Se há um nós no meio de certo filósofo é porque seu pensamento conceitual continua capaz de atrair interferências
Esse título é plágio da fórmula “Espinosa e nós”, presente em um pequeno texto escrito por Gilles Deleuze (1925-1995) em 1978, retomado em 1981, no final de seu Espinosa – Filosofia prática. A fórmula era assim entendida: “Nós no meio de Espinosa.” E se há um nós no meio de certo filósofo, no meio das vagas e labaredas de suas obras, é porque seu pensamento conceitual continua capaz de atrair nossas interferências, justamente por força de tudo que acontece em seu meio. Evidentemente, esse nós não sugere unanimidade intelectual ou de sentimentos. No mínimo, é um plural de convergências e divergências dos mais diversos matizes. E cada um desse nós, aventurando-se como pode, retoma a pergunta: que acontece no meio de Deleuze?
Acontecem afetos afirmativos, sente-se no rosto um novo frescor e novos ardores, nova maneira de termos encontros até inocentes com o pensamento, sem o cultivo da morte da metafísica ou do fim da Filosofia. Nesse meio, evitamos o hábito do obituário e a presunção dos transcendentes. Por que esse meio de Deleuze nos livra disso e mantém viva uma interessante possibilidade do pensamento filosófico? Não só pela perspicácia, pelo humor e até beleza de muitos dos seus textos, e nem apenas pelo aspecto saboroso de alianças que ele estabelece ao longo de uma quebradiça história da Filosofia. Sim, história quebradiça, porque, ao invés de condenada a blocos da monotonia cronológica, essa história pode ser aberta a viagens plenas de vigor, tão rigorosas quanto intensas. E quando ela se abre assim nesse meio? Quando o pensar se sente tomado por uma dramaturgia de idéias, por um problemático jogo de forças desterritorializantes, forças que se exercem como seleção e recriação de horizontes conceituais que pulsam nos grandes ou pequenos sistemas filosóficos. Sente-se isso no meio de Deleuze, seja por leve inspiração indireta, seja quando o acompanhamos diretamente em suas curtas ou longas estadas o obrigando a pensar. É que, em vez de pensar sobre isto ou aquilo, esse meio deleuzeano nos faz experimentar a necessidade de pensar com, postura que leva o conceito não à presunção de comandar, mas à tarefa de se determinar com aquilo que ele determina, postura que vai esculpindo as condições necessárias para que as idéias se sintam bem a serviço da expressividade do caso, do acontecimento, das questões, dos problemas, das frases alheias, desta ou daquela singularidade. É o que se pode notar até mesmo em um breve esboço dos grupos de escritos aí encontrados.
1. Com efeito, nesse meio, a escrita nos leva a passear com novos olhos por paisagens conceituais que julgávamos fixadas em estudos certamente relevantes, mas não únicos. E eis que ganhamos um novo Hume com Empirismo e subjetividade (1953), livro que nos remete à ideia de um empirismo superior, graças a relações exteriores aos termos relacionados. Ganhamos um novo Proust com Proust e os signos (1964; 1970), no qual, ao invés do apego ao passado empírico, o que se enreda em mundos de signos a serem desvendados é o aprendizado de um homem de letras.
2. E mais: ao lermos Nietzsche e a Filosofia (1962), e até o pequeno Nietzsche (1965), além do decisivo Espinosa e o problema da expressão (1968), assim como a retomada do pequeno Espinosa (1970) em Espinosa – Filosofia prática (1981), o que vemos conceitualmente justificado é a junção Nietzsche-Espinosa como guerreiros afirmativos, desses que combatem por uma vida eticamente valorizada e não moralmente depreciada. E não seria abuso juntarmos a essa dupla o nome de outro guerreiro, François Châtelet, a quem Deleuze, em Péricles e Verdi – A filosofia de François Châtelet (1988) presta uma digna homenagem ao ativar o conceito de combate na imanência.
3. Os incorporais dos estóicos ganham efervescente operatoriedade em Lógica do sentido (1969), dimensionam a ideia de acontecimento nesse livro, que também nos reanima quanto a Epicuro, a Lucrécio. Compreende-se a coloração bergsoniana desse meio com a leitura das linhas de diferenciação já armadas em O bergsonismo (1966). E como que aplicando uma crítica de Bergson a mistos mal compostos, encontramos importante desmontagem do misto denominado sado-masoquismo em Apresentação de Sacher-Masoch (1967).
4. Em outro cruzamento de latitudes e longitudes desse meio deleuzeano, uma nova explicitação conceitual da dobra barroca nos surpreende em A dobra – Leibniz e o barroco (1988). E boa surpresa reaparece nessa mesma obra, por força da ideia de acontecimento: reencontramo-nos com o conceito de ocasião atual, de Whitehead. Há toda uma variação de perspectivas que se acumulam nesse cruzamento. Com efeito, pouco antes, Deleuze publicara seu benquisto e conhecido Foucault (1986). Nesse cruzamento de atenções, está em pauta a questão das combinações das forças atuantes no homem e das forças do fora. Se, com Leibniz, nossas forças se combinam com aquelas de elevação ao infinito sob a forma-Deus, o problema que agora se coloca já não é esse, e nem mesmo aquele que consiste em submeter à forma-Homem as relações entre nossas forças e as que configuram nossa finitude na vida, no trabalho e na linguagem. O problema que se impõe a ambos é o da dissolução da forma-Homem por efeito de outra composição: as forças atuantes no homem combinam-se com forças de ilimitação do finito, aquelas que potencializam a produção de combinações praticamente ilimitadas de conglomerados finitos de componentes. É fácil notar uma das linhas favorecidas por esta combinação: a linha de proliferação dos controles na sociedade.
5. Mas nossas viagens por esse meio não param aí. Encontramos inovações na maneira pela qual, em Superposições (1979), são conceitualmente pensadas as operações com que Carmelo Bene cria seu teatro menor. Em O esgotado (1992), por sua vez, é com Samuel Beckett que nos encontramos, um Beckett que obriga Deleuze a distinguir conceitualmente o esgotado (que desliza por disjunções inclusivas) do fatigado (que pratica o jogo das disjunções exclusivas): enquanto o fatigado só esgotou a realização e já nada pode realizar, o fatigado esgota todo o possível e nada mais pode possibilitar, coisa que lhe ocorre de várias maneiras. Há uma intensidade no esgotamento, assim como, na pintura de Francis Bacon, há intensidade na dissipação da imagem. Essa pintura é acompanhada em Lógica da sensação (1984), obra que tematiza a passagem da matéria-forma à matéria-força.
6. Visitamos também o cinema e a literatura. Mas não para falar sobre este ou aquele filme, sobre este ou aquele romance. Com o socorro de filmes, de estudos dessa arte, dos que pensam a respeito do seu trabalho cinematográfico, trata-se de elaborar conceitos do cinema, isto é, de discriminar seus signos e de pensar relações constitutivas dessa arte em suas variações decisivas. É o que lemos em Cinema 1: imagem-movimento (1983) e em Cinema 2: imagem-tempo (1985). Além do cinema, há muita literatura conceitualmente pensada nesse meio deleuzeano. É o que ocorre no livro escrito por Deleuze em companhia de Félix Guattari, Kafka – por uma literatura menor (1975). Neste livro, certas noções ganham duradoura consistência, como a de agenciamento, a de devir imperceptível, de máquina social etc. E nele também aprendemos que fazer fugir é muito mais que criticar. Essa autoexigência deleuzeana é praticada justamente em Crítica e clínica (1993), uma vasta reunião de textos, muitos dedicados à escrita literária: crítica, como traçado do plano de consistência da obra, e clínica como traçado de linhas sobre esse plano; o delineamento do bebê como combate, o de uma lógica extrema sem racionalidade, o da avaliação imanente, o dos cristais do inconsciente etc.
7. Esse meio ainda se abre à prodigiosa multiplicidade de outros recantos, como aqueles em que se reúnem os mais variados textos e entrevistas: Diálogos (1977; 1996), escrito com Claire Parnet; Conversações (1990), A ilha deserta (2002); e Dois regimes de loucos (2003), coletâneas extremamente importantes para quem se interessa pelas múltiplas facetas teóricas e práticas dos debates culturais e políticos contemporâneos.
8. Não apontamos ainda outros acontecimentos que duram nesse meio deleuzeano graças à colaboração havida entre -Deleuze e Guattari: uma nova teoria do desejo em O anti–Édipo (1972), desejo não mais marcado pela falta, mas por uma produtividade coextensiva ao meio natural-social-histórico; um vasto e complexo inconsciente espinosano distribuído em planos intensivos em Mil platôs (1980); e nova concepção do que seja ou deva ser a própria Filosofia. Sim, o meio deleuzeano é um convite para que estejamos atentos a relações de ressonâncias com outros domínios, relações não hierárquicas entre filosofias, ciências e artes, a respeito da Ética e dos combates na imanência pela dignificação do viver…
É claro que esses oito itinerários pelo meio Deleuze poderiam ser multiplicados. O que nos obriga a perguntar: seria esse meio o de uma dispersão de temas meramente justapostos ou, ao contrário, submetidos a um modelo interpretativo? Nada disso. Nele, qualquer coisa pode forçar o pensamento filosófico a cumprir sua única tarefa: a de sentir e pensar conceitualmente o jogo problemático constitutivo da coisa em seus encontros, o jogo que envolve a diferença e o problema em pauta a cada caso. Tarefa difícil e tematizada de modo exemplar em Diferença e repetição (1968). É que, a cada instante, o pensamento recai em um jogo antigo, o jogado entre quatro paredes da representação: a identidade do conceito, a analogia do juízo, a oposição dos predicados e a semelhança do percebido. Como subverter este jogo a cada instante? Tarefa difícil, para a qual o meio deleuzeano conta com uma proposição ontológica irredutível a receituários metodológicos: na experiência real dos encontros, todo e qualquer ente se diz univocamente como correspondências problemáticas entre diferenciações virtuais e diferenciações atuais. Assim, a problemática da diferença ganha uma nova imagem do pensamento filosófico.
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Luiz B. L. Orlandi é doutor em Filosofia pela Unicamp, mestre em poética pela Universidade de Besançon (França) e professor do Núcleo de Estudos da Subjetividade da PUC-SP. Autor de A voz do intervalo (Ática, 1980), organizador de A ilha deserta (Iluminuras, 2006) e tradutor de várias obras de Deleuze.
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Publicado em 14 de março de 2010 , Revista Cult. Nº 108. São Paulo. DELEUZE E NÓS.