esquizoanalista e que às vezes fazem psicanálise ou literatura. Não se trata do Ser identitário de cada coisa, mas de perspectivas ou pontos de vista que não são nada objetivos (nem querem ser), mas tampouco não ficam em um mero jogo intelectual-verbal, porém servem precisamente para traçar rotas e cartografias, ou seja, para viver uma vida.
Ora, a hipótese a ser implantada aqui é que o trabalho teórico-prático de Félix Guattari em sua complexa abordagem da subjetividade, da loucura, do socioinstitucional, da ecologia, do capitalismo, etc., tem como um de seus eixos o combate às práticas do Paradigma Terapêutico Hegemônico, profundamente reacionário e fascista, considerando a articulação destas com várias disciplinas e práticas sociais, e reconhecendo na abordagem que uma sociedade dá à loucura uma amostra da relação que tem com tudo o que escapa às normas impostas pelo modo dominante Homem/Adulto/Branco/Heterossexual/Racional, etc. Nesse contexto, fazer esquizoanálise implicaria permitir viver as multiplicidades sem totalizá-las, as disjunções inclusivas, a experiência, o pensar na situação e sustentar um movimento instituinte que seja elucidado criticamente. Trata-se de escolher a tendência que permite expandir a vida, e não aquela que a limita, reprime, segrega, identifica e essencialmente classifica. Para esta tarefa, descartar toda “A” psicanálise, como alguns acreditam deduzir da obra da dupla francesa, seria uma tolice e simplificação demasiado apressada, seria um dogmatismo.
Quiçá, estas crises paradigmáticas que vivemos atualmente permitam reconfigurar algumas Psicologias (ou práticas herdeiras) na altura de uma refundação da democracia.[39] Não é por acaso que os últimos textos de Guattari convergem a postulação de um paradigma ético-estético (ao contrário de qualquer paradigma científico e supostamente Verdadeiro e inquestionável), a postulação de uma ecosofia e a refundação tanto das práticas analíticas e sociais como das democracias. Neste último texto, Guattari imaginava um amor ao dissenso (não uma mera tolerância do diferente), outra relação com o outro e a loucura, práticas anti-segregativas e de-segregativas, uma nova solidariedade que não incorre em regionalismos ou na constituição de meras comunidades isoladas, uma relação ecosófica com o meio ambiente, o social e mental, onde a sobrevivência humana não dependa da destruição de recursos naturais não renováveis; onde a ciência prolifere tanto quanto os saberes menores, plebeus e extradisciplinares, onde os chamados loucos (se tal denominação persistir) e outras dissidências não sejam patologizadas, marginalizadas, aprisionadas, tuteladas e semiotizadas/sentidas como perigosas; onde o desejo não seja compelido a significar, se unificar, classificar. Em tal cenário, a função analítica também pode ter se democratizada.
NOTAS
- Não devemos confundir o polo paranoico com a máquina paranoica, o polo esquizo com o processo esquizo, ou ambos com os tipos de catexis ou investidas de mesmo nome. Cada noção das recém referidas possui um peso diferencial em relação as demais.
- Não falaremos aqui sobre as classificações nosográficas de psicose em si, nem de todos os tipos de loucura em geral, porém abordaremos alguns aspectos de ambas dimensões consideradas relevantes (entre outros) do uso dos conceitos de paranoia e esquizofrenia.
- “Pôde-se observar que a palavra “anômalo”, adjetivo que caiu em desuso, tinha uma origen muito diferente de “anormal”: a-normal, adjetivo latino sem substantivo, qualifica o que não tem regra ou o que contradiz a regra, enquanto que “a-nomalia”, substantivo grego que perdeu seu adjetivo, designa o desigual, o rugoso, a aspereza, a ponta de desterritorialização. (…) Os feiticeiros se utilizam então do velho adjetivo “anômalo” para situar as posições do individuo excepcional na matilha”. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix (1980) em Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 4. Trad. Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 2008, pp. 25-26.
- Logo foi mais difundido o nome de posição esquizo-paranóide, e nem sempre se sabe que esta denominação foi uma modificação posterior que a autora fez para integrar seus desenvolvimentos aos que fizera Fairbirn (que formulava uma posição esquizoide) ao mesmo tempo.
- KLEIN, Melanie (1975/2015). Envidia y gratitud, y otros trabajos. Ed. Siglo XXI. Bs As.
- Ibidem, 1975/2015, p. 23.
- Klein é tão evolucionista no ontogenético quanto eram as demais teorias “psi” dominantes em sua época. Então, com Lacan procederá para um modo de leitura que não requer mais falar sobre regressos e progressos, já que o tempo deixará de ser linear.
- Ibidem, 1975/2015, p. 29.
- Ibidem, 1975/2015, p. 28.
- Logo a esquizoanálise lerá nisto, com Baruch Spinoza, a relação entre afetos tristes e diminuição da potência, e tomará um caminho absolutamente distinto do kleiniano, que excede os objetivos deste texto, mas não pode ser reduzido tão simplesmente a apontar as paixões alegres, ao estilo new age, visto que há alegrias, segundo Spinoza, que também advêm da tristeza. Além disso, não se trata de integrar, sintetizar, unificar ou pretender entender uma causa necessária na história individual.
- Freud lê este caso desde o complexo paterno; Klein desde projeção-perseguição, da divisão do eu e dos objetos; Lacan através de uma operação significante; e Deleuze e Guattari desde o histórico-político-social e da relação desejo-corpo sem órgãos.
- FREUD, Sigmund (1999). Obras completas. Tomo XII. Ed. Amorrortu. Bs As. p. 70.
- ALLOUCH, Jean (1997). “¿Paranoización? Simple indicación sobre la dirección de la cura”. En La locura compartida. Ed. Libros de Artefacto. México D.F. p. 106.
- FREUD, Sigmund (2006). Obras Completas. Tomo XIX. Ed. Amorrortu. Bs As. p. 195.
- WINNICOTT, Donald (1958/1999). Escritos de pediatría y psicoanálisis. Ed. Paidós. Barcelona. p. 307.
- WINNICOTT, Donald (1971/2013). Realidad y juego. Ed. Gedisa. Barcelona. pp. 115-118.
- Os familiarismos do cultural, como o aqui operado pela psicanálise burguesa, são sempre conservadores, pois escondem o sócio-histórico-político-econômico, tanto quanto certas relações e dispositivos de saber-poder-subjetivação.
- WINNICOTT, Donald (1971/2013). Realidad y juego. Ed. Gedisa. Barcelona. p. 157.
- Ibid., 1971/2013, pp. 124-133.
- WINNICOTT, Donald (1989/2015). Exploraciones psicoanalíticas I. Ed. Paidós. Buenos Aires. p. 111.
- “É de suma importância para nós que, no nível clínico, não encontremos uma linha clara de separação entre saúde e estado esquizoide, ou mesmo entre ela e a esquizofrenia completa.” WINNICOTT, Donald, 1971, p. 117.
- Além disso, essa noção inclui: elan vital (Bergson), forças ativas (Nietzsche) e força de trabalho (Marx).
- DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. (1972/1995) El anti-edipo. Capitalismo y esquizofrenia I. Ed. Paidós. Bs As. pp.: 27, 94, 136-137.
- Ibid., 1972/1995, p. 26.
- Ibid., 1972, pp. 319-320.
- Ibid., 1972, p. 320.
- Transcendência platônica psi: a existência é julgada em função de critérios racionais que representam uma dimensão inapreensível, ausente, eterna, “verdadeira”, e que, portanto, não pode ser questionada. A reversão do platonismo, ambição nietzscheana, passaria na clínica esquizoanalítica pela reversão da estrutura, suas transcendências e polos paranoides.
- LACAN, Jacques (1973/2015). El Seminario. Tomo 11: Los cuatro conceptos fundamentales del psicoanálisis. Ed. Paidós. Bs As.
- LACAN, Jacques (1966/2009). Escritos 1. Ed. Siglo XXI. Bs As.
- DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix (1972). O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2011, pp. 82-83.
- FREUD, Sigmund (2006). Obras Completas. Tomo XIX. Ed. Amorrortu. Bs As.
- GUATTARI, Félix. (2013). De Leros a La borde. Prácticas analíticas y prácticas sociales. Ed. Casus Belli. Madrid.
- GALENDE, Emiliano (1994). Psicoanálisis y Salud Mental: para una crítica de la Razón Psiquiátrica. Ed Paidós. Bs As. p. 349.
- Aqui o uso de “ele” no masculino remete a categoria conceitual majoritária (que com Deleuze e Guattari não envolve uma quantidade, mas uma produção de práticas de opressão) podemos chamar homem/adulto/branco/heterossexual/paranoico/(supostamente) autônomo e razoável.
- “Quando Chuang-Tzú está acordado, ele pode se perguntar se não é a borboleta que sonha que ela é Chuang-Tzú. Ele está certo, (…) porque isso prova que ele não está louco, que não se acredita de modo idêntico a Chuang- Tzú (…)” (tradução nossa) (Lacan, 1973/2015, p. 84). Também “se um homem que se acredita rei é louco, não menos o é um rei que se acredita rei. (…) tal é a fórmula geral da loucura que encontramos em Hegel. (…) uma estase do ser, numa identificação ideal”. (LACAN, 1966/2009, pp. 161-163).
- DELEUZE, Gilles (1995). Conversaciones. Editora Nacional. Madrid. p. 19.
- DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. (1972/1995) El anti-edipo. Capitalismo y esquizofrenia I. Ed. Paidós. Bs As.
- DELEUZE, Gilles (s/a). El abecedario. La penúltima entrevista. Colectivo Editor Devenir Imperceptible. pp. 72-73.
- GUATTARI, Félix. (2015). ¿Qué es la ecosofía Textos presentados y agenciados por Stéphane Nadaud. Ed Cactus. Bs As.
SERGIO DARIO RAGONESE: Graduado em Psicologia pela Universidade de Buenos Aires (UBA). Professor de nível médio e superior (Universidad Abierta Interamericana, Argentina). Especializado em clínica esquizoanalítica (Centro Félix Guattari, Montevideo, Uruguay). Mestre em Saúde Mental Comunitária (Universidade Nacional de Lanús, Argentina. Tese em andamento). Docente da disciplina Teoria e Técnica de Grupos do Bacharelado em Psicologia da UBA, desde 2011. Foi co-organizador do IV Encontro Internacional de Esquizoanálise, realizado em agosto de 2019 pelo Centro Félix Guattari – Buenos Aires.
FONTE
Texto publicado em “Psicanálise e Esquizoanálise: diferença e composição” (org. Anderson Santos, 2022, n-1 edições).