DELEUZE E GUATTARI EXPLICAM-SE (1972) [debate]

Mesa redonda com François Châtelet, Pierre Clastres, Roger Dadoun, Serge Leclaire, Maurice Nadeau, Raphaël Pividal, Pierre Ros, Henri Torrubia, publicado em La Quinzaine littéraire, nº 143, 16-30 de junho de 1972, pp.15-19; e A Iha Deserta (Deleuze).

A intenção do diretor de La Quinzaine littéraire, Maurice Nadeau, com a colaboração do filósofo François Châtelet, foi colocar os autores de O Anti-Édipo em confronto com várias disciplinas das ciências humanas, a psicanálise (com Roger Dadoun e Serge Leclaire), a psiquiatria (com Henri Torrubia), sociologia (com Raphaël Pividal), a filosofia (com François Châtelet) e a etnologia (com Pierre Clastres).


Maurice Nadeau: Com certeza, Deleuze e Guattari desejam que esta discussão comece com perguntas. Vamos, no entanto, pedir-lhes que, por um lado, exponham rapidamente a tese do seu livro, e que nos digam, em seguida, de que modo se efetuou a sua colaboração.

Félix Guattari: Esta colaboração não é o resultado de um simples encontro entre dois indivíduos. Para além do concurso das circunstâncias, foi também todo um contexto político que aí nos conduziu. Tratou-se, na origem, menos de pôr em comum um saber que o acumular das nossas incertezas, e mesmo de uma certa confusão ante o aspecto que os acontecimentos tinham assumido após Maio de 68.

Fazemos parte de uma geração cuja consciência política nasceu no entusiasmo e ingenuidade da Libertação, com a sua mitologia esconjuratória do fascismo. E as questões deixadas em suspenso por essa outra revolução abortada que foi Maio de 68 desenvolveram-se para nós segundo um contraponto tanto mais perturbador quanto nos inquietamos, como tantos outros, com os amanhãs que nos preparam e que bem poderiam cantar os hinos de um fascismo de nova trituração que nos fará lamentar o dos bons velhos tempos.

O nosso ponto de partida foi considerar que na altura desses períodos cruciais qualquer coisa da ordem do desejo se manifestou à escala do conjunto da sociedade, e depois foi reprimido, tanto pelas forças do poder como pelos partidos e sindicatos ditos operários e, até um certo ponto, pelas próprias organizações esquerdistas.

Sem dúvida, seria preciso remontar ainda mais atrás! A história das revoluções traídas, a história da traição do desejo das massas, está em condições de se identificar à história do movimento operário. Por culpa de quem? De Béria, de Stalin, de Khrutchev! Não era o bom programa, a boa organização, a boa aliança. Não se tinha relido suficientemente Marx no texto… Isto é indubitável! Mas a evidência bruta permanece: a revolução era possível, a revolução socialista estava ao alcance da mão, existe verdadeiramente, não é um mito tornado inconsistente pelas transformações das sociedades industriais.

Em certas condições as massas exprimem a sua vontade revolucionária, os seus desejos varrem todos os obstáculos, abrem horizontes inauditos, mas os últimos a se darem conta disso são as organizações e os homens que se supõe representá-las. Os dirigentes traem! É evidente! Mas por que é que os dirigidos continuam a escutá-los? Não será consequência de uma cumplicidade inconsciente, de uma interiorização da repressão, operando em níveis sucessivos, do Poder aos burocratas, dos burocratas aos militantes e dos militantes às próprias massas? Vimos bem isso após Maio de 68.

Felizmente, a recuperação e os boatos falsos pouparam algumas dezenas de milhares de pessoas – talvez mais – que estão agora vacinadas contra os delitos das burocracias de qualquer categoria, e que concordam em ripostar tanto às imundícies repressivas do Poder e do patronato como às suas manobras de conciliação, de participação, de integração, que se apóiam na cumplicidade das organizações operárias tradicionais.

É preciso reconhecer que as atuais tentativas de renovar as formas de luta popular só com dificuldade se soltam do aborrecimento e de um escotismo revolucionário, de que o mínimo que se pode dizer é que não se preocupa demasiado com a libertação sistemática do desejo! “O desejo, sempre o desejo, não sabem dizer mais nada!”. Isto acaba por irritar as pessoas sérias, os militantes responsáveis! É claro que não vamos recomendar que se leve a sério o desejo. Tratar-se-ia mesmo mais de minar o espírito sério, a começar pelo domínio das questões teóricas. Uma teoria do desejo na história não se deveria apresentar como algo de muito sério. E, deste ponto de vista, talvez O Anti-Édipo seja ainda um livro demasiado sério, demasiado intimidante. O trabalho teórico deveria deixar de ser ocupação de especialistas. O desejo de uma teoria e os seus enunciados deveriam inserir-se na direção dos acontecimentos e na enunciação coletiva das massas. Para conseguir isso, será preciso que se forje uma outra raça de intelectuais, uma outra raça de analistas, uma outra raça de militantes, em que os diferentes gêneros se combinariam e fundamentariam uns aos outros.

Partimos da ideia de que não se devia considerar o desejo como uma superestrutura subjetiva mais ou menos no eclipse. O desejo não pára de trabalhar a história, mesmo nos seus piores períodos. As massas alemãs acabaram por desejar o nazismo. Depois de Wilhelm Reich não é possível deixar de enfrentar esta verdade. Em certas condições, o desejo das massas pode voltar-se contra os seus próprios interesses. Quais são essas condições? A questão toda é essa.

Para lhe dar resposta, pareceu-nos que não nos podíamos contentar em prender um vagão freudiano ao comboio do marxismo-leninismo. É preciso, em primeiro lugar, desfazermo-nos de uma hierarquia estereotipada entre uma infraestrutura opaca e superestruturas sociais e ideológicas concebidas de tal modo que recalcam as questões do sexo e da enunciação para o lado da representação, o mais afastado possível da produção. As relações de produção e as relações de reprodução participam no mesmo par das forças produtivas e das estruturas antiprodutivas. Trata-se de fazer passar o desejo para o lado da infraestrutura, para o lado da produção, enquanto se fará passar a família, o eu e a pessoa para o lado da antiprodução. É o único meio de se evitar que o sexual fique definitivamente separado do econômico.

Existe, segundo pensamos, uma produção desejante que, anteriormente a toda atualização na divisão familiar dos sexos e das pessoas e na divisão social do trabalho, investe as diversas formas de produção de fruição e as estruturas estabelecidas para as reprimir. Sob diferentes regimes, é a mesma energia desejante que encontramos na face revolucionária da história, com a classe operária, a ciência e as artes, e que reencontramos na face das relações de exploração e do poder de Estado, enquanto ambas pressupõem uma participação inconsciente dos oprimidos.

Se é verdade que a revolução social é inseparável de uma revolução do desejo, enquanto a questão desloca-se: em que condições poderá a vanguarda revolucionária libertar-se da sua cumplicidade inconsciente com as estruturas repressivas e frustrar as manipulações do desejo das massas pelo poder, situação esta em que elas chegam a “combater pela sua servidão como se da sua salvação se tratasse”? Se a família e as ideologias familistas exercem, como pensamos, uma função nodal neste assunto, então como apreciar a função da psicanálise que, tendo sido a primeira a abrir tais questões, foi igualmente a primeira a tornar a fechá-las ao promover um mito moderno da repressão familista com o Édipo e a castração?

Para avançar nesta direção, parece-nos necessário abandonar uma abordagem do inconsciente através da neurose e da família para adotar o das máquinas desejantes, mais específico do processo esquizofrênico – e que pouco tem que ver com o louco do asilo.

A partir daí, impõe-se uma luta militante contra as explicações redutoras e contra as técnicas de sugestão adaptadoras com base na triangulação edipiana. Renunciar à captação compulsiva de um objeto completo, simbólico de todos os despotismos. Deixar-se deslizar para o lado das multiplicidades sociais. Parar de estabelecer uma oposição entre o homem e a máquina, cuja relação, pelo contrário, é constitutiva do próprio desejo. Promover uma outra lógica, uma lógica do desejo real, estabelecendo o primado da história sobre a estrutura; uma outra análise, liberta do simbolismo e da interpretação; e um outro militantismo, fornecendo os meios da sua própria libertação dos fantasmas da ordem dominante.

Gilles Deleuze: Quanto à técnica deste livro, escrever a dois não constituiu problema particular, mas teve uma função precisa de que progressivamente nos apercebemos. Uma coisa muito chocante nos livros de psiquiatria ou mesmo de psicanálise, é a dualidade que os atravessa, entre o que um suposto doente diz e o que aquele que o trata diz sobre o doente. Entre o “caso” e o comentário ou a análise do caso. Logos contra pathos: supõe-se que o doente diz qualquer coisa e que aquele que o trata diz o que isso quer dizer na ordem do sintoma ou do sentido. Isto permite todos os esmagamentos do que o doente diz, toda uma seleção hipócrita.

Não quisemos fazer um livro de louco, mas fazer um livro em que já não se sabia, em que já não havia lugar para se saber quem falava precisamente, o que trata, o tratado, um doente não tratado, um doente presente, passado ou futuro.

É por isso mesmo que nos servimos tanto dos escritores, dos poetas: é preciso ser muito esperto para dizer se falam como doentes ou como médicos – doentes ou médicos da civilização. Ora, bizarramente, se tentamos superar esta dualidade tradicional foi precisamente porque escrevíamos a dois. Nenhum de nós era o louco ou o psiquiatra, era preciso sermos dois para desencadear um processo que não se reduzisse nem ao psiquiatra nem ao seu louco, nem ao louco e ao seu psiquiatra.

O processo é aquilo a que chamamos o fluxo. Ora, ainda aí, o fluxo era uma noção de que precisávamos como noção qualquer não qualificada. Isso pode ser um fluxo de palavras, de ideias, de merda, de dinheiro, pode ser um mecanismo financeiro ou uma máquina esquizofrênica: isso supera todas a dualidades. Sonhávamos este livro como um livro-fluxo.

Maurice Nadeau: Desde o vosso primeiro capítulo há, precisamente, essa noção de “máquina desejante”, que fica obscura para o profano e que gostaríamos de ver definida. Tanto mais que ela tem resposta para tudo, serve para tudo…

Gilles Deleuze: Sim, nós damos à máquina uma grande extensão: em relação com os fluxos. Definimos a máquina como qualquer sistema de cortes de fluxos. Assim, tanto falamos de máquina técnica, no sentido usual da palavra, como de máquina social, ou de máquina desejante. É que, para nós, máquina não se opõe de modo algum nem ao homem nem à natureza (é preciso realmente boa vontade para nos objetar que as formas e as relações de produção não são máquinas). Por outro lado, máquina não se reduz ao mecanismo. O mecanismo designa certos procedimentos de certas máquinas técnicas; ou então uma certa organização de um organismo. Mas o maquinismo é uma coisa completamente diferente: é, mais uma vez, qualquer sistema de corte de fluxo que supera simultaneamente o mecanismo da técnica e a organização do organismo, quer seja na natureza, na sociedade ou no homem.

Máquina desejante, por exemplo, é um sistema não-orgânico do corpo, e é neste sentido que falamos de máquina molecular ou de micromáquinas. Mas precisamente, em relação à psicanálise, nós acusamos de duas coisas: de não compreender o que é o delírio, porque não compreende que o delírio é o investimento de um campo social tomado em toda a sua extensão; e de não compreender o que é o desejo, porque não vê que o inconsciente é uma fábrica e não uma cena de teatro.

O que é que resta se a psicanálise não compreende nem o delírio nem o desejo? Estas duas acusações constituem apenas uma: o que nos interessa é a presença das máquinas de desejo, micromáquinas moleculares, nas grandes máquinas sociais molares. De que modo agem e funcionam umas nas outras.

Raphael Pividal: Se tivessem de definir o vosso livro em relação ao desejo, eu pergunto: como é que este livro responde ao desejo? A que desejo? Desejo de quem?

Gilles Deleuze: Não é enquanto livro que ele poderia responder ao desejo, é antes em função daquilo que o rodeia. Um livro, em si mesmo, não tem valor. Sempre os fluxos: há muitas pessoas que trabalham em sentidos vizinhos, em outros domínios. E depois, há as gerações mais novas: com eles é duvidoso que se fixe um certo tipo de discurso, tanto epistemológico como psicanalítico ou ideológico, de que todos começam a estar fartos.

Nós dizemos: aproveitem-se do Édipo e da castração, não durarão muito tempo. Até agora tem-se deixado a psicanálise tranquila: atacava-se a psiquiatria, o hospital psiquiátrico, mas a psicanálise parecia intocável, não comprometida. Tentamos mostrar que a psicanálise é pior do que o hospital, precisamente porque funciona em todos os poros da sociedade capitalista e não em locais especiais de enclausuramento. É que é profundamente reacionária na sua prática e na sua teoria e não só na sua ideologia. E que preenche funções precisas.

Félix diz que o nosso livro se dirige a pessoas que têm agora entre 7 a 15 anos. Em ideal, porque de fato é ainda muito difícil, muito cultivado e opera demasiados compromissos. Não o soubemos fazer suficientemente direto, claro. No entanto, faço notar que o primeiro capítulo, que passa por difícil a muitos leitores favoráveis, não supõe qualquer conhecimento prévio. Em todo caso, se um livro responde a um desejo, é porque já existe muita gente que está farta de um certo tipo de discurso corrente, é porque participa de um reagrupamento de trabalho, de ressonâncias entre trabalhos ou desejos. Em suma, só politicamente um livro pode responder a um desejo, fora do livro. Por exemplo, uma associação de coléricos frequentadores habituais da psicanálise, não estaria mal para começar.              

François Châtelet: O que me parece importante é a irrupção de um texto como este entre os livros de filosofia (porque este livro é pensado como livro de filosofia). Ora, O Anti-Édipo rompe com tudo. Em primeiro lugar, de uma maneira exterior, pela própria “forma” do texto: há “palavrões” pronunciados desde a segunda linha, como por provocação. Julga-se, de início, que isso não vai durar muito tempo, e afinal dura. Trata-se sempre disso: de “máquinas acopladas”¹, e as “máquinas acopladas” são singularmente obscenas ou escatológicas.

Além disso, pressenti essa irrupção como materialista. Há muito tempo não nos acontecia isso. É preciso dizer que a metodologia começa a chatear-nos. Com o imperialismo da metodologia quebra-se todo o trabalho de investigação e de aprofundamento. Eu caí nesse capricho e falo com conhecimento de causa. Em resumo, se falo de irrupção materialista é por pensar em Lucrécio. Não sei se isto vos agrada. Demais ou de menos.

Gilles Deleuze: Se isso é verdade, é perfeito. Isso seria maravilhoso. Em todo caso não há em nosso livro problema metodológico algum. Também não há problema algum de interpretação: porque o inconsciente não quer dizer nada, porque as máquinas não querem dizer nada, contentam-se em funcionar, em produzir e em se desarranjar, porque apenas procuramos de que modo qualquer coisa funciona no real.

Também não há problema epistemológico algum: não nos interessa nada um retorno a Freud ou a Marx; se nos disserem que compreendemos mal Freud, não o iremos discutir, diremos que tanto pior, há tantas coisas para fazer. É curioso como a epistemologia sempre escondeu uma instauração de poder, uma espécie de tecnocratismo universitário ou ideológico. Nós, de nossa parte, não acreditamos em especificidade alguma da escrita ou mesmo do pensamento.

Roger Dadoun: Até agora a discussão desenvolveu-se – para empregar uma dicotomia que é fundamental na vossa interpretação – a um nível “molar”, ou seja, no nível dos grandes conjuntos conceptuais. Não conseguimos transpor o passo que nos conduziria ao nível “molecular”, isto é, às micro-análises, graças às quais se poderia verdadeiramente conceber o modo como “maquinaram” o vosso trabalho. Isso seria particularmente precioso para a análise – já a esquizoanálise? – das peças políticas do texto. Gostaríamos, nomeadamente, de saber como o fascismo e Maio de 68, “nota” dominante do livro, intervieram não “molarmente”, o que seria demasiado banal, mas “molecularmente”, na fabricação do texto.

Serge Leclaire: Tenho justamente a impressão de que o livro está de tal maneira maquinado que qualquer intervenção “num nível molecular” será digerida pela máquina do livro.

Julgo que a vossa intenção, aqui confessada, “de um livro em que toda a dualidade possível fosse suprimida”, é uma intenção que foi atingida, para além mesmo das vossas esperanças. Isso coloca os vossos interlocutores numa situação que só lhes deixa, por muito pouco clarividentes que sejam, a perspectiva de serem absorvidos, digeridos, atados de pés e mãos, em suma, anulados como tais pelo admirável funcionamento da dita máquina.

Assim, há uma dimensão que me levanta problemas e sobre a qual de boa vontade vos interrogaria: qual é a função de um livro-coisa como este, pois que de início parece ser perfeitamente totalizante, absorvente, de natureza a integrar, a absorver todas as questões que se poderiam tentar abrir? Em primeiro lugar, parece-me, de colocar o interlocutor entalado, só pelo fato de falar e pôr em questão.

Façamos já a experiência, se o quiserem, e vamos ver o que é que acontece.

Uma das peças essenciais da máquina desejante é, se bem vos compreendi, “o objeto parcial” que, para quem ainda não conseguiu libertar-se completamente do uniforme psicanalítico, evoca um conceito psicanalítico, o conceito kleiniano de objeto parcial. Mesmo que se pretenda, como vocês o fazem com um certo humor, “troçar dos conceitos”.

Há nesta utilização do objeto parcial, como peça essencial da máquina desejante, algo que me parece muito importante; vocês também tentam, apesar de tudo, “defini-lo”; vocês dizem: o objeto parcial só se pode definir positivamente. É isso que me espanta. Em primeiro lugar, em que é que a qualificação positiva difere essencialmente da imputação negativa que denunciam?

Sobretudo: a menor experiência psicanalítica mostra que o objeto parcial só pode ser definido “diferentemente” e “em relação ao significante”.

Aqui a vossa “coisa” só pode, é caso de dizer, “falhar” o seu objeto (veja só, é a falta banida que reaparece!): seja que escrita for, como um livro, dá-se para um texto significante, que diria o verdadeiro sobre o verdadeiro, colando-se a um suposto real, muito ingenuamente. Como se isso fosse possível sem distância nem mediação. Cuidadosamente expurgado (em intenção) de toda a dualidade. Pois seja. Uma coisa desta espécie pode ter a sua função; julgá-lo-emos pelo uso. Mas no que se refere ao desejo de que pretende, melhor do que a psicanálise, trazer à sociedade a boa nova, só pode, torno a dizê-lo, falhar o seu objeto.

Creio que a vossa máquina desejante, que só deveria funcionar ao desarranjar-se, ou seja, com as suas avarias, com as suas falhas de motor, é tornada completamente inofensiva por vocês próprios, em virtude do objeto “positivado”, da ausência de toda dualidade e de toda a “falta”, vai trabalhar como… um relógio suíço.

Félix Guattari: Não creio que se deva situar o objeto parcial positiva ou negativamente, mas antes como participante de multiplicidades não totalizáveis. É sempre de modo ilusório que ele se inscreve em referência a um objeto completo como o corpo próprio ou mesmo como o corpo fragmentado. Ao abrir a série dos objetos parciais, para além do seio e das fezes, à voz e ao olhar, Jacques Lacan marcou a sua recusa em fecha-los e rebate-los sobre o corpo. A voz e o olhar escapam ao corpo, por exemplo, colocando-se cada vez mais na adjacência das máquinas do audiovisual.

Deixo aqui de lado a questão de saber em que medida a função fálica – enquanto sobrecodifica, segundo Lacan, cada um dos objetos parciais – não lhes restitui uma certa identidade e, ao lhes distribuir uma falta, não apela para uma outra forma de totalização, desta vez numa ordem simbólica. Seja como for, parece-me que Lacan se aplicou a libertar o objeto de desejo de todas as referências totalizantes que o podiam ameaçar: desde o estado do espelho, a libido escapava à “hipótese substancialista”, e a identificação simbólica partia de uma referência exclusiva ao organismo; articulada com a função da fala e com o campo da linguagem, a pulsão quebrava o quadro dos tópicos fechados sobre si mesmos; enquanto a teoria do objeto “a” contém talvez em germe a liquidação do totalitarismo do significante.

Ao tornar-se objeto “a”, o objeto parcial destotalizou-se, desterritorializou-se, distanciou-se definitivamente de uma corporeidade individuada; está em condições de cair para o lado das multiplicidades reais e de se abrir aos maquinismos moleculares de qualquer natureza que trabalham a história.

Gilles Deleuze: É de fato curioso que Leclaire diga que a nossa máquina funciona demasiado bem, que é capaz de digerir tudo. Porque foi isso mesmo que objetamos à psicanálise, e é curioso que um psicanalista nos censure isso por sua vez. Digo isto porque temos com Leclaire uma relação particular: há um texto seu sobre “a realidade do desejo” que, antes de nós, vai no sentido de um inconsciente-máquina e que descobre elementos últimos do inconsciente que já não são nem figurativos nem estruturais.

Parece que o nosso acordo não é total, visto que Leclaire nos censura por não compreendermos o que é o objeto parcial. Diz que defini-lo positiva ou negativamente não tem importância porque, de qualquer modo, ele é outra coisa, ele é “diferente”. Mas não é tanto a categoria de objeto, mesmo parcial, que nos interessa. Não é certo que o desejo tenha alguma coisa a ver com objetos, mesmo parciais. Nós falamos de máquinas, de fluxos, de extrações, desligamentos, de resíduos. Fazemos uma crítica do objeto parcial. E não há dúvida que Leclaire tem razão em dizer que não tem assim tanta importância definir o objeto parcial positiva ou negativamente. Mas só tem razão teoricamente. Porque, se considerarmos o funcionamento, se perguntarmos o que a psicanálise faz do objeto parcial, como é que o faz funcionar, então já não é indiferente saber se ele entra numa função positiva ou negativa.

A psicanálise serve-se ou não do objeto parcial para assentar as suas ideias de falta, de ausência ou de significante da ausência e para fundar as suas operações de castração? É a psicanálise que, mesmo quando invoca as noções de diferença ou de diferente, se serve do objeto parcial de um modo negativo para soldar o desejo a uma falta fundamental. [Eis o que]² censuramos à psicanálise: o elaborar, com a falta e a castração, uma concepção piedosa, uma espécie de teologia negativa que comporta um apelo à resignação infinita (a Lei, o impossível etc.). É contra isso que propomos uma concepção positiva do desejo, como desejo que produz, e não desejo que falta. Os psicanalistas são ainda piedosos.

Serge Leclaire: Não recuso a vossa crítica, assim como, aliás, não reconheço sua pertinência. Sublinho simplesmente que parece fundar-se na hipótese de um real um pouco … totalitário: sem significante, sem defeito, sem clivagem, sem castração. Em última análise, pergunta-se o que vem fazer a “verdadeira diferença” que aparece na vossa escrita. É conveniente, dizem vocês, situá-la não entre… vejamos…

Gilles Deleuze: entre o imaginário e o simbólico…

Serge Leclaire: … entre o real, por um lado, que apresentam como o solo, a subjacência, e qualquer coisa como superestruturas que seriam o imaginário e o simbólico. Ora, penso que a questão da “verdadeira diferença” é, de fato, a questão que está posta no problema do objeto. Há pouco, Félix, ao referir-se aos ensinamentos de Lacan (foste tu que remeteste para isso), situava o objeto “a” em relação ao “ego”, à pessoa etc..

Félix Guattari: … à pessoa e à família…

Serge Leclaire: Ora, o conceito de objeto “a” em Lacan faz parte de um quaternário que compreende o significante, pelo menos duplo (S1 e S2), e o sujeito (S barrado). A verdadeira diferença, se se retoma esta expressão, deve ser situada entre o significante, por um lado, e o objeto “a” por outro.

Eu aceito que nunca convenha, por razões piedosas ou ímpias, não sei, empregar o termo significante. Seja como for, não vejo como podem recusar aí qualquer dualidade e promover o objeto “a” como autosuficiente, como o lugar-tenente de um Deus ímpio. Não creio que possam sustentar uma tese, um projeto, uma ação, uma “coisa”, sem introduzirem em algum lado uma dualidade e tudo o que acarreta.

Félix Guattari: Não estou de modo algum certo que o conceito de objeto “a” em Lacan seja mais do que um ponto de fuga, do que um escape, precisamente ao caráter despótico das cadeias significantes.

Serge Leclaire: O que a mim interessa, verdadeiramente, e que tento articular de um modo evidentemente diferente do vosso, é saber de que modo se desenvolve o desejo na máquina social. Penso que não se pode fazer a economia de um enfoque preciso da função do objeto. Será então necessário precisar as suas relações com os outros elementos em jogo na máquina, elementos propriamente “significantes” (simbólicos ou imaginários, se preferirem). Essas relações não existem num só sentido, isto é, os elementos “significantes” têm efeitos de retorno sobre o objeto.

Se se quiser compreender qualquer coisa daquilo que, da ordem do desejo, se passa na máquina social, temos de passar por este desfile que constitui, neste momento, o objeto. Não basta afirmar que tudo é desejo, é preciso dizer como é que isso se passa. Para terminar, acrescentarei uma pergunta: para que é que serve a vossa “coisa”?

Que relação pode haver entre a fascinação por uma máquina sem falha e a animação verdadeira de um projeto revolucionário? É a questão que vos ponho, no nível da ação.

Roger Dadoun: A vossa “máquina” – ou a vossa “coisa” – de qualquer modo trabalha. Trabalha muito bem, por exemplo, em literatura, para uma captação do fluxo ou da circulação “esquizo” no Heliogabale de Artaud; trabalha para avançar mais no jogo bipolar – equizóide/paranóide em um autor como Romain Rolland; trabalha para uma psicanálise do sonho – para o sonho de Freud chamado “l’injection faite à Irma”, que é teatro no sentido quase técnico do termo, com encenação, grande plano etc., é cinema. Seria também preciso ver como é que isso trabalha no lado da criança…

Henri Torrubia: Como trabalho em um serviço psiquiátrico, queria sobretudo acentuar um dos pontos nodais das vossas teses sobre a esquizoanálise. Vocês afirmam, com argumentos para mim muito esclarecedores, a primazia do investimento e a essência produtiva e revolucionária do desejo. Isto levanta problemas teóricos, ideológicos e práticos tais que é preciso esperarem uma verdadeira conspiração.

Sabe-se, de qualquer maneira, que empreender uma psicologia analítica em um estabelecimento psiquiátrico, sem a possibilidade de “cada um” repor constantemente em questão a própria rede institucional é ou tempo perdido ou, no melhor dos casos, não ir muito longe. Na conjuntura atual, aliás, nunca se pode ir muito longe. Como isto é assim, quando surge um conflito essencial em qualquer lado, quando qualquer coisa se desarranja, e que é precisamente indício de que qualquer coisa da ordem da produção desejante pode aparecer e que, bem entendido, põe em questão o campo social e as suas instituições, vemos imediatamente nascer reações de pânico e organizarem-se resistências. Essas resistências assumem formas diversas: reuniões de síntese, de coordenação, ajustamentos etc., e, mais sutilmente, a interpretação psicanalítica clássica com o seu habitual efeito de esmagamento do desejo tal como vocês o concebem.

Raphael Pividal: Serge Leclaire, você fez várias intervenções. Elas estão um pouco deslocadas em relação ao que Guattari disse. Porque o livro apresenta de um modo fundamental a prática da análise, a vossa profissão num certo sentido, e você tomou o problema de uma maneira parcial. Você apenas o reteve para o afogar na sua linguagem, que é a das teorias que desenvolveu e em que privilegia o fetichismo, ou seja, precisamente o parcial. Refugia-se nesse gênero de linguagem para levar Deleuze e Guattari a detalhes. De tudo o que n’O Anti-Édipo diz respeito ao nascimento do Estado, à esquizofrenia, ao papel do Estado, você não diz nada. Da vossa prática de todos os dias não diz nada. Do verdadeiro problema da psicanálise, o do doente, você não diz nada. Evidentemente, não é de você, Serge Leclaire, que se faz o processo, mas é nesse ponto que é preciso responder: sobre as relações da psicanálise com o Estado, com o capitalismo, com a História, com a esquizofrenia.

Serge Leclaire: Estou de acordo quanto ao ponto de vista que propõe. Se insisto no ponto preciso do objeto, é para pôr em evidência através de um exemplo o tipo de funcionamento da coisa produzida.

Dito isto, não recuso inteiramente a crítica de Deleuze e Guattari no que respeita ao enrugamento, ao esmagamento da descoberta psicanalítica, o fato de nada ou quase nada ter dito relativamente às relações da prática analítica ou do esquizofrênico com o campo político ou com o campo social. Não basta manifestar a intenção de fazê-lo, é preciso conseguir faze-lo de modo pertinente. Os nossos dois autores tentaram-no, e é a sua tentativa que aqui discutimos.

Disse simplesmente, e recordo-o, que o tratamento correto do problema me parece passar por um desfile extremamente preciso: o lugar do objeto, a função da pulsão numa formação social.

Só uma observação a propósito do “isso funciona”, que é avançado como argumento em favor da pertinência da máquina, ou do livro em questão. É evidente que isso funciona! E ia dizer que para mim também, num certo sentido, isso funciona. Podemos constatar que qualquer prática teórica tem, num primeiro tempo, a oportunidade de funcionar. Isso não constitui em si um critério.

Roger Dadoun: O problema principal que o vosso livro coloca é, sem dúvida, este: como é que isso vai funcionar politicamente, visto que também o político é admitido por vocês como “maquinação” principal. Basta ver a amplidão e a minúcia como que se debruçaram sobre o socius e, nomeadamente, dos seus aspectos etnográficos, antropológicos.

Pierre Clastres: Deleuze e Guattari, o primeiro filósofo, o segundo psicanalista, refletem em conjunto sobre o capitalismo. Para pensarem o capitalismo passam pela esquizofrenia, em que veem o efeito e o limite da nossa sociedade. E para pensarem a esquizofrenia passam pela psicanálise edipiana, mas como Átila: após a sua passagem pouca coisa fica. Entre os dois, entre a descrição do familismo (o triângulo edipiano) e o projeto da esquizoanálise, há o maior capítulo de O Anti-Édipo, o terceiro, “Selvagens, Bárbaros, Civilizados”. Trata-se aí, essencialmente, das sociedades que são o objeto habitual de estudo dos etnólogos. Que faz aí a etnologia?

Assegura ao empreendimento de Deleuze e Guattari a sua coerência, que é grande, fornecendo para a sua demonstração pontos de apoio extra-ocidentais (leva em conta sociedades primitivas e impérios bárbaros). Se os autores se limitassem a dizer: no capitalismo, as coisas funcionam assim, e nos outros tipos de sociedades as coisas funcionam de outro modo, não se abandonaria o terreno do comparatismo mais vulgar. Nada disso acontece, porque mostram “como é que isso funciona diferentemente”. O Anti-Édipo é também uma teoria geral da sociedade e das sociedades. Por outras palavras, Deleuze e Guattari escrevem a propósito dos Selvagens e dos Bárbaros o que até agora os etnólogos não tinham escrito.

É verdade (não se escrevia, mas sabia-se, apesar de tudo) que o mundo dos Selvagens é lugar da codificação dos fluxos: não há nada que escape ao controle das sociedades primitivas, e quando se produz uma derrapagem – isso acontece – a sociedade descobre sempre o meio de bloquear. Também é verdade que as formações imperiais impõem uma sobrecodificação dos elementos selvagens integrados no Império, mas sem destruírem forçosamente a codificação dos fluxos que persiste no nível local de cada elemento. O exemplo do Império Inca ilustra perfeitamente o ponto de vista de Deleuze e Guattari. Dizem coisas muito belas sobre o sistema da crueldade como escrita sobre o corpo entre os Selvagens, sobre a escrita como modo do sistema do terror nos Bárbaros. Parece-me que os etnólogos deveriam se sentir em O Anti-Édipo como em sua casa. Isto não quer dizer que se aceite tudo à primeira vista. Vai haver, como se pode prever, reticências (pelo menos) perante uma teoria que postula o primado da genealogia da dívida, que assim substitui o estruturalismo da troca. Podemos também perguntar-nos se a ideia de terra não esmaga um pouco a ideia de território. Mas tudo isso significa que Deleuze e Guattari não desprezam os etnólogos: põem-lhes verdadeiras questões, questões que obrigam a refletir.

Retorno a uma interpretação evolucionista da história? Retorno a Marx para além de Morgan? De modo algum. O marxismo progredia mais ou menos em relação aos Bárbaros (modo de produção asiático) mas nunca soube o que fazer com os Selvagens. Por quê? Porque, se na perspectiva marxista, a passagem da barbárie (despotismo oriental ou feudalismo) para a civilização (capitalismo) é pensável, em contrapartida nada permite pensar a passagem da selvageria para a barbárie. Nada há nas máquinas territoriais (as sociedades primitivas) de que se possa dizer que isso prefigura o que virá a seguir: nem casta, nem classe, nem exploração, nem sequer trabalho (se o trabalho é por essência alienado). Então, de onde é que aparece a História, a luta de classes, a desterritorialização etc.?

Deleuze e Guattari respondem a esta questão porque sabem o que fazer com os Selvagens. E a sua resposta é, a meu ver, a descoberta mais vigorosa, mais rigorosa de O Anti-Édipo: trata-se da teoria do “Urstaat”, o monstro frio, o pesadelo, o Estado, que é o mesmo por todo lado e “que sempre existiu”. Sim, o Estado existe nas sociedades primitivas, mesmo no mais minúsculo bando de caçadores-nômades. Existe, mas é incessantemente esconjurado, impedido de se realizar. Uma sociedade primitiva é uma sociedade que consagra todos os seus esforços para impedir o seu chefe de se tornar um chefe (e isso pode ir até ao assassínio). Se a história é a história da luta de classes (nas sociedades em que há classes, evidentemente) então pode-se dizer que a história das sociedades sem classes é a história da luta contra o Estado latente, é a história do seu esforço para codificar o fluxo do poder.

É evidente que O Anti-Édipo não nos diz porque é que a máquina primitiva, aqui ou ali, não conseguiu codificar o fluxo do poder, essa morte que não pára de crescer do interior. Não há, de fato, a menor razão para que o Estado se realize no seio do Socius primitivo, não há a menor razão para que a tribo deixe o seu chefe representar o papel de chefe (é possível demonstra-lo com a ajuda de exemplos etnográficos). Então de onde surge, imediatamente completo, o “Urstaat”? Vem necessariamente do exterior, e podemos esperar que a continuação de O Anti-Édipo nos diga mais a esse respeito.

Codificação, sobrecodificação, descodificação e fluxo: estas categorias determinam a teoria da sociedade, enquanto a ideia de “Urstaat”, esconjurado ou triunfante, determina a teoria da História. Encontramos aqui um pensamento radicalmente novo, uma reflexão revolucionária.

Pierre Rose: Para mim, o que prova a importância prática do livro de Deleuze e Guattari é a sua recusa da virtude do comentário. É um livro que faz a guerra. Trata-se aqui da situação das classes trabalhadoras e do Poder. O viés é efetuado pela crítica da instituição analítica, mas a questão não se restringe a isso.

“O inconsciente é a política”, dizia Lacan em 67. A análise apresentava por aí a sua pretensão à universalidade. É quando se aproxima da política que a análise legitima mais francamente a opressão. É uma espécie de prestidigitação em que a subversão do Sujeito supostamente dotado de saber torna-se submissão perante uma nova trindade transcendental da Lei, do Significante, da Castração: “A Morte é a vida do Espírito, para que é que serve revoltarem-se?” A questão do poder ficava apagada pela ironia conservadora do hegelianismo de direita que mina a questão do inconsciente, de Kojève a Lacan.

Esta herança, ao menos, era coerente. Acabava-se também com a tradição, mais sórdida, da teoria das ideologias, que obcecava a teoria marxista desde a IIª Internacional, ou seja, desde que o pensamento de Jules Guesde esmagou o pensamento de Fourier.

O que os marxistas não conseguiam quebrar era a teoria do reflexo, o aquilo que dela tinham feito. No entanto a metáfora leninista do “pequeno parafuso”³ na “grande máquina” é luminosa: a destruição do Poder nos espíritos é uma transformação que se produz em todas as peças da máquina social.

O modo como o conceito maoísta de “revolução ideológica” rompe com a oposição mecanicista entre a ideologia e o político-econômico destrói a redução do desejo ao “político” (Parlamento e luta de partidos) e da política ao discurso (do chefe) para restaurar a realidade da guerra múltipla em múltiplas frentes. Este método é o único que se aproxima da crítica do Estado em O Anti-Édipo. Está excluída a hipótese de um trabalho crítico, que se reinicia com O Anti-Édipo, se tornar uma operação universitária, atividade lucrativa dos dervixes giratórios do Ser e do Tempo. Recupera o seu efeito, conquistado contra os instrumentos do Poder, no real, ajudará em todos os assaltos contra a polícia, contra a justiça, contra o exército, contra o poder de Estado na fábrica e fora.

Gilles Deleuze: O que Pividal disse há pouco, o que Pierre acaba de dizer, parece-me perfeitamente justo. O essencial, para nós, é o problema da relação entre as máquinas do desejo e as máquinas sociais, a sua diferença de regime, a sua imanência umas às outras. Ou seja: como é que o desejo inconsciente é investimento social, econômico e político. Como é que a sexualidade ou aquilo a que Leclaire talvez chamasse escolha de objetos sexuais, nada mais faz do que exprimir esses investimentos, que são realmente investimentos de fluxos. Como é que os nossos amores são derivados da História universal e não derivados de papá-mamã. Através de uma mulher e de um homem amados é todo um campo que é investido, e que pode sê-lo de diferentes maneiras. Assim, nós tentamos mostrar como é que os fluxos correm em diferentes campos sociais, sobre o que é que correm, com o que é que são investidos, codificação, sobrecodificação, descodificação.

Poder-se-á dizer que a psicanálise não chegou sequer a analisar esse domínio, por exemplo com as sua ridículas explicações do fascismo, quando faz derivar tudo de imagens de pai ou de mãe ou de significantes familistas e piedosos como o nome do Pai? Serge Leclaire diz que, embora o nosso sistema funcione, isso não constitui uma prova, porque qualquer coisa funciona. É verdade. Nós também dizemos: Édipo e a castração funcionam muito bem. Mas trata-se de saber quais são os efeitos de funcionamento, e a que custo isso funciona? Que a psicanálise acalma, conforta, nos ensina as resignações com que podemos viver, é certo. Mas afirmamos que usurpou a sua reputação de promover ou mesmo de participar numa efetiva libertação. Ela esmagou os fenômenos de desejo sobre uma cena familiar, esmagou toda a dimensão política e econômica da libido num código conformista. Desde que o “doente” se ponha a falar político, a delirar político, é preciso ver o que a psicanálise faz disso. Veja-se o que Freud fez com Schreber.

Quanto à etnografia, Pierre Clastres disse tudo, em qualquer caso o melhor para nós. O que tentamos é pôr a libido em relação com um “fora”. O fluxo de mulheres nos primitivos está em relação com os fluxos de rebanhos, com fluxos de flechas. Repentinamente, um grupo nomadiza-se. Repentinamente, os guerreiros chegam à aldeia, veja-se a Muralha da China. Quais são os fluxos de uma sociedade, quais são os fluxos capazes de subverte-la, e qual é o lugar do desejo em tudo isto? Há sempre qualquer coisa que chega à libido, e que lhe chega do fundo do horizonte, não do interior. Será que a etnologia, assim como a psicanálise, não deveria estar em relação com esse fora?

Maurice Nadeau: Deveríamos talvez acabar aqui se quisermos aproveitar para La Quinzaine uma conversa que excede já os limites da publicação num só número do jornal. Agradeço a Gilles Deleuze e a Félix Guattari os esclarecimentos que nos forneceram a propósito de uma obra chamada a revolucionar indubitavelmente grande número de disciplinas e que me parece ainda mais importante pela tentativa muito particular pela qual os seus autores abordam questões que nos preocupam a todos. Agradeço igualmente a François Châtelet por ter organizado e presidido a este debate e, evidentemente, a todos os especialistas que dele quiseram participar.


 

Tradução de Luiz B. L. Orlandi

  1. O tradutor português traduz machines couplées por “máquinas acopuladas”, mantendo, assim, o espírito da intervenção de F. Châtelet. Optei por “máquinas acopladas”, apesar do galicismo, não só pelo seu emprego corrente entre leitores brasileiros de O Anti-Édipo, mas, principalmente, porque acoplar abarca um leque mais amplo de ideias de ligações maquínicas, com a vantagem de também incluir as sexuais. Que os puristas levem em conta um dos fortes da ideia deleuze-guattariana de desejo: o acoplar-se com o fora.
  2. Segmento ausente da primeira publicação.
  3. [Houve certamente um erro de transcrição do texto original francês: em vez de “petite vie” (“pequena vida”), como se lê na primeira linha da pág. 318 de L’Îile deserte, deveria constar “petite vis” (pequeno parafuso”, o que dá razão ao tradutor português e é mais compatível com a expressão leninista].

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