A parte dois, trata-se do segundo encontro entre Raymond Bellour, Gilles Deleuze e Félix Guattari. Uma entrevista excepcional. A parte um encontra-se disponível no site (Clique aqui para acessar – Parte 1).
Bellour: A partir do momento em que os problemas de falta são, senão resolvidos, pelo menos clarificados pela maneira com que foram postos na última vez, parece-me que se põe um problema entre o que se poderia chamar sexualidade no sentido amplo e a sexualidade em sentido estrito. A partir do momento em que a sexualidade é extensível ao conjunto do campo social, coloca-se o problema do que se chama habitualmente sexualidade circunscrita ao sexo. Gostaria de compreender como o problema da sexualidade, no sentido tradicional do termo, poder ser articulado no interior da problemática de vocês. Porque, por exemplo, se a sexualidade especificamente sexual é um fluxo mais importante do que os outras, isso não cria entre os próprios fluxos fenômenos de falta etc.
Guattari: O termo sexualidade é ruim. Não há fluxo assaz importante no nível da sexualidade, resultante da divisão dos sexos, pois, precisamente, isto já é uma extração, num certo sentido, uma mutilação do que se poderia chamar uma transexualidade generalizada. Sempre que se coloca a questão da divisão dos sexos, isso quer dizer que essa energia desejante já foi reduzida a pessoas, polos; num sentido, a própria palavra sexualidade já é uma entrada, uma avenida rumo à edipianização da energia desejante; aliás, é por isso que falamos sobretudo de energia desejante mais do que de pansexualismo ou de sexualidade generalizada. Não há uma sexualidade especificamente sexual, uma energia biológica sexual, resultado da divisão dos sexos, que seria uma zona particular da energia desejante, isso pela boa razão que as máquinas sexuais no sentido em que você as toma, são tão somente sequências mutiladas, cortadas da energia desejante. A energia desejante não conhece sexos, não conhece pessoas, nem mesmo conhece objetos. Ela produz seus objetos e vê reduzir-se a suas origens, se vê atribuir coordenadas sociais e sexuais, coordenadas exclusivas, limitativas e mutiladoras. Portanto, longe de ser uma fuga de energia biológica privilegiada que iria irrigar, por extensão, por sublimação, o campo social, é exatamente o contrário : há uma energia sexual que é, digamos, transexual, a-pessoal, que segue todos os fluxos, que se acha em seguida recodificada em termo de pessoas, de relações familiares, de eu.
Bellour: Quer dizer, por exemplo, que a sexualidade em estado hipertrofiado, tal como se pode ver em Miller, em Lawrence, nos autores que foram chamados de pornográficos ou eróticos, é uma sexualidade que já lhes parece como um sistema de codificação ligado a todos os fenômenos de edipianização, de castração etc.
Guattari: Eles partem daí, de certa maneira, e todo seu processo analítico ou esquizoanalítico, toda sua experimentação consiste em poder se livrar e encontrar linhas de fuga, linhas de quebradura dessa codificação social.
Bellour: Sim, mas, apesar de tudo, em Miller, há, não obstante uma especificação da energia desejante, sobre o sexo, que está lá, central, monumental. Falo de Miller porque vocês o evocaram frequentemente como exemplo essencial em O anti-Édipo.
Deleuze: Creio que você acaba de colocar duas questões totalmente diferentes. A primeira questão concerne a sexualidade no sentido estrito e a sexualidade no sentido amplo. Creio que nós empregamos sexualidade no sentido em que todo mundo sempre empregou, no sentido de ter uma ereção, de ejacular ou não ejacular. De maneira alguma distinguimos uma sexualidade estrita com pessoas, mulheres, homens, galinhas ou qualquer outra coisa; e uma sexualidade ampliada que seria o equivalente de uma sublimação que inundaria o campo social. Dizemos: seja o que for que você goste sexualmente, o que você investiu através disso, uma mulher, um homem, uma parte do vestuário, um calçado, uma galinha, qualquer coisa, é um campo político social. Portanto, não estabelecemos de maneira alguma uma clivagem — isso é a clivagem freudiana — entre uma sexualidade estrita e uma sexualidade ampla que é uma sexualidade, seja neutralizada, seja sublimada, seja derivada etc.
Guattari: Uma sexualidade de objeto, uma sexualidade de referentes, se podemos dizer assim…
Deleuze: É nossa primeira diferença com a psicanálise. Não damos importância alguma à diferença sexual. Não damos a isso privilégio algum. Pode ser assim ou de outra forma, seja lá o que for que você assume sexualmente, de fato, através do objeto sexual, sexuado, seja qual for a maneira pela qual ele seja sexuado — homossexuado, heterossexuado, bestissexuado — é um campo social, político. Portanto, para nós, não há uma sexualidade estrita e uma sexualidade ampla. Há tão somente uma sexualidade que é a mesma em toda parte e que inunda tudo. Quando dizemos, por exemplo, um burocrata que acaricia seus documentos, isso é sexual, não há a menor sublimação nisso. Essa sexualidade não se sublima no campo social; ela investe diretamente o campo social. Ela é social, política.
Bellour: Concordo.
Deleuze: A segunda questão que você coloca, quanto a Miller e Lawrence, quando você diz: “há uma espécie de concentração sobre uma sexualidade estrita”…
Bellour: Sim, mesmo que isso se panteíze, a sexualidade permanece concentrada no sexo.
Deleuze: Sim, mas isso volta a reintroduzir tua distinção estrito/amplo. Não se trata de dizer: “mesmo que isso se panteíze, cosmologize”, porque é uma dimensão essencial. Quanto mais isso se contrai sobre o sexo, mais isso se amplia, de fato, no campo social e político. Da mesma maneira, em Burroughs, quanto mais isso se concentra na droga, mais isso vai dar um delírio social completo, com a polícia etc. Em Miller é também evidente. Quanto mais isso se retrai nas cenas de sexualidade pura, tanto mais isso se abre ao…
Guattari: … mais isso sai do familismo.
Bellour: Mas, independentemente do fato de que isso quebra o familismo, será que não se assiste a um tipo de exacerbação da sexualidade, da energia desejante sobre o sexo, sobre algo muito especificado?
Guattari: Pense, por exemplo, numa criança que acaba de se masturbar de maneira extremamente penosa, dolorosa e catastrófica, na qual ele não tem mais do que um pênis à vista. Pode-se concebê-lo, com efeito, como um tipo de retraimento da sexualidade no sentido de uma zona parcial que levanta a cabeça. Creio que, mesmo nesse caso, deve-se poder considerar que se trata de uma maneira de encontrar uma experimentação fora do campo social; a prova é que a masturbação, precisamente, é condenada enquanto manifestação de uma sexualidade fora da norma. Que a criança esteja fora de norma, indo bancar a idiota e vagabundeando na rua ou se masturbando, o que conta não é que ela está, num caso, na rua, em outros casos escondida sob lençóis, mas que ela rompe com a maneira pela qual a sociedade entende canalizar toda prática sexual no quadro do familismo ou no quadro de uma série de cadeias de integração.
Bellour: Sim, mas, não obstante, faço aí uma diferença. Quando você diz que um está na rua e que o outro se esconde, se há, me parece, um privilégio extraordinário concedido à sexualidade há um século, digamos, é precisamente por haver uma espécie de atividade perpetuamente secreta, ocultada, que se manifesta cada vez mais sob forma de transgressões e de provocações, como se a energia sexual fosse mais perigosa, mais transgressiva.
Guattari – Creio que não está ligada ao sexo. É sempre o mesmo erro de raciocínio. Se você começa por colocar o objeto e, a partir do objeto, deduzir a conduta, você falseia tudo. O desejo não tem objeto; não é um vetor que parte de uma totalidade pessoal para se fixar num objeto. O desejo recebe sua repressão personalógica e contra-determina seu {215} objeto. Digamos que ele fabrica, que ele produz seu objeto. Se você retoma esse exemplo da culpabilidade, é evidente que uma forma privilegiada da sexualidade capitalista é precisamente essa conexão com zonas privadas; não é porque você se masturba, ou que você tenha não se sabe qual preocupação concernente ao objeto parcial, que você recebe culpabilidade, é porque você tem uma prática de sexualidade culpável que você se serve de tal objeto ou de tal prática social. É totalmente o inverso, portanto. É porque o indivíduo, para se por em conjunção com fluxos desterritorializados, toma territorialidades cada vez mais parciais, culpáveis, dolorosas, masoquistas, que sua sexualidade se serve de um certo número de objetos, que ela destaca um certo número de seções do corpo, ou de práticas voyeurísticas, ou de coisas como isso. Parece-me que isso inverte completamente a perspectiva. A culpabilidade não é o resultado de uma prática sobre um objeto sexual que seria um sexo no sentido restrito; a culpabilidade é primeiramente uma prática da sexualidade privatizada, culpabilizada do capitalismo, que seleciona em seguida seus objetos no campo social.
Bellour: Mas então o que chamamos ordinariamente de sexualidade, seja ela heterossexual ou homossexual, é o que, num plano utópico, não se poderia conceber como alguma coisa de equivalente à gastronomia, por exemplo, no sentido em que esta, de um lado, se efetua num registro extremamente variado de pratos e, por outro lado, escapa completamente ao segredo?
Guattari: Isso é um juízo de valor.
Bellour: De maneira alguma. Não quero desvalorizar nem uma nem outra. É que a gastronomia supõe a escolha absolutamente livre do que se vai consumir e, de outra parte, efetua-se numa suspensão total do segredo.
Deleuze: Que haja segredo ou não, isso nada muda. Nada impede que a libido seja ramificação num campo social aberto e de modo algum num campo familiar fechado.
Bellour: A partir do momento em que se fala de segredo, já há tendência a uma restrição sobre a pessoa…
Deleuze: Não, porque o segredo é uma forma social particular. Por outro lado, todo mundo sabe que o segredo é uma forma social muito codificada, que implica, ela própria, todo seu campo social. Isso não quer dizer redução da sexualidade ao privado, isso quer dizer coisa totalmente distinta. Isso quer dizer que as formas sob as quais a sexualidade investe o campo social passam pelo {216} segredo, mas que o segredo, longe de ser um recuo para fora do campo social, é uma certa estruturação do próprio campo social. Volto à questão para findar com o primeiro ponto, porque me tocou o que você disse sobre Miller ou Lawrence. Parece-me que, por mais que eles assentem e invistam formas sexuais não sublimadas, brutas, há, ao mesmo tempo, uma abertura maior ao mundo político, social, seja ela boa ou má, sob forma fascista ou sob forma mística, ou sob forma política real. Quero dizer que não são duas coisas na obra de Miller, o Trópico de capricórnio com suas cenas sexuais, e o Colosso de Maroussi com a Grécia, o delírio sobre a Grécia. É a mesma coisa, quer dizer ele fode a Grécia através das cenas do Capricórnio. Para Lawrence, Lady Chatterley e os Etruscos são verdadeiramente o anverso e o reverso. É à força de sexualidade não sublimada que ele se abre a um mundo histórico, social e político.
Guattari: Posso tomar um exemplo, o de Kafka: na passagem a uma sexualidade animal ou a uma sexualidade quase esquizo, longe disso ter acabado num encolhimento da sexualidade, foi através disso que ele conduziu sua análise da evolução das formas do burocratismo no período austro-húngaro e do burocratismo capitalista e modernista que começa a aparecer nos setores aos quais ele está confrontado, os seguros e o trabalho de Felice Bauer etc.
Deleuze: Para nós é muito importante que não haja uma sexualidade no sentido estrito e uma sexualidade no sentido amplo. Isso porque, se você cola uma sexualidade no sentido amplo, de uma maneira ou outra reencontrar-se-á a sublimação.
Guattari: Absolutamente. Em A Carta ao pai, Kafka diz do seu pai: quando você estava em sua boutique, em suas relações de comércio, você estava admirável. E, ao mesmo tempo, Kafka o detestava. Mas o que ele visava aí não é uma conexão de ciúmes, de posse ou de relação miraculosa entre a mãe e o pai, é um certo campo social de tirania estabelecido pelo pai.
Bellour: Minha preocupação relativamente a esse problema vem de duas coisas: primeiro, na medida em que se assiste a um tipo de privilégio, se se pode dizer, da sexualidade no sentido estrito, como vocês podem negociar esse privilégio no interior do conjunto de sua problemática; e, em segundo lugar, como isso se articula ou não com o problema do segredo, no sentido em que, na {217} conversa com Foucault, ele dizia: “o segredo é talvez mais difícil de revelar do que o inconsciente a.
Guattari: A questão toda está em que a promoção da imagem, objetos parciais, seio, falo, ou tudo o que você queira, é uma certa maneira que o capitalismo, literalmente, tem de despotenciar todos os objetos sexuais, de cortá-los de suas conexões reais. Põem-se em circulação uma sexualidade biológica ou uma promoção quase médica de finalidades sexuais, e quanto mais se está seguro disso, mais os fluxos de desejo são canalizados para esses objetos. Dão-se tanto mais sexos, seios etc. que, como isso, está-se seguro de que não se falará de dinheiro. Não se falará de conexões de forças micropolíticas e outras que são constitutivas da essência do desejo.
Deleuze: Insisto sobre isso: é que o segredo de modo algum está fora do campo social, é uma categoria constitutiva do campo social. Por exemplo, as sociedades secretas. Elas não se põem fora da sociedade, são partes constituintes dela, estruturadas na própria sociedade. Uma sociedade secreta é uma certa maneira de investir o campo social de um modo particular, até mesmo sociedades de anarquistas. Mesmo sob outras formas, o próprio segredo nunca é um descarte da sociedade, é um elemento estrutural, no pior e no melhor sentido da palavra, de toda sociedade, de modo que a ideia de uma sexualidade assentada sobre um certo segredo, isto faz completamente parte da maneira pela qual a sexualidade investe um campo social.
Bellour: Mas então você não pensa que a maneira de desatar o privilégio sexual — que corre sempre o risco do assentamento numa sexualidade estrita e, em último lugar, na escolha de objeto, o familismo etc. — seja justamente a ruptura desse segredo que constitui o sexual como lugar privilegiado de um gozo superior, oculto, etc.?
Deleuze: Não, porque se sabe muito bem que uma sexualidade pública, que uma sexualidade comunitária pode produzir familismo tanto quanto a sexualidade privada. Conhece-se bastante as comunidades públicas ou apelos pseudo-reichianos à sexualidades liberadas que reproduzem Édipo à n potência. {218}
Guattari: Gostaria de acrescentar a isso que todo um naturalismo, toda uma boa consciência da sexualidade, através da psicologia, da medicina, da pedagogia, da educação sexual, consiste em esmagar o desejo, em cortar um certo número de objetos da diferença sexual, precisamente para cortá-los do desejo. Quanto a mim, não gosto muito do termo segredo, diferentemente de Gilles, que gosta muito dele. Mas, enfim, creio que podemos nos juntar, dizendo: o que há de secreto no desejo é que ele é absolutamente imprevisível. Não se conhece de antemão seus objetos. De modo algum se sabe sobre o quê seu processo vai desembocar. É totalmente o contrário da representação da sexualidade-satisfação da qual se conhece o objeto, da qual se conhece a queda de tensão, da qual se conhece todo o protocolo, inteiramente codificado. Não sei se é preciso chamar isso de segredo, mas a abertura do desejo no campo social, é um certo caráter de liberdade política, um certo caráter de inovação, de produção particular de objetos; e é precisamente aquilo de que o campo social não quer ouvir falar. Não se quer que tudo isso seja previsto: em tal estágio da infância, você tem tal tipo de objeto, em tal outro estágio, tal outro objeto… Se lhe falta tal tipo de objeto, é que alguma coisa não vai bem. Você tem tal zona erógena, que é normalmente desenvolvida em tal época, e não normalmente em tal outra etc. Tudo é completamente programado.
Bellour: É o que faz, então, com que uma sexualidade com suspensão do segredo seja tão perigosa quanto uma sexualidade ligada ao segredo.
Guattari: É um arranjo.
Deleuze: A diferença não está aí. Ela não está no nível privado/público, nem no nível múltiplo/uno. A diferença está na questão: será que é uma história de fluxo ou uma história de pessoas e objetos? Quando se crê amar uma mulher, o que se ama de fato através dela é outra coisa, isso é bem conhecido. Isso não quer dizer que se ama outra pessoa, que seria a mãe etc. É uma vergonha dizer semelhantes coisas, é feio. Mas, através de alguém, o que se ama é de ordem não pessoal, é da ordem de fluxos que passam ou não passam.
Guattari: Há ainda um outro modo de abordar a questão. Pode-se dizer que a produção de desejo procede segundo uma semântica a-significante. O desejo se serve de fluxos, de substâncias. Ele não se serve de maneira privilegiada de conexões formais, de {219} conexões discretizadas, bi-univocizadas, digamos de todas as semióticas significantes. O que faz com que, a cada vez que se queira fazer passar o desejo fora das substâncias intensivas no quadro de conexões formais, localizadas, coordenadas, personologizadas, dependentes do princípio de contradição etc., recai-se então nas dicotomias da sexualidade parcial.
Deleuze: Eis aí, tenho a imagem que convém. Há um conjunto de palavras, por exemplo: delirar. Delirar, isso quer dizer sair do sulco. Há também em Sade, e em toda literatura pornográfica, a palavra “desenrabar”. Desenrabar, isso quer dizer sair de alguém que se está enrabando. Desbocetar é sair de alguém em que se está. Delirar é o camponês que falha ao traçar o sulco com seu arado. Pois bem, toda sexualidade é isso. A diferença não é: segredo/não segredo, é o fato que delírio/desbocetagem/desenrabagem sejam o estado fundamental da sexualidade. Dirige-se a uma pessoa, visa-se uma pessoa, um objeto ou não importa o quê e, através dela, isso derrapa, e isso derrapa forçosamente na felicidade ou na infelicidade. Há amor ou desejo por tal pessoa, mas através dessa pessoa, a pessoa é complemento desfeito. Félix citava Kafka. Sem dúvida, no seu caso, era preciso Felice para que, literalmente, isso desbocete, isso delire sobre tal formação social. É por isso que a psicanálise nos parece tão frágil a esse respeito. Não é a formação social que assegura uma sublimação qualquer, é a formação social que assegura as linhas de desterritorialização, de desbocetagem, de delírio etc.
Bellour: Então, último ponto sobre isso, como vocês se situam relativamente ao que se poderia chamar problema biológico da sexualidade, quero dizer relativamente à dimensão frequentemente privilegiada chamada “instinto sexual” e que se articula, em última instância, a uma biologia?
Guattari: Retomo os termos de Gilles. O que faz desbocetar, desenrabar, delirar? É o fato que, de uma substância a outra, passa-se de um certo coeficiente de desterritorialização a um outro, quaisquer que sejam as estruturas formais que se encontre. Há um fluxo qualquer, fluxo de signos, por exemplo, que tem necessidade de entrar e conjunção com um certo fluxo de carícias, de espermas, de merda, de leite… Fora dessa conexão, cada um dos fluxos é remetido a sua estrutura formal própria. A partir dessas conjunções de fluxos intensivos, um acontecimento se produz. Uma outra máquina desejante aparece {220} fora das correlações formais. Creio que é isso, o caráter biológico particular no sentido estrito de que você falava. A desterritorialização só pode entrar em ação quando ela entra nessa conjunção particular que faz saltar as soldas da máquina humana. É quando você pode fazer saltar suas soldas num plano de gozo sexual, é quando você pode entrar em conexão com tal ou qual sistema que alguma coisa opera.
Bellour: Num outro plano, vocês opuseram várias vezes os fenômenos de produção e de anti-produção, em particular a propósito de tudo o que toca o sonho, a fantasia, digamos as imagens; e fiquei impressionado pela maneira como distinguiram dois tipos de sonhos, os bons e os maus. Por que o sonho parece menos da produção do que o sono ou pesadelo, como vocês disseram uma vez? Será que vocês poderiam precisar qual estatuto atribuem — pois só parcialmente rejeitam a palavra fantasia — ao que se pode denominar como diferentes representações da vida psicológica: imagem, memória, fantasia etc. Como determinar o que é produção e anti-produção?
Guattari: É uma questão difícil. Parece-me que o interesse do sonho, da fantasia, do fantasma ou de tudo o que você queira, está em serem uma máquina para detectar porcarias edipianas. É uma máquina para detectar os lugares onde se contraem as reterritorializações, isso em virtude da própria natureza do sonho, no sentido de que é uma atividade que, por definição, tende a ser cortada de toda conexão com o real, com o campo social. No mesmo lance é como se fosse uma radiografia de todos os pontos de bloqueio. Ora, é extremamente interessante repetir esses pontos de bloqueio. Penso que o sonho, para retomar a fórmula de Freud, é a via real, não do inconsciente, mas da edipianização do inconsciente. Continuo a pensar que a análise do sonho é muito importante porque, quando você pode chegar a determinar, no sonho, por qual enganação, por qual espécie de desterritorialização, por qual tipo de identificação você vai colmatar e levar sua política fascista, devir policial consigo mesmo, isso devém um modo de ajustagem de uma outra política possível. Penso que essa maneira de detectar é extremamente importante. Ali onde, no sonho, se produzem esses impactos fascistas, há, {221}, precisamente no mesmo lugar, o umbigo do sonho, quer dizer, o indício maquínico de uma outra política possível. No próprio lugar em que se é o mais fascista, o mais bloqueado, é que alguma coisa pode abrir-se numa outra cadeia, pois se é tanto mais fascista nesse lugar por atrás do qual há uma ameaça maquínica. Tudo depende do que se quer fazer do sonho. Se você quer interpretá-lo, reificá-lo, coisificá-lo na grade de interpretações, então, no mesmo lance, ele serve para reforçar uma política fascista. Inversamente, se você, mais do que interpretar, quer colocá-lo num sistema de produção, um sistema de quebradura de esquemas habituais, de esquemas reais, se você quer efetuar uma técnica de experimentação, então, mais do que alimentar uma semiótica edipianizante, você pode servir-se da semiótica particular do sonho para reforçar uma semiótica a-significante.
Bellour: Isso se junta ao texto sobre as máquinas, que vocês publicaram pela Minuit b. Vocês opõem a dissociação à associação, uma sendo de alguma maneira o sistema de eliminação que permite chegar ao outro. Mas então, nesse momento, parece-me que se coloca um problema: como se pode estabelecer uma repartição? Como uma avaliação do “sem liame” não constitui, ela própria, um tipo de retorno à interpretação? Na medida em que se opõe intensidades a estruturas, será que se pode chegar a detectar que elas são intensidades porque já não se prestam a alguma avaliação de codificação, e se elas se prestarem a isso, será que seriam de novo redutíveis em termos de estrutura? Como se põe o problema dessa repartição? Não é ainda uma operação de saber que corre novamente o risco de ser reificada?…
Deleuze: Não, é uma operação de crítica, não de saber. A crítica e o saber me parecem muito diferentes, tanto historicamente quanto politicamente. O que se tenta opor é um domínio de experimentação a um domínio de interpretação, que é o domínio da psicanálise em geral. De um lado, há uma máquina paranóica, como máquina de interpretação, que funciona em toda sorte de níveis, no nível social, no nível familiar ou conjugal…
Guattari: … no nível somático, hipocondríaco. {222}
Deleuze: Você fez tal coisa, isso quer dizer isto… Que a psicanálise não a tenha inventado, mas que ela se aproveitou disso, que ela tenha dado uma nova figura à máquina de interpretação, é evidente. E a máquina de interpretação, isso quer dizer várias coisas. O primeiro aspecto da máquina de interpretação é o significante: isso quer dizer alguma coisa. O segundo aspecto é a anamnese: o que você é, você o tem sido. Você é o que você é em função do que você era {enquanto} criança etc. O terceiro aspecto é a representação. É a conexão de força. Todos esses níveis são a conexão forças. A máquina de interpretação e a conexão de forças fazem um. É por isso que a psicanálise vive desses três aspectos. Ela dá uma figura original a três aspectos bem conhecidos que são as velhas figuras do par. Nem mesmo é preciso dizer, como dissemos em O anti-Édipo, que o lugar da psicanálise é a família. Deveríamos dizer que seu lugar é a conjugalidade. Nós, o que dissemos, é verdadeiramente o contrário desses três aspectos. Uma esquizoanálise, isso consistiria, entre outras coisas, em desfazer toda máquina de interpretação: entende-se que o que você diz, isso a nada remete, isso nada significa.
Guattari: Não é nem recursivo nem prospectivo.
Deleuze: É um dado bruto. Qual é a posição do desejo na situação atual?
Guattari: Qual política você leva? Onde você quer chegar? Quais são suas coordenadas?
Deleuze: Sim, é: experimentação = política. E não: experimentação = escola infantil. Na psicanálise isso quer dizer: escola maternal. O segundo ponto é: referência alguma ao passado, de modo algum para suprimi-lo, mas porque a constituição do passado e do presente do qual esse passado é o passado são estritamente contemporâneos. Sinto-me de novo muito bergsoniano, é perfeito. A lembrança de infância é contemporânea da própria infância. Simplesmente, há uma distorção radical entre as duas. É ao mesmo tempo que a criança fabrica suas lembranças de infância edipianas e o que Félix chama de “blocos de infância” de uma natureza totalmente distinta, porque nada tem a ver com Édipo, com a família. Nos romances de Tony Duvert há blocos de infância, no sentido em que se vê uma sexualidade infantil que nada tem de edipiano, e {223} é ao mesmo tempo que as lembranças edipianas de infância se fazem. Então, a recusa da anamnese de modo algum consiste em dizer: referência alguma ao passado. É a armadilha na qual caíram aqueles que romperam com Freud. Disseram grosso modo: “consideramos os fatores atuais, isto é, não infantis. Para tudo que é infância, Freud tem razão. Mas há problemas do jovem ou do adulto”. De modo algum nós dizemos isso. Dizemos: mesmo no nível da infância, não é como Freud o diz. O que queremos dizer é que as lembranças de infância se fazem ao mesmo tempo que a infância; o tempo em que se é criança é o mesmo no qual já se trai sua infância. Fabricamos nossas edipianas lembranças de infância: ah, meu papai, minha mamãe. De modo algum distinguimos entre fatores infantis/fatores atuais, como aqueles que romperam com Freud, como fizeram Jung ou Adler. Dizemos: mesmo no nível da infância você já encontra a mistificação, isto é, a clivagem entre estruturas edipianas e puros blocos de infância. A partir daí, foda-se a anamnese, mas de modo algum à maneira pela qual foi feito até então. Até então, isso consistia em dizer: os fatores atuais são mais importantes que os fatores infantis. Nós dizemos: nos fatores infantis há fatores atuais, eternamente atuais, e fatores virtuais. Os fatores virtuais, é a fabricação do Édipo, que são o objeto, o produto da repressão. Mas a verdadeira via da infância nada tem a ver com isso; ela é completamente atual, uma vez dito que não se sai da infância, obviamente. Mas a infância já é política. Um rapaz pensa em bombas, ele pensa em enrabar sua irmã etc., não é coisa da família, é coisa da sexualidade e do campo social. Logo, não há operação alguma de anamnese a ser feita. Há tanto menos anamnese que o tema da experimentação é: por natureza, você não sabe o que você é. O psicanalista é alguém que diz: alguém, seja eu, o bom Deus, Freud ou a memória de Freud, sabe o que você é. Ele o sabe, porque o que você é, é que você foi criança. Nós dizemos: a criança não sabe o que ela era, e tampouco o sabemos agora. O que se é, só se pode saber ao final de experimentações, como alguma coisa de futuro. Então, a experimentação voltada para o passado de uma pseudo-infância, e a experimentação voltada, ao contrário, rumo à exploração {224} de uma futura infância, opõem-se absolutamente. É por isso que gostamos tanto dos sadomasoquistas americanos que não leem Freud. Opõe-se à memória e o esquecimento. As coisas se fazem pelo esquecimento, e não pela memória. A psicanálise procede pela memória. Nós procedemos pelo esquecimento, e não pelo despertar através do esquecido. Dizemos: quanto mais você esquece, melhor é, porque quanto mais você esquece, mais você vive. Quanto menos você sabe o que você é, melhor é. Então, na América do Norte, os sadomasoquistas dizem: você crê que você é sádico? Você crê que você é masoquista? Você crê nisso, você crê naquilo? Nada disso, você vai fazer suas experiências. Isso nos parece a boa esquizoanálise. É regozijante, com efeito, ver pederastas que dizem: sou pederasta. Toda fórmula “sou” é impossível. Talvez não sejam de modo algum pederastas, o pior pederasta que diga “eu sou, veja como eu sou” talvez seja outra coisa. E é esse o objeto de uma esquizoanálise, saber o que ele é. Enfim, terceiro e último ponto, o da representação, razão pela qual nos opomos completamente à psicanálise, é que a psicanálise sempre consistiu em negociar, no sentido próprio da palavra, isto é, em mercadejar em troca de dinheiro, estados vividos em troca de outra coisa. Então, reencontramos aí a questão do fantasma. Nunca o fantasma foi um estado vivido, os psicanalistas bem sabem disso. O fantasma é um estado completamente fabricado, completamente traficado: é uma moeda. O psicanalista é alguém diz grosso modo: o contrato que eu lhe proponho é traduzir seus estados vividos em fantasmas, e você vai me dar dinheiro.
Bellour: Troca do sentido e do dinheiro.
Deleuze: Em troca do dinheiro. Você me dá dinheiro e eu traduzo em fantasma o que você era. Não, dizemos: o vivido é por natureza o intensivo, é coisa de intensidades que passam; e essas intensidades não são o representativo.
Bellour: Ainda assim isso produz imagens.
Deleuze: Não.
Bellour: É isso que eu gostaria de compreender, porque…
Deleuze: Assim que isso produz imagens, há greve de fantasmas, isso produz imagens quando isso se bloqueia. É um pouco como a leitura.
Bellour: Aí, viso algo de puramente elementar. Quando você está em seu leito, não importa onde, num estado de beatitude {225} relativa, e que ele lhe passa coisas, uma imagem de não importa o quê, de faca, de mulher, de…
Guattari: Quando ele lhe passa coisas, é porque você está tomado num sistema de coordenadas, é porque você tem uma posição de sujeito que se representa alguma coisa e que se situa relativamente a uma intensidade. Há, portanto, mais do que uma triangulação, há toda uma organização da representação com a imagem.
Bellour: Sim.
Guattari: Portanto, você tem a imagem e o sujeito de um lado, a intensidade do outro, mais os outros que vêm fazer a moral, quem vêm aplaudir ou vaiar. Portanto, do ponto de vista do desejo, assim que há imagem, pode-se dizer que há já cessação, curto-circuito do desejo, pois há corte subjetivo que instaurou, de um lado, a representação de imagem e, de outro, a intensidade que foi parcelada, cortada num campo de representação e num campo de produção, um campo de trabalho útil e um campo de trabalho nocivo.
Deleuze: É como quando você lê um livro. Há também aí uma conexão erótica com o que se lê, uma conexão amorosa. Quando é que você tem imagens? Não é quando você lê. Você não tem imagem quando lê.
Bellour: Você tem imagem quando pára de ler.
Deleuze: Sim, quando você as tem o bastante, quando você repousa, quando você quer refletir. Aí então as imagens vêm, é a greve do fantasma.
Bellour: Você quer dizer que o fantasma é a greve da intensidade?
Deleuze: Nesse momento as intensidades param, elas são bloqueadas.
Guattari: É a contemplação, o recolhimento, um assentamento sobre a territorialidade de imagem.
Deleuze: Quando as intensidades passam, não há imagem alguma.
Guattari: É bem simples, quando você está em vias de beijar, quando você está em vias de gozar…
Deleuze: Não há imagem.
Guattari: Se imagem alguma passa pelo canto, acabou, isso desvenda também secamente, isso não funciona de modo algum.
Deleuze: É mesmo a definição de desvendar. Você tem uma imagem, está perdido.
Guattari: Terminou.{226}
Deleuze: Ou então, você se ramifica penosamente a partir da imagem. Você diz: ah, eu preferiria que fosse com outra, mas é isso não vai bem.
Guattari: Ou então é o próprio fluxo de imagens que funciona.
Bellour: Sim, mas é isso que me interessa. Vejo bem como, em certos estados, há sistemas de bloqueio; mas me parece extremamente curioso fazer com que toda vida “imaginária”, pois ela tem produção de imagens, seja inteiramente submetida…
Deleuze: Ela é edipiana.
Bellour: … que ela seja edipiana não possa ramificar sobre os fenômenos de fluxo, ser ela própria integrada a fenômenos de fluxo.
Guattari: Sejamos claros. A imagem, de qualquer modo, estamos dentro até o pescoço. Não vamos dizer que não é preciso imagem, seríamos completamente idiotas. Estamos impregnados dela em toda parte. A questão é saber o que se faz com as imagens. Será que se faz uma política de fluxo que tende a fazer com que as imagens devenham “figural”, para retomar o termo de Lyotard, ou será que se faz uma política da imagem, a saber que, quando se tem uma…
Bellour: … guardamo-la.
Guattari: Guardamo-la. Coordenamo-la, trabalhamo-la, referimo-la a ressonâncias. Quando você vê a televisão, trata-se de saber se você interpreta, se você refere isso à lei, ao pai, a Deus etc.
Bellour: Parece-me curioso pensar que a imagem que a imagem seja completamente oponível à intensidade. Que a imagem, como fenômeno de travessia mental, não possa ser, ela própria, um fenômeno de intensidade, confesso que não compreendo.
Deleuze: Forçosamente, sim. A imagem é, por definição, uma parada nas intensidades. A imagem é coisa da extensão. É quando as intensidades, de uma só vez, transbordam em extensão, se põem em extensão para formar uma cena. É o que se chama um fantasma.
Guattari: Sujeito-figura-fundo.
Deleuze: De modo algum queremos dizer que isso não é levado por intensidades; queremos dizer que quando a imagem se desdobra em extensão, isso é o signo de que as intensidades se repousam ou estão bloqueadas. {227}
Bellour: Mas nos fenômenos de droga, por exemplo?
Guattari: São fluxos.
Bellour: Ah não, nos fenômenos de droga, sabe-se bem que você tem uma aceleração de imagens, uma multiplicação de imagens.
Guattari: Sim, são fluxos de imagens…
Deleuze: É a retomada das intensidades.
Guattari: As intensidades drenam imagens.
Deleuze: Mas, como Félix disse há pouco a respeito do sonho, há um sistema de imagens e, através dele, passa outra coisa. O que é preciso encontrar é o que se passa distintamente. A psicanálise, longe de encontrar o que se passa sob o sonho, fecha-se no sonho, num sistema de imagens e de significantes. Mais uma vez, para nós, imagem, significante, imaginação simbólica, dá tudo na mesma. No sonho há tudo isso, depois há uma corrente totalmente distinta, que não é dita no sonho. É ainda mais claro nas drogas, e isso depende do gênero de droga. Há drogas mais imaginativas que outras. De toda maneira, haverá sempre um complexo imagem-intensidade. O que nos parece chave são as intensidades não-representativas, porque as intensidades são desterritorializadoras, elas desenraizam territórios. Não se sabe mais onde se está.
Bellour: E toda imagem é forçosamente territorializadora?
Guattari: Forçosamente, uma imagem é um território. É uma operação de subjetivação, de interpretação e de territorialização enquanto tais.
Deleuze: É como quando Lewinter, na Revue de psychanalyse, explica a conexão do sonho e da tela c … Esse artigo é muito importante para nós. Isso mostra a que ponto o fantasma é uma projeção numa cena. Você tem estados vividos, que são estados de alta ou de baixa intensidade. Você traduz isso em Melanie Klein, isso dá uma fantasmagoria.
Guattari: É a diferença entre Charlie Chaplin e Buster Keaton, se você quiser.
Bellour: Compreendo bem, mas o que não está claro é quando você, Félix, emprega o termo fluxo de imagens, o que, segundo o que Gilles acaba de dizer, é aparentemente impossível, {228} pois fluxo e imagens são oponíveis, já que a imagem depende do fantasma e, portanto, do bloqueio.
Deleuze: Não há oposição alguma entre nós, creio. Porque, quando Félix fala de fluxo de imagens, é porque as imagens se precipitam a tal ponto que elas encontram as intensidades puras. As imagens do cinema, por exemplo. Não estamos em vias de dizer que o cinema seja merda por comportar imagem, ao contrário. O cinema é formidável porque pode trazer um tal fluxo de imagens, por exemplo em Godard, que reconstitui as intensidades em estado puro. Isso desbloqueia as imagens a tal ponto que se pode mesmo desbloqueá-las por um plano fixo. Não é a velocidade, nem a aceleração das imagens que faz isso, mas uma conexão de complementaridade. De modo algum há dualismo. Há uma tal conexão imagem/intensidade que, ao mesmo tempo, a imagem é a extensão que ganha uma intensidade quando morre; mas uma precipitação de imagens ou bem uma imagem fixa onde se passam coisas por toda extensão; ou então uma cor atravessa a imagem e restitui completamente a intensidade através da imagem. É por isso que Félix diz que o sonho é muito importante. É preciso analisar o sonho, porque o sonho é precisamente a merda, mas, ao mesmo, é o que é atravessado pelas intensidades. O importante é atingir o que não é representativo. Então, os lacanianos acreditaram que bastaria encontrar o significante para ultrapassar o representativo. Quanto a nós, apenas dizemos: não, é ainda coisa da pura representação. O que nos interessa é descobrir as intensidades.
Guattari: Creio que é nossa história de semiótica a-significante que pode dar conta do problema das imagens, porque, no final das contas, as imagens são tomadas como suportes. Finalmente, há fugas de imagens, mas de modo algum essenciais à conexão intrínseca entre as intensidades e os signos desterritorializados que devêm agenciamentos coletivos.
Bellour: Mas tomemos, por exemplo, os textos escritos por Charlotte Brontë há setenta e sete anos, que dão testemunho de uma falta sexual evidente, que se cristalizam em truques puramente fantasmáticos de representação maciça, de satisfação derivada. E ao mesmo tempo há aí imagens escorregadias que não param de passar. As duas atividades nascem de um mesmo estado de concentração, que são tipos de estados estáticos que ela {229} cria de modo sistemático. Sozinha no escuro ela cria imagem. Às vezes isso derrapa completamente, e às vezes isso se bloqueia. Parece-me que os dois fenômenos são, ambos, muito importantes, articulados, e de modo algum exclusivos um do outro. E, portanto, não se pode dizer, no sentido um pouco brutal dito por Gilles há pouco: a imagem é merda.
Deleuze: Sim, mas aí está um pouco nossa diferença, entre Félix e eu. Felix diz: seja edipiano até o fim. Quanto mais você for, melhor será. Sonhe, sonhe, sonhe, uma vez dito que o sonho é fundamentalmente edipiano. Isso me parece muito importante. Se você não sonha, não encontraremos suas linhas de intensidade pura, não edipianas. Então, evidentemente, eu teria tendência, sendo não prático, de ser mais violento, e dizer: descubra, sob suas imundícies edipianas, alguma coisa de mais puro. Mas Félix tem, evidentemente, razão de dizer…
Guattari: Sim, creio que o Édipo tem isso de característico, que é sempre uma justa medida. É a diferença entre a técnica psicanalítica de gabinete e, por exemplo, as tentativas de Laing em Kingsley Hall. Aí a justa medida é completamente perdida, porque eles fazem um Édipo na escala de toda uma comunidade; ser edipiano, isso quer dizer permanecer na justa medida da normalização triangular com papai-mamãe ou com o analista como numa conexão muda. Se você nunca se mete a ser edipiano até a abolição, até o narcisismo, até a pulsão de morte, nesse momento aí alguma coisa muda. A característica de todo movimento romântico é que eles partem de uma posição triangulada dos objetos parciais e, em dado momento, eles tomam a tangente: eles são de tal modo edipianos — Werther é de tal modo edipiano — que eles acabam por não sê-lo de maneira alguma. A questão toda está em ir até Werther. Você vê o que eu quero dizer?
Deleuze: Meu ponto de vista é também correto. Os dois são verdadeiros, parece-me.
Bellour: Eu vejo bem, mas é um pouco fácil.
Deleuze: Quando se diz: dado um sonho, você pode, por abstração, — de maneira alguma por separação real –, separar as direções representativas e as direções intensivas, isso quer dizer que um sonho nunca é uma coisa pura, mas que há uma direção edipiana e uma direção intensiva, não figurativa, e que é preciso encontrar o intensivo sob os fenômenos extensivos do sonho. {230}
Bellour: Sim, o que me parece importante é que há, no Anti-Édipo, dois movimentos relativamente a esse problema do não figurativo. Vocês dizem que o inconsciente é não-figurativo e, por outro lado, no final do livro, vocês veem muito bem que a arte — a arte classificada historicamente como não-figurativa — pode também ser a mais bela armadilha à cons.
Deleuze: Ah sim!
Bellour: Relativamente ao figural — e aí a noção de Lyotard me parece importante — no sentido em que o figural ultrapassaria a oposição figurativo/não-figurativo e talvez imagem/fantasma.
Deleuze: Salvo que figural é uma palavra ruim, não para Lyotard, mas para você.
Bellour: Não é que eu goste dela especificamente, mas ela indica uma direção de ultrapassamento.
Deleuze: A direção de ultrapassamento não é abstrato no sentido de arte abstrata, porque a arte abstrata me parece completamente representativa.
Bellour: Se há uma que me parece pega na armadilha da estrutura é bem ela.
Deleuze: A verdadeira diferença passa entre o intensivo e todo domínio de extensão, seja a extensão abstrata do espaço abstrato ou do espaço representativo.
Bellour: Sobre o intensivo, há uma coisa que me dá trabalho (e isso, aliás, desde Diferença e repetição, onde você já falava disso). Se há uma ciência da extensão, a da psicologia clássica, da psicanálise, o próprio termo de “ciência da intensidade” é pensável? A estrutura pode ser assinalada, medida, quantificada, articulada. Será que a intensidade pode ser determinada simplesmente por oposição ao fato de que ela não é a estrutura e que ela não se reduz a isso? Ou é alguma outra coisa que pode quantificá-la, pensá-la?
Deleuze: O problema é de tal modo complexo que não me sinto pronto para responder. Mas vejo várias direções. Sempre houve ensaios de ciência de intensidade; seria preciso ver historicamente. Isso me parece apaixonante, porque é uma tentativa perpetuamente sufocada, que ressurge todo tempo. Houve um ensaio muito importante de ciência real de intensidade na escolástica. As quantidades intensivas desempenharam um papel muito importante no nível da física e da metafísica. Em Duns Escoto há um ensaio de ciência das quantidades intensivas no nível dos modos e no {231} nível de Deus. Eu pulo etapas. Houve um ensaio de ciência das quantidades intensivas na energética do século 19, em pura física, distinguindo a natureza das quantidades intensivas e das quantidades extensivas. O último avatar do sucesso das ciências das quantidades extensivas são as ciências humanas. Por que encalhou uma ciência das quantidades intensivas? Uma ciência das quantidades intensivas implicaria uma conexão totalmente distinta entre sua própria história e a epistemologia. A epistemologia não é conciliável com tal ciência. Ela é inteiramente feita em função das quantidades extensivas. Tudo o que foi tentado no sentido das quantidades intensivas permanece marginal, seja a acupuntura, as tentativas de física intensiva, de linguística intensiva (do lado da escola de Hjelmslev), o papel das intensidades em música do lado de John Cage. Então, será que é possível uma ciência das quantidades intensivas? Vejo uma grande diferença entre as quantidades intensivas e as quantidades extensivas. De novo, sinto-me bergsoniano. Tomo um único caráter das quantidades intensivas. É muito simples reconhecer uma quantidade extensiva. O que você toma simultaneamente, num instante, é por definição uma unidade. A quantidade intensiva é o contrário. É uma multiplicidade que, num instante, você toma como multiplicidade. Quando você diz: faz 20 graus de calor, você não quer dizer 10 graus + 10 graus. Isso quer dizer: faz a multiplicidade 20 graus que apreendo num instante. Uma multiplicidade apreendida instantaneamente como multiplicidade é uma quantidade intensiva.
Bellour: Quando você utiliza o grau, você utiliza um sistema de codificação, é nesse sentido que eu falava do problema de uma ciência.
Deleuze: Voltamos ao tema de Félix. Assim como o sonho edipiano e as linhas não-edipianas estão ligadas, a intensidade e sua tradução em extensão estão ligadas. Uma ciência das quantidades intensivas seria uma ciência que chegaria a desprender um sistema numérico não extensivo. Isso foi feito mil vezes, e sufocado a cada vez. Os sistemas ordinais, os ensaios de interpretação de números ordinais, as tentativas de Russel, de Meinong… Não podemos colocar a questão: será que uma tal ciência é {232} possível? A questão que devemos colocar é esta: o que faz com que tal ciência tenha sido sufocada? No nível da psicanálise, parece-me que se reencontra o mesmo problema. Por que os estados vividos de um sujeito são traduzidos em fantasma?
Deleuze é interrompido por um telefonema e sai do recinto.
Guattari: Estou de acordo com o que diz Gilles, mas me sinto pouco à vontade, porque, no fundo, creio que o problema não se coloca. Uma ciência das quantidades intensivas é um absurdo. O problema é o do nexo de toda ciência com um campo político, um campo de desejo. Isso não pode ser uma ciência. Isso pode ser, sobretudo, uma política no seio da ciência, no seio da arte, da experimentação da vida cotidiana, do campo revolucionário. Alguém que propusesse uma ciência das quantidades intensivas se reencontraria na mesma posição de um epistemólogo que propusesse um tipo de metalinguagem das quantidades intensivas relativamente às ciências ou à política. Poderíamos muito bem imaginar um althusserianismo das quantidades intensivas com o mesmo resultado desastroso. É por isso que me sinto pouco à vontade. Para mim, as quantidades intensivas são o processo de desterritorialização, isto é, de conjunção de processos. Não pode haver aí uma ciência de conjunções de processos, pois é o caráter próprio de uma política.
Bellour: No artigo da Minuit sinto bem que quando, negativamente, não se pode mais associar, é que se pode ser conectado a uma máquina desejante, e não em virtude de uma dissociação positiva. Não é em virtude de um processo positivo de dissociação, mas de um processo negativo de não-associação.
Guattari: Absolutamente. Não há garantia alguma. Assim como não há garantia de um protocolo revolucionário, não há garantia de se estar numa quantidade intensiva na ordem das ciências, na ordem da arte.
Deleuze retorna.
Deleuze: Ele juntou caracteres às quantidades intensivas, não?
Guattari: Eu disse o contrário do que você havia dito.
Deleuze: Bem. Muito bem.
Bellour: Para Félix é um problema de política. Toda ciência lhe parece cair do lado de uma formalização contraditória com o próprio caráter das quantidades intensivas.{233}
Guattari: O problema das quantidades intensivas é que isso não pode ser uma ciência. É tanto o campo político quanto o campo desejante e quanto o campo da experiência revolucionária. Não se pode imaginar uma ciência que seria um tipo de epistemologia das quantidades intensivas, sobrecodificando todos os outros domínios. A constituição de um discurso científico nunca dará garantia alguma de uma consistência qualquer, de qualquer efeito que seja.
Deleuze: A epistemologia, seguramente não! Você, que fala constantemente em máquina de ciência, a máquina de ciência é de intensidade. A conexão signo-partícula é intensiva. A intensidade é a loucura da ciência.
Guattari: Como loucura da ciência? Como política da ciência, sobretudo!
Deleuze: Concordo. É o sistema signo-partícula. Não falamos dos buracos negros. São buracos de intensidade, quando os buracos são considerados como partículas mais rápidas que todas as outras partículas.
Bellour: Vamos à esquizoanálise. Sua realidade? Por quem? Para quem? Quando? Onde? Como? Até quando?
Guattari: Emprego uma fórmula que utilizo diante de semelhante questão: se alguma vez a esquizoanálise teve de existir, e já existe, mas não pode aparecer no quadro de uma escola, de uma sociedade constituída, de uma corrente, de pressões. Ela só pode ser a conjunção de diferentes experiências locais, de tomadas em consideração do desejo, quer se trate de um instrutor na sala de aula, de uma comunidade que muda seu modo de vida, de um psicoterapeuta em seu consultório, de um grupo de cuidadores num hospital psiquiátrico, de um grupo de militantes que queiram mudar as conexões em suas práticas. Se, num dado momento, há conjunção de diferentes práticas concernentes ao desejo, que fazem com que haja conjunção de uma crítica da burocratização da organização, crítica das conjunções pedagógicas opressivas, das conexões alienantes sugeridas por contratos psicoterapêuticos, então se constituirá uma atividade de análise que será uma interseção de toda uma série de lutas políticas. Ao mesmo tempo, a esquizoanálise será o fato de grupos ou de indivíduos que seriam simultaneamente militantes e analistas, — isto é, totalmente o contrário de pessoas que tirariam sua legitimidade da cooptação de uma sociedade de psicanálise, — {234} ou de gente que segmentaria o campo de sua prática privada, de sua prática terapêutica com leituras significantes relativamente ao campo de lutas revolucionárias. A está em toda parte em que essa questão se coloca, se é que ela se coloca.
Deleuze: Na esquizoanálise há princípios muito gerais. Não se trata de uma coisa que estaria na base de uma escola analítica. Do que se trata? Trata-se de um pequeníssimo número de princípios. Busca das intensidades. Não-figurativo. Inconsciente não-edipiano. Experimentação contra interpretação. Esquecimento contra anamnese. Supressão do eu {moi} e da subjetivação. Enquanto o psicanalista diria, sobretudo: retorne ao seu eu {moi}. Nós dizemos: você ainda não dissolveu suficientemente seu eu {moi}.
Guattari: Nada de neutralidade. Politização. Engajamento na própria estrutura em que as pessoas estão presas.
Deleuze: Não alguém metido a competente.
Bellour: Isso vem a dizer que não importa quem pode ser esquizoanalista.
Deleuze: Não, não importa quem.
Bellour: Não importa quem, mas todo mundo.
Deleuze: Todo mundo, que seja.
Guattari: Grupos militantes, grupos-sujeitos.
Deleuze: Creio que há um ponto essencial na diferença entre esquizoanálise e psicanálise. O golpe genial de Freud foi descobrir o inconsciente e ser inimigo do inconsciente. O inconsciente é o que é preciso reduzir pela análise. Félix diz muito bem que nosso problema é totalmente outro, contrário desse: em que condições pode-se produzir inconsciente? Aí, vê-se bem a diferença teórica e prática entre a psicanálise e nós. Para nós, não há inconsciente. Para a psicanálise, há um inconsciente. Você tem um no dorso, e eu quero interpretar você. Quanto a nós, dizemos: aí não há o inconsciente, e eu quero tentar fazê-lo em você. O problema é: em quais condições, alguém cujo inconsciente está por natureza sufocado, reprimido, e não recalcado, cujo inconsciente não existe, em quais condições esse inconsciente pode ser produzido. Vê-se que todas as instâncias sociais, aí compreendida a psicanálise, são feitas para impedir a produção de inconsciente. Quando Félix analisa as instâncias ditas terapêuticas da setorização, vê-se muito bem, em nível concreto, que tudo é feito para que o tipo {235} que vai ao psicanalista, por natureza, não tem chance alguma de falar. Ele pode falar, mas não tem chance alguma de fazer passar o menor enunciado no que ele diz. Isso porque é imediatamente tomado numa máquina na qual, seja lá o que ele diga, está sufocado de antemão. De antemão, ele está perdido. Por mais que ele grite, por mais que ele urre… É por isso que, quando Green nos censura por não levarmos em conta sofrimentos do neurótico, isso é bizarro, porque, por mais que o neurótico grite no divã, nada se passa. Não é que nada se passe por erro, é que o sistema da psicanálise é feito para que nada se passe.
Guattari: Tudo é assentado sobre uma rede preestabelecida na qual o apogeu da interpretação devém isto: tudo o que diz o tipo se limita ao silêncio do analista, pois é a mais forte interpretação. É mesmo uma intensidade de alta sedução, pois o silêncio do analista devém música celeste. É a resposta a tudo o que pode se apresentar. É uma música muito sedutora, pois é uma música de morte.
Deleuze: Sim, é uma música de morte.
Guattari: A pulsão de morte é o silêncio do analista. Então, essa efetuação suprema da análise no silêncio… e custa caro semelhante silêncio! Em vez disso, uma multiplicidade sendo dada, um tipo vem: o que se poderia colocar bem em conexão para que sua conexão com o desejo seja de outra natureza? Em vez de se colocar o problema: o que é preciso suprimir da situação? O que é preciso reduzir? Para nós é: o que é preciso complexificar? Como tornar mais complexo os complexos, por conexão real de máquinas reais para que haja outras engrenagens, outras ramificações? Qual é o papel de um grupo analítico ou de um analista? É o de ajudar a decifrar as potencialidades de conexões. Registrar, marcar que certas coisas poderiam ser experimentadas mais tarde, que talvez o próprio analista pode colocar aí algo seu, pode encontrar engrenagens, pode intervir.
Bellour: Alguém ou um grupo vem ver quem? Onde?
Guattari: Pouco importa. Esse não é o problema. Isso pode ser uma escola, um grupo de militantes, um consultório de grupo ou um tipo sozinho. Não é porque sendo grupo será melhor. Um grupo pode ter a pior política. Pode-se ver grupos de psicoterapia familiar.
Bellour: A partir daí, você sente como total a permissividade? {236}
Deleuze: Total.
Bellour: No sentido de que qualquer um possa se erigir, produzir-se como esquizoanalista?
Deleuze: Completamente, pois Félix diz muito bem: a diferença de natureza não está entre análise dual e análise de grupo. Ele tem completamente razão. A diferença está totalmente alhures. Por exemplo, o MLF nt faz interpretação maciça, abominável. Não pára de interpretar. Em troca, concebe-se uma conexão dual que não seja interpretativa. E bem mais, pensa-se que o incesto irmão/irmã é uma escapatória esquizoanalítica completamente diferente de toda conexão edipiana. Isso pode verter no Édipo, se a irmã é o substituto da mãe, e isso pode abrir coisas fantásticas. Aí não há regra alguma. A regra está no nível da interpretação: será que eu interpreto ou será que eu não interpreto? É por isso que não são princípios abstratos. Ora, não interpretar implica uma ascese, uma disciplina fantástica, uma espécie de yoga…
Guattari: uma permanente microluta de classe.
Deleuze: Desde que haja interpretação, há merda. Ah, você fez isso? Por quê? É o contrário da liberdade. A velha oposição determinista/liberdade deve ser transposta em interpretação/experimentação. Experimentação não quer dizer: eu jogo com você. Isso quer dizer: eu tento alguma coisa com você, que de modo algum é uma renovação relativamente à sua infância. Mais uma vez, nossa dualidade não passa por infância/adulto. Quem é esquizoanalista? Qualquer um em relação a qualquer um, contanto que isso não passe pelo contrato comum. Se você pergunta: qual é a posição de Félix relativamente à sua situação de analista? Ela é análoga à minha posição de professor. Fazer passar o máximo de coisas possíveis através de uma estrutura já existente, apelando para o que as pessoas fazem em outros lugares. Elas não nos esperaram. Quando dizemos que não queremos fazer escola, é claro que fazê-lo seria uma cagada tal que não poderíamos fazer mais nada.
Guattari: Não somos capazes disso.
Deleuze: Não somos capazes, não estamos afim. Não é nosso caso. Em troca, quanta gente em seu canto inventa esquizoanálise, é muito evidente.
Bellour: Vocês promovem, como sendo produtivo, unicamente a possibilidade de uma espécie de poli-explosão, o fato de que isso possa se passar {237} nos quatro cantos da sociedade e da geografia, sem qualquer possibilidade de racionalização?
Deleuze: Nós somos os primeiros a anunciar alguma coisa que se passa e que não nos esperou, a saber que as coisas não mais passarão pela leitura de Freud e da psicanálise, mas passarão pela experimentação, o que os norte-americanos fazem há muito tempo: as coisas se farão pela não-cultura e não pela cultura.
Bellour: Tenho uma questão relativamente às crianças. A família: como organizar sua destruição? As crianças: como elevá-las? Será preciso fazê-lo? Como e com quem?
Guattari: Quem se importa.
Deleuze: Não se sabe. A questão está regulamentada. Nenhuma ideia a ser dada. Salvo o que dissemos anteriormente, que me parece muito importante: o tempo em que a criança faz suas lembranças edipianas de infância é o mesmo tempo em que ela leva sua infância não-edipiana.
Bellour: Eu dizia isso relativamente à fatalidade do sistema no qual as crianças nos tomam e são tomadas.
Deleuze: Não há fatalidade do sistema no qual elas estão tomadas. O que elas fazem? Elas sonham com a bomba. Julien, meu filho, com o quê ele sonha? Ele sonha com petardos, explosão, e isso não é edipiano.
Bellour: Elas têm problemas com seu papai, e isso é edipiano.
Deleuze: É porque elas fabricam suas lembranças de criança ao mesmo tempo. É preciso distinguir bloco de infância — fórmula de Félix — e lembrança de infância. Então, Freud, os freudianos e os dissidentes de Freud têm posto sempre a questão: não há lembranças de infância que vêm após a infância, mas que são retrojetadas?
Guattari: As lembranças-telas…
Deleuze: É completamente idiota isso.
Guattari: Há tão somente lembranças-telas…
Deleuze: … e elas são fabricadas no próprio momento. Então, quando meu filho me diz: “eu quero explodir você, papai”, ou quando minha filha dorme no meu leito, é edipiano, os psicanalistas têm razão. Isso já é lembrança de infância. Ela o fabrica ao mesmo tempo. Ela já está na lembrança. É para quando ela terá trinta anos: ah, eu dormia no leito de papai! {238}
Guattari: Ela prepara seu porvir.
Bellour: Como se pode batalhar para mudar isso?
Deleuze: Não é preciso batalhar para mudar isso.
Guattari: É preciso fazer outra coisa.
Deleuze: O que conta é liberar os blocos de infância o máximo possível, em oposição às lembranças de infância, uma vez dito que as lembranças de infância se fazem ao mesmo tempo que os blocos de infância. Os blocos de infância, é quando meu filho diz: “eu quero explodir o liceu Chaptal”, e não “eu quero explodir papai”, pois são os dois ao mesmo tempo que ele quer. Aí, também, há sempre essa mistura, essa ramificação no campo social que os psicanalistas ignoram completamente. E quando ele diz: quero explodir o liceu Chaptal, ele não quer dizer: quero explodir papai. E quando minha filha dorme em meu leito, ela não quer dizer: quero fazer amor com papai. Ela quer dizer isso, mas ela quer dizer outra coisa também. Eu quero fazer por mim alguma coisa, quero fazer minha própria vida etc.
Bellour: E você pensa que não é preciso lutar contra um…?
Deleuze: Seguramente não.
Bellour: … mas, a partir de um, liberar o outro?
Deleuze: Evidentemente.
Bellour: … e tentar lutar certamente muito contra um o faz ressurgir tanto mais?
Deleuze: Completamente. O problema não está aí, com efeito. Que seja numa família unida ou desunida, no internato, em sociedade, os mesmos dois aspectos se apresentam. Para cada caso, encontrar a saída, se possível.
Bellour: O que há de surpreendente é que na experiência cotidiana, material, o que mais fortemente se sofre, o que mais se percebe como atual, paradoxalmente, na conexão com a criança, é infelizmente o que salta da lembrança.
Deleuze: Evidentemente. Pois a sociedade toda é feita para isso. A sociedade toda é feita para dizer à criança: é com seu papai e com sua mãe que você tem de se haver. Não é de admirar. O liceu é bom, é sagrado e se você o ataca é por causa do seu pai e de sua mãe. A psicanálise serviu antes de tudo para isso. A criança é inteiramente orientada rumo a isso: o professor é a imagem do seu pai.
Bellour: Você não pensa que a família, não a família simbólica, mas a família real, favoreça de modo incrível esses processos? {239}
Deleuze: Sim, evidentemente. Mas, com isso, ela preenche tão somente sua função social. Sua função social é derivar toda agressividade política da criança, uma vez dito que a criança é política desde seu nascimento. A criança é politizada desde seu nascimento, enquanto criança pobre ou rica. Ela é sexuada política. Freud diz: a criança é sexuada, mas ela não é política. Não a torne política. Quanto a nós, dizemos: ela é sexuada política. Não há sexualidade sem política. Ser sexuado, isso quer dizer viver como rico ou como pobre. Discernir uma menina é discerni-la como filha do patrão ou do barman etc. Não dizemos outra coisa. Se a psicanálise não atinge isso, então a psicanálise é uma merda. A sexualidade de uma criança não está no quadro familiar, é a criada, a mulher rica, a mulher pobre. Desde que nasce, ela discerne isso. Portanto, ela é sexuada política. A esquizoanálise é feita não importa onde, não importa quando, com não importa quem, sem contrato, sem transferência.