Gilles Deleuze ENTREVISTA a Toni Negri (1990)

Toni Negri (T.N.): Em sua vida intelectual parece que o problema do político sempre esteve presente. A participação nos movimentos (prisões, homossexuais, autonomia italiana, palestinos), por um lado, e a problematização constante das instituições, por outro, se sucedem e se entremeiam em sua obra, desde o livro sobre Hume até esse sobre Foucault. De onde nasce essa abordagem contínua da questão do político, e como ela conseguiu manter-se ao longo de toda sua obra? Por que a relação movimento-instituições é sempre problemática?

Gilles Deleuze (G.D.): O que me interessava eram as criações coletivas, mais que as representações. Nas “instituições” há todo um movimento que se distingue ao mesmo tempo das leis e dos contratos. Encontrei em Hume uma concepção muito criativa da instituição e do direito. No começo interessava-me mais pelo direito que pela política. O que me agradava, mesmo em Masoch e Sade, era a concepção inteiramente torcida do contrato segundo Masoch, da instituição segundo Sade, ambas relacionadas à sexualidade. Hoje em dia, o trabalho de François Ewald para restaurar uma filosofia do direito me parece essencial. O que me interessa não é a lei nem as leis (uma é noção vazia, e as outras são noções complacentes), nem mesmo o direito ou os direitos, e sim a jurisprudência. É a jurisprudência que é verdadeiramente criadora de direito: ela não deveria ser confiada aos juízes. Não é o Código Civil que os escritores deveriam ler, mas antes as coletâneas de jurisprudência. Hoje já se pensa em estabelecer o direito da biologia moderna; mas tudo, na biologia moderna e nas novas situações que ela cria, nos novos acontecimentos que ela possibilita, é questão de jurisprudência. Não é de um comitê de sábios, comitê moral e pseudocompetente, que precisamos, mas de grupos de usuários. É aí que se passa do direito à política. Uma espécie de passagem à política, passagem que eu mesmo fiz com Maio de 68, à medida que tomava contato com problemas precisos, graças a Guattari, a Foucault, a Elie Sambar. O anti-Édipo foi todo ele um livro de filosofia política.

T.N.: Você sentiu os acontecimentos de 68 como sendo o triunfo do Intempestivo, a realização da contraefetuação. Já nos anos que antecederam 68, no trabalho sobre Nietzsche, assim como um pouco mais tarde, em Sacher Masoch, o político é reconquistado por você como possibilidade, acontecimento, singularidade. Há curto-circuitos que abrem o presente para o futuro. E que modificam, portanto, as próprias instituições. Porém, depois de 68, sua avaliação parece mais nuançada: o pensamento nômade se apresenta sempre, no tempo, sob a forma da contraefetuação instantânea; no espaço, apenas um “devir minoritário é universal”. Mas o que é então essa universalidade do intempestivo?

G.D.: É que cada vez mais fui sensível a uma distinção possível entre o devir e a história. Nietzsche dizia que nada de importante se faz sem uma “densa nuvem não histórica”. Não é uma oposição entre o eterno e o histórico, nem entre a contemplação e a ação: Nietzsche fala do que se faz, do acontecimento mesmo ou do devir. O que a história capta do acontecimento é sua efetuação em estados de coisa, mas o acontecimento em seu devir escapa à história. A história não é a experimentação, ela é apenas o conjunto das condições quase negativas que possibilitam a experimentação de algo que escapa à história. Sem a história, a experimentação permaneceria indeterminada, incondicionada, mas a experimentação não é histórica. Num grande livro de filosofia, Clio, Péguy explicava que há duas maneiras de considerar o acontecimento, uma consiste em passar ao longo do acontecimento, recolher dele sua efetuação na história, o condicionamento e o apodrecimento na história, mas outra consiste em remontar o acontecimento, em instalar-se nele como num devir, em nele rejuvenescer e envelhecer a um só tempo, em passar por todos os seus componentes ou singularidades. O devir não é história; a história designa somente o conjunto das condições, por mais recentes que sejam, das quais desvia-se a fim de “devir”, isto é, para criar algo novo. É exatamente o que Nietzsche chama de o Intempestivo. Maio de 68 foi a manifestação, a irrupção de um devir em estado puro. Hoje está na moda denunciar os horrores da revolução. Nem mesmo é novidade, todo o romantismo inglês está repleto de uma reflexão sobre Cromwell muito análoga àquela que hoje se faz sobre Stálin. Diz-se que as revoluções têm um mau futuro. Mas não param de misturar duas coisas, o futuro das revoluções na história e o devir revolucionário das pessoas. Nem sequer são as mesmas pessoas nos dois casos. A única oportunidade dos homens está no devir revolucionário, o único que pode conjurar a vergonha ou responder ao intolerável.

T.N.: Parece-me que Mil Platôs, que eu considero uma grande obra filosófica, é também um catálogo de problemas não resolvidos, sobretudo no domínio da filosofia política. Os pares conflitantes processo-projeto, singularidade-sujeito, composição-organização, linhas de fuga-dispositivos e estratégias, micro-macro, etc., tudo isto não apenas permanece em aberto, mas sem cessar é reaberto, com uma vontade teórica inusitada e uma violência que lembra o tom das heresias. Não tenho nada contra uma tal subversão, muito pelo contrário… Mas às vezes me parece ouvir uma nota trágica quando não se sabe para onde leva a “máquina de guerra”.

G.D.: Estou comovido com o que você disse. Creio que Félix Guattari e eu, talvez de maneiras diferentes, continuamos ambos marxistas. É que não acreditamos numa filosofia política que não seja centrada na análise do capitalismo e de seu desenvolvimento. O que mais nos interessa em Marx é a análise do capitalismo como sistema imanente que não para de expandir seus próprios limites, reencontrando-os sempre numa escala ampliada, porque o limite é o próprio Capital. Mil platôs indica muitas direções, sendo estas as três principais: primeiro, uma sociedade nos parece definir-se menos por suas contradições que por suas linhas de fuga, ela foge por todos os lados, e é muito interessante tentar acompanhar em tal ou qual momento as linhas de fuga que se delineiam. Seja o exemplo da Europa hoje: os políticos ocidentais tiveram muito trabalho para construí-la, os tecnocratas para uniformizar regimes e regulamentos. Mas a surpresa pode vir por parte das explosões entre os jovens, as mulheres, em função da simples ampliação dos limites (isto não é “tecnocratizável”); por outro lado, é engraçado pensar que esta Europa já está completamente ultrapassada antes mesmo de ter começado, ultrapassada pelos movimentos que vêm do Leste. São linhas de fuga sérias. Há uma outra direção em Mil platôs, que já não consiste apenas em considerar as linhas de fuga mais do que as contradições, porém as minorias de preferência às classes. Enfim, uma terceira direção, que consiste em buscar um estatuto para as “máquinas de guerra”, que não seriam definidas de modo algum pela guerra, mas por uma certa maneira de ocupar, de preencher o espaço-tempo, ou de inventar novos espaços-tempos: os movimentos revolucionários (não se leva em conta o suficiente, por exemplo, como a OLP teve que inventar um espaço-tempo no mundo árabe), mas também os movimentos artísticos são máquinas de guerra.

Você diz que tudo isso não está desprovido de uma tonalidade trágica, ou melancólica. Creio saber por quê. Fiquei vivamente impressionado com todas as páginas de Primo Levi onde ele explica que os campos nazistas introduziram em nós “a vergonha de ser um homem”. Não, diz ele, que sejamos todos responsáveis pelo nazismo, como gostariam de nos fazer crer, mas fomos manchados por ele: mesmo os sobreviventes dos campos tiveram que fazer concessões, ainda que para sobreviver. Vergonha por ter havido homens para serem nazistas, vergonha de não ter podido ou sabido impedi-lo, vergonha de ter feito concessões, é tudo o que Primo Levi chama de “zona cinza”. E quanto à vergonha de ser um homem, acontece de a experimentarmos também em circunstâncias simplesmente derrisórias: diante de uma vulgaridade grande demais no pensar, frente a um programa de variedades, face ao discurso de um ministro, diante de conversas de “bons vivants”. É um dos motivos mais potentes da filosofia, o que faz dela forçosamente uma filosofia política. No capitalismo só uma coisa é universal, o mercado. Não existe Estado universal, justamente porque existe um mercado universal cujas sedes são os Estados, as Bolsas. Ora, ele não é universalizante, homogeneizante, é uma fantástica fabricação de riqueza e de miséria. Os direitos do homem não nos obrigarão a abençoar as “alegrias” do capitalismo liberal do qual eles participam ativamente. Não há Estado democrático que não esteja totalmente comprometido nesta fabricação da miséria humana. A vergonha é não termos nenhum meio seguro para preservar, e principalmente para alçar os devires, inclusive em nós mesmos. Como um grupo se transformará, como recairá na história, eis o que nos impõe um perpétuo “cuidado”. Já não dispomos da imagem de um proletário a quem bastaria tomar consciência.

T.N.: Como o devir minoritário pode ser potente? Como a resistência pode tornar-se uma insurreição? Quando o leio, sempre fico na dúvida quanto à resposta que se deve dar a tais questões, mesmo se em suas obras encontro sempre o impulso que me obriga a reformulá-las teórica e praticamente. E, no entanto, ao ler suas páginas sobre a imaginação ou as noções comuns em Espinosa, ou quando acompanho em A imagem-tempo sua descrição sobre a composição do cinema revolucionário nos países do Terceiro Mundo, e que entendo com você a passagem da imagem à fabulação, à práxis política, tenho quase a impressão de ter achado uma resposta… Ou será que me engano? Existe então algum modo para que a resistência dos oprimidos possa tornar-se eficaz e para que o intolerável seja definitivamente banido? Existe um modo para que a massa de singularidades e de átomos, que somos todos, possa se apresentar como poder constituinte, ou, ao contrário, devemos aceitar o paradoxo jurídico segundo o qual o poder constituinte só pode ser definido pelo poder constituído?

G.D.: As minorias e as maiorias não se distinguem pelo número. Uma minoria pode ser mais numerosa que uma maioria. O que define a maioria é um modelo ao qual é preciso estar conforme: por exemplo, o europeu médio adulto macho habitante das cidades… Ao passo que uma minoria não tem modelo, é um devir, um processo. Pode-se dizer que a maioria não é ninguém. Todo mundo, sob um ou outro aspecto, está tomado por um devir minoritário que o arrastaria por caminhos desconhecidos caso consentisse em segui-lo. Quando uma minoria cria para si modelos, é porque quer tornar-se majoritária, e sem dúvida isso é inevitável para sua sobrevivência ou salvação (por exemplo, ter um Estado, ser reconhecido, impor seus direitos). Mas sua potência provém do que ela soube criar, e que passará mais ou menos para o modelo, sem dele depender. O povo é sempre uma minoria criadora, e que permanece tal, mesmo quando conquista uma maioria: as duas coisas podem coexistir porque não são vividas no mesmo plano. Os maiores artistas (de modo algum artistas populistas) apelam para um povo, e constatam que “o povo falta”: Mallarmé; Rimbaud, Klee, Berg. No cinema, os Straub. O artista não pode senão apelar para um povo, ele tem necessidade dele no mais profundo de seu empreendimento, não cabe a ele criá-lo e nem o poderia. A arte é o que resiste: ela resiste à morte, à servidão, à infâmia, à vergonha. Mas o povo não pode se ocupar de arte. Como poderia criar para si e criar a si próprio em meio a abomináveis sofrimentos? Quando um povo se cria, é por seus próprios meios, mas de maneira a reencontrar algo da arte (Garel diz que o Museu do Louvre contém, ele também, uma soma de sofrimento abominável), ou de maneira que a arte reencontre o que lhe faltava. A utopia não é um bom conceito: há antes uma “fabulação” comum ao povo e à arte. Seria preciso retomar a noção bergsoniana de fabulação para dar-lhe um sentido político.

T.N.: Em seu livro sobre Foucault e também na entrevista televisiva ao Institut National de l’Audio-visuel (I.N.A.), você propõe aprofundar o estudo de três práticas do poder: o Soberano, o Disciplinar, e sobretudo o de Controle sobre a “comunicação”, que hoje está em vias de tornar-se hegemônico. Por um lado, este último cenário remete à mais alta perfeição da dominação, que toca tanto a fala como a imaginação, mas por outro lado, nunca tanto quanto hoje todos os homens, todas as minorias, todas as singularidades foram potencialmente capazes de retomar a palavra, e, com ela, um grau mais alto de liberdade. Na utopia marxiana dos Grundrisse, o comunismo se configura justamente como uma organização transversal de indivíduos livres, sobre uma base técnica que lhe garante as condições. O comunismo ainda é pensável? Na sociedade da comunicação ele é menos utópico que antes?

G.D.: É certo que entramos em sociedades de “controle”, que já não são exatamente disciplinares. Foucault é com frequência considerado como o pensador das sociedades de disciplina, e de sua técnica principal, o confinamento (não só o hospital e a prisão, mas a escola, a fábrica, a caserna). Porém, de fato, ele é um dos primeiros a dizer que as sociedades disciplinares são aquilo que estamos deixando para trás, o que já não somos. Estamos entrando nas sociedades de controle, que funcionam não mais por confinamento, mas por controle contínuo e comunicação instantânea. Burroughs começou a análise dessa situação. Certamente, não se deixou de falar da prisão, da escola, do hospital: essas instituições estão em crise. Mas se estão em crise, é precisamente em combates de retaguarda. O que está sendo implantado, às cegas, são novos tipos de sanções, de educação, de tratamento. Os hospitais abertos, o atendimento a domicílio, etc., já surgiram há muito tempo. Pode-se prever que a educação será cada vez menos um meio fechado, distinto do meio profissional- um outro meio fechado -, mas que os dois desaparecerão em favor de uma terrível formação permanente, de um controle contínuo se exercendo sobre o operário-aluno ou o executivo-universitário. Tentam nos fazer acreditar numa reforma da escola, quando se trata de uma liquidação. Num regime de controle nunca se termina nada. Você mesmo já analisou, há tempos, uma mutação do trabalho na Itália, com formas de trabalho temporário, a domicílio, que desde então se confirmaram (e novas formas de circulação e de distribuição dos produtos). A cada tipo de sociedade, evidentemente, pode-se fazer corresponder um tipo de máquina: as máquinas simples ou dinâmicas para as sociedades de soberania, as máquinas energéticas para as de disciplina, as cibernéticas e os computadores para as sociedades de controle. Mas as máquinas não explicam nada, é preciso analisar os agenciamentos coletivos dos quais elas são apenas uma parte. Face às formas próximas de um controle incessante em meio aberto, é possível que os confinamentos mais duros nos pareçam pertencer a um passado delicioso e benevolente. A pesquisa sobre os “universais da comunicação” tem razões de sobra para nos dar arrepios. É verdade que, mesmo antes das sociedades de controle terem efetivamente se organizado, as formas de delinquência ou de resistência (dois casos distintos) também aparecem. Por exemplo, a pirataria ou os vírus de computador, que substituirão as greves e o que no século XIX se chamava de “sabotagem” (o tamanco – sabot– emperrando a máquina). Você pergunta se as sociedades de controle ou de comunicação não suscitarão formas de resistência capazes de dar novas oportunidades a um comunismo concebido como “organização transversal de indivíduos livres”. Não sei, talvez. Mas isso não dependeria de as minorias retomarem a palavra. Talvez a fala, a comunicação, estejam apodrecidas. Estão inteiramente penetradas pelo dinheiro: não por acidente, mas por natureza. É preciso um desvio da fala. Criar foi sempre coisa distinta de comunicar. O importante talvez venha a ser criar vacúolos de não-comunicação, interruptores, para escapar ao controle.

T.N.: Em Foucault e em A dobra parece que os processos de subjetivação são observados mais atentamente que em outras de suas obras. O sujeito é o limite de um movimento contínuo entre um dentro e um fora. Que consequências políticas tem essa concepção do sujeito? Se o sujeito não pode ser uma questão resolvida na exterioridade da cidadania, pode ele instaurar esta cidadania na potência e na vida? Pode tornar possível uma nova pragmática militante, que seja ao mesmo tempo pietàs para o mundo e construção muito radical? Qual política pode prolongar na história o esplendor do acontecimento e da subjetividade? Como pensar uma comunidade sem fundamento, mas potente, sem totalidade, mas, como em Espinosa, absoluta?

G.D.: Pode-se com efeito falar de processos de subjetivação quando se considera as diversas maneiras pelas quais os indivíduos ou as coletividades se constituem como sujeitos: tais processos só valem na medida em que, quando acontecem, escapam tanto aos saberes constituídos como aos poderes dominantes. Mesmo se na sequência eles engendram novos poderes ou tornam a integrar novos saberes. Mas naquele preciso momento eles têm efetivamente uma espontaneidade rebelde. Não há aí nenhum retorno ao “sujeito”, isto é, a uma instância dotada de deveres, de poder e de saber. Mais do que de processos de subjetivação, se poderia falar principalmente de novos tipos de acontecimentos: acontecimentos que não se explicam pelos estados de coisa que os suscitam, ou nos quais eles tornam a cair. Eles se elevam por um instante, e é este momento que é importante, é a oportunidade que é preciso agarrar. Ou se poderia falar simplesmente do cérebro: o cérebro é precisamente este limite de um movimento contínuo reversível entre um Dentro e um Fora, esta membrana entre os dois. Novas trilhas cerebrais, novas maneiras de pensar não se explicam pela microcirurgia; ao contrário, é a ciência que deve se esforçar em descobrir o que pode ter havido no cérebro para que se chegue a pensar de tal ou qual maneira. Subjetivação, acontecimento ou cérebro, parece-me que é um pouco a mesma coisa. Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completamente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos. É o que você chama de pietàs. É ao nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle. Necessita-se ao mesmo tempo de criação e povo.

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In: Conversações (1972-1990), ed. 34. Tradução: Peter Pál Pelbart.

Originalmente publicado em: Futur Antérieur, n° 1, primavera de 1990, entrevista de Gilles Deleuze a Toni Negri.

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