Quais são os liames entre política e informação em Deleuze? Se a questão merece ser levantada, é porque não param de nos dizer que estamos na idade da informação, do “conhecimento global”, considerado como terceira idade do conhecimento. A primeira idade, dizem–nos, é a do conhecimento individual e reflexivo: eu sou, eu sou um sujeito cognoscitivo. A segunda idade é a do conhecimento coletivo: nós sabemos, todos nós podemos saber graças à imprensa, à televisão, aos “mass media”. Mas a Internet introduz uma terceira idade do saber: todos nós não apenas sabemos, como também sabemos que todos os outros sabem o que sabemos. É um novo regime de informação, no qual alguns veem uma nova democratização do conhecimento: um conhecimento coletivo, sem hierarquia, que se desdobra sob forma de rede, de maneira horizontal. E como não invocar, então, o conceito de “rizoma”, forjado por Deleuze e Guattari? Quer dizer, uma espécie de radícula que se estende em todas as direções como desdobramento de uma multiplicidade crescente sem unificação possível, à maneira da grama. Quem não ouviu esses discursos sobre a Internet, sobre as novas redes e sobre a relação global/local?
Apenas um exemplo. Na França, um grupo de professores criou uma rede de trocas de informações sobre o exercício de sua profissão, reunindo mais de 80.000 usuários, para atenuar as insuficiências do sistema vertical da educação nacional que nunca soube colocar a serviço dos seus funcionários um tal dispositivo. Ter– se–ia aí um modelo de circulação de informações, ao mesmo tempo global e local, dotado de funcionamento democrático, horizontal, não controlado por instância superior. E, sob certos aspectos, essa circulação constitui um novo tipo de poder, pois o saber pode ser posto à disposição de todos e tornar–se uma força coletiva: o horizontal contra o vertical. Chegou–se a dizer que, assim, retornar–se–ia à conviviabilidade de lugares da vila em que os habitantes se reuniriam para falar coletivamente dos problemas locais: do mais arcaico ao mais contemporâneo, a famosa “aldeia global”. Esses exemplos, esses modelos de discurso são familiares a todos…
Em quê isso concerne o pensamento de Deleuze (com Guattari)? A questão se coloca tanto mais que Deleuze quase nada conheceu da Internet. Ele não conheceu sua amplitude e nem a maneira pela qual nossos modos de existência são afetados, às vezes abalados pela Internet. As únicas grandes antecipações que Deleuze lança, ao retomar e prolongar Foucault e sobretudo Burroughs, é que nossas sociedades deixaram de ser sociedades disciplinares para se tornarem sociedades de controle. Elas já não funcionam por enclausuramento como as sociedades disciplinares (escola, prisão, caserna), mas por controle contínuo quer dizer, por levantamento de informações) e comunicação instantânea num mundo que se tornou o mundo infinitamente modulável da empresa. O espírito de empresa conquista todas as formações sociais, e as máquinas que lhe correspondem já não são as máquinas energéticas da idade disciplinar e industrial, mas as máquinas cibernéticas da idade empresarial do controle.
Portanto, Deleuze não vê no computador, e nos controles que ele permite estender em proporções inacreditáveis, uma espécie de democratização do conhecimento, nem o feliz retorno ao tranquilo lugar da vila em que todos se reencontram para constituir uma eventual força coletiva de comunicação. Ao contrário, ele vê nisso um forte instrumento de controle, o mais potente que se pode haver hoje. E tem–se também aí um aspecto conhecido que constitui o inverso do que dizíamos há pouco: todo mundo pode saber a todo instante o que faço, qual site consulto, o que compro; pode conhecer meus centros de interesse, meus gostos, minha situação bancária, minha vida conjugal, familiar etc. (Basta ver os sites que favorecem a difusão desse tipo de informações, do tipo Facebook ou Twitter). A hipótese nada tem de paranoica, porque não se trata de vigilância, mas de controle, isto é, de levantamento de informações. Cada um de nós se reduz a um pacote de informações. Pertencer ao seu computador é estar sob controle, não necessariamente policial, mas empresarial, comercial etc., que se exerce sobre as informações que constituem cada modo de existência. E esse controle se exerce ainda mais quando se trata de um computador central, de uma tela de controle (cf. a domótica¹).
Através dessas duas apresentações, não se trata de opor duas visões, uma otimista e outra pessimista, mas, primeiramente, de distinguir duas concepções do Todo: um todo horizontal aberto, que evolui segundo uma pluralidade de eixos horizontais que se cruzam, que voltam a cruzar–se e se superpõem para favorecer a circulação das informações (rede); e um todo fechado, cercado pelo seu horizonte, e cujo limite tem por função assentar tudo nesse horizonte. O que, por sua vez, distingue essas duas concepções são dois modelos do “conceito” de comunicação. Numa entrevista com Toni Negri, Deleuze aborda a questão das sociedades de controle:
“Você pergunta se as sociedades de controle ou de comunicação não suscitarão formas de resistência capazes de voltar a dar oportunidades a um comunismo concebido como ‘organização transversal de indivíduos livres’. Não sei, talvez. Mas isso não dependeria de as minorias poderem retomar a palavra”².
A solução não pode passar pelas trocas de informações, e nem pela comunicação, tal como imaginada pelo democrata quando ele pensa na Internet. Deleuze torna isso preciso em termos extremamente fortes:
Talvez a fala, a comunicação, estejam apodrecidas. Estão inteiramente penetradas pelo dinheiro: não por acidente, mas por natureza. É preciso um desvio da fala. Criar foi sempre coisa distinta de comunicar. O importante talvez venha a ser criar vacúolos de não–comunicação, interruptores, para escapar ao controle³.
Para Deleuze, o problema reside na própria comunicação. A questão não seria estender a comunicação para favorecer a democracia (ele fala, aqui, de países desenvolvidos, avançados), embora sempre tenhamos necessidade de mais democracia. Deleuze não suporta a identificação constante que se estabelece entre democracia, comunicação e filosofia, como o fazem, por exemplo, Habermas ou Rorty. Sem dúvida, o pensamento filosófico tem necessidade de democracia para se exercer; é ela seu mais favorável meio, diz Deleuze, mas de modo algum isso implica colocar o diálogo ou a discussão no coração do pensamento. Por que colocar a democracia no próprio pensamento? Se Deleuze nunca amou o diálogo, a discussão, a troca concebidos como formas superiores de pensamento, de um pensamento supostamente democrático, não é somente por gosto (desgosto) pessoal, mas porque, de direito, a comunicação impede pensar. No domínio informático, comunicar é talvez vencer o ruído; mas, no campo noético, a comunicação é que é ruído, o ruído de direito interminável dos falantes, do qual o pensamento tenta escapar quando quer pensar.
Deleuze se situa claramente no campo daqueles que veem no desenvolvimento das redes de informações uma extensão das sociedades de controle e a presença de um todo, certamente aberto, mas cujo horizonte tem por finalidade a extensão desse mesmo controle. Então, o risco é ser reconduzido a uma leitura simplista de Deleuze pela sua identificação com uma espécie de radicalidade esquerdista [gauchiste] (sobretudo no momento de sua colaboração com Guattari – e que leva a desqualificar seu trabalho) e cujo modelo seria o seguinte: há um Todo do qual não se pode sair, o todo do capitalismo, o todo da sociedade do espetáculo, de fato o fantasma de uma espécie de realização do totalitarismo, como pensa, por exemplo hoje, Agamben (que se vale de Debord): não podemos escapar da máquina panóptica do poder, de um sistema que age à maneira de um novo totalitarismo. Na realidade, está havendo aí a repetição de um gesto já esboçado há muito tempo por Georges Bataille, que tentava escapar ao todo da dialética hegeliana através de uma experiência dos limites, da transgressão ou do impossível (reencontra–se algo desse gesto na tradição heideggeriana francesa que se engaja numa retirada para fora da realização da metafísica como mundo do desarrazoado técnico). Trata–se, para Bataille, de escapar a um Todo cuja mais terrível característica é conter de antemão sua negação ou sua recusa; donde a dificuldade e a asfixia.
São as famosas questões: como escapar ao sistema? Como não ser recuperado pelo sistema cuja capacidade de assimilação, de apropriação, de superação dialética (para falar como um hegeliano) aparece sem limite? Não é uma interrogação desse tipo que se reencontra em Deleuze (com Guattari)? Não é o que sugere sua descrição das sociedades de controle e do todo da comunicação e da informação? Não é um sistema ao qual é preciso tentar escapar, a tal ponto que vem a ser preferível renunciar a comunicar, “criar vacúolos de não–comunicação, interruptores”? A questão se reforça quando Deleuze descreve o novo tipo de imagens, os novos automatismos eletrônicos que aparecem por volta dos anos 70, aqueles da imagem televisiva ou de vídeo ou da imagem numérica. Sua característica é ser sem exterioridade, sem referência exterior (elas nem mesmo possuem interioridade); elas possuem somente um direito e um avesso e são reversíveis ou deslizam umas sobre as outras: remetem umas às outras, mas sempre a imagens, nunca a outra coisa. Assim, toda imagem é imagem de imagens. Dito de outro modo, elas são imagens por si mesmas, nunca imagens de um mundo exterior, donde sua autossuficiência e o fato de que elas só remetem umas às outras num espaço distinto do espaço real em que estamos corporalmente situados, orientados.
É um mundo–tela cujo funcionamento Deleuze modeliza no segundo volume dos escritos consagrados ao cinema, A Imagem–tempo: é preciso imaginar um mundo–tela, isto é, um mundo que seria tão–somente uma mesa de informações em que as imagens apenas comunicam informações em relação direta com o cérebro: não são mais imagens para ver, mas imagens para ler; elas não solicitam primeiramente um olho, mas um cérebro. Para Deleuze, o computador é o fim do olho, pelo menos o fim de sua autonomia relativamente a um reino exclusivo do cérebro (que subordina a si o olho), não em vista de alguma finalidade motora, mas em vista da circulação de informações. É o fim da percepção (e da ação que ela prepara), unicamente em proveito da leitura (que não tem finalidade motora). É como uma mutação corporal. Pode–se até dizer que o computador nos torna imóveis, nos põe definitivamente sentados, mas o essencial é a maneira pela qual o cérebro se liberta do problema da motricidade.
« Quando o quadro ou a tela funcionam como painel de bordo, mesa de impressão ou de informações, a imagem não pára de se recortar em outra imagem, de se imprimir através de uma trama aparente, de deslizar após outras imagens num incessante fluxo de imagens, e o próprio plano assemelha–se menos a um olho do que a um cérebro sobrecarregado que absorve informações sem cessar: é o par cérebro–informação, cérebro–cidade, que substitui o olho–Natureza4 .
Portanto, é preciso imaginar um cérebro cercado de telas, isto é, de imagens que dão informações a serem lidas. Não é mais um olho que percebe um mundo exterior, mas um cérebro que decifra um mundo sem exterioridade. Deleuze reencontrará esta figura em A Dobra através da mônada sem porta nem janela, de Leibniz. Em A Imagem–Tempo, Deleuze invoca notadamente a figura de Syberberg, um cineasta que concebe precisamente seus filmes com base num modelo análogo. Ele filma espaços onde se projetam imagens, sequências de filmes, diapositivos, documentos de arquivos, fotografias, enquanto os personagens falam com vozes distintas das suas e marionetes vem povoar a cena. É o caso do filme Hitler, um filme da Alemanha, que não é uma biografia de Hitler, nem uma denúncia, nem mesmo uma ficção ou um documentário, mas um desfile de discursos, de músicas e de imagens, no qual se misturam o trivial e o cultural, o derrisório e o trágico, o público e o privado, o histórico e o anedótico, o imaginário e o real, sem distinção, de maneira aparentemente anárquica. São todos discursos, pensamentos, músicas, imagens que Hitler e o regime hitlerista roubaram, tornando impossível seu uso por um alemão do pós–guerra. Por quê? Justamente porque esses modos de expressão tornaram–se meios e técnicas de informações e de propaganda a serviço do 3º Reich.
Todavia, trata–se, certamente, de fazer um filme “sobre” Hitler. Coloca–se, portanto, a questão: quem é Hitler para Syberberg? Não é um filme sobre um indivíduo histórico, nem um filme sobre sua política; é, diz Deleuze, um filme sobre um Hitler “que só existe pelas informações que constituem sua imagem em nós mesmos”5 . É um Hitler construído com todas as peças, como um mosaico, uma espécie de Hitler construtivista, composto para nós com todas as imagens, vozes, discursos. É uma definição da imagem como conglomerado de informações. Deleuze explicita:
“Dir–se–á que o regime nazista, a guerra, os campos de concentração não foram imagens, e que a posição de Syberberg é algo ambígua. Mas a ideia forte de Syberberg é que informação alguma, seja qual for, não basta para vencer Hitler. Por mais que todos os documentos sejam mostrados, que todas as testemunhas sejam ouvidas, o que torna a informação todo–poderosa (o jornal, depois o rádio, em seguida a televisão), é sua própria nulidade, sua radical ineficácia. A informação joga com sua ineficácia para assentar sua potência, sua própria potência é ser ineficaz, e por isso mais perigosa. Eis porque é preciso ultrapassar a informação para vencer Hitler ou revirar a imagem”6.
Então, a questão – que se torna política – é saber como ultrapassar a informação, isto é, como “revirar” a imagem. Deleuze não pergunta: como não repetir Hitler? Como evitar recair no totalitarismo ou no fascismo? Isto seria uma maneira de recolocar a questão: como escapar ao sistema? Como não se deixar recuperar? Etc. Não é, repita–se, a questão de Deleuze (nem de Syberberg). Com efeito, não é o fascismo, o totalitarismo ou nazismo que estão aqui em questão, mas a propagação em grande escala da informação. É o que Deleuze explica (com Guattari) em Mil platôs, quando eles desenvolvem os elementos de uma pragmática da linguagem. Sabe–se que existe um pragmatismo linguístico que considera que certos enunciados possuem a característica de ser eficazes unicamente pela sua enunciação no interior de uma instituição que legitima seu uso (os performativos). Assim, quando um juiz declara no tribunal: eu o declaro culpado (do crime do qual é acusado), sua sentença é um ato, um performativo. Ele age pelo próprio fato de dizer. Dizer é fazer.
Mas, para Deleuze e Guattari, é todo enunciado que deve ser considerado de um ponto de vista pragmático, e não só os enunciados ditos “performativos”. Não se trata do que se faz quando “ele” é dito, mas do que se faz ao falar, seja lá o que se diga. Todo enunciado, mesmo o mais neutro, mesmo o inocente, produz efeitos que lhe são imanentes. Ele age enquanto palavra de ordem. Falar é transmitir ou propagar uma palavra de ordem, mesmo porque ele obriga a responder (ou a calar–se). Não é porque a linguagem seja naturalmente feita para comandar, mas porque todo enunciado remete a outro enunciado, que ele supõe e impõe implicitamente. Cada enunciado remete a um enunciado anterior e não a uma realidade exterior; a linguagem é sem exterioridade. Os enunciados têm, assim, o mesmo estatuto que as imagens. Deleuze e Guattari explicitam:
“A esse respeito, não acreditamos que a narrativa consista em comunicar o que se viu, mas em transmitir o que se ouviu, o que outro disse (…). É nesse sentido que a linguagem é transmissão de palavra funcionando como palavra de ordem, e não comunicação de um signo como informação”7.
Num tal quadro, a informação é tão somente transmissão de palavras de ordem de toda natureza. A pragmática torna–se uma política da linguagem (assim como a semiótica da imagem torna–se uma política da imagem). Ora, tal política repousa em grande parte sobre a ausência de exterioridade da linguagem e sobre o fato de que ela remete tão só a si mesma, fazendo–nos ressoadores uns dos outros, em suma emissores ou transmissores de informações. Isso não quer dizer que a função da linguagem seja informar ou comunicar, mas que a informação é uma das funções da palavra de ordem.
Entre as imagens e a linguagem, tem–se a impressão de que haja isomorfismo e que o problema é a cada vez concernente ao que há de mais diretamente político em Deleuze (e Guattari). Este aspecto se reencontra na leitura que Deleuze faz da obra de Foucault, na qual o visível e o enunciável são as duas dimensões do saber sobre as quais se exerce a multiplicidade das relações de poder. E quanto mais Deleuze avança em sua obra, mais se torna central o estudo das relações entre imagem e linguagem, entre ver e falar. A questão que ele extrai de Foucault é a seguinte: como sair das relações de poder? Como atravessar a linha? Mas essa questão é também a de Deleuze. Não é ele que pergunta como ultrapassar, como revirar a imagem? E como ultrapassar, como revirar a linguagem? Só que, aqui, ultrapassar não quer dizer sair. Não se sai da linguagem, assim como não se sai da imagem – porque nada há no exterior, a não ser outras imagens e outros enunciados. Eis por que se trata menos ainda de reverter a linguagem e a imagem tal como um empreendimento revolucionário empreende reverter um poder. Revirar não quer dizer reverter, assim como ultrapassar não quer dizer sair. Uma vez mais, não se trata de ultrapassar nem de reverter seja lá o que for, mas de revirar. Não se trata de se opor à palavra de ordem, de se refugiar numa experiência limite que seria o silêncio, o grito ou a música; trata–se de percorrer a outra face da palavra de ordem, o fora que é o seu material não linguístico, mas que não cessa de trabalhar a própria palavra de ordem e, por extensão, toda a linguagem:
“A palavra de ordem é sentença de morte, implica sempre uma sentença como essa, mesmo muito atenuada, tornada simbólica, iniciática, temporária… (…) Mas a palavra de ordem é também outra coisa, inseparavelmente ligada: é como um grito de alarme ou uma mensagem de fuga. Seria simples demais dizer que a fuga é uma reação contra a palavra de ordem; ela está, sobretudo, compreendida nesta, como sua outra face num agenciamento complexo, seu outro componente”8.
Esta outra face constitui o aspecto intensivo da linguagem, o aspecto pelo qual a linguagem é sem cessar trabalhada por variações contínuas, quase musicais, cromáticas que não tendem ao silêncio, a música ou o grito, mas que são tensores, amplitudes pelas quais a linguagem se empobrece ou se sobrecarrega segundo o tipo de enunciados. Se é verdade que Deleuze e Guattari citam músicos ou grandes escritores, não é porque eles são os únicos a operar uma abertura em direção ao fora da linguagem, mas porque eles dão exemplar testemunho desse fora.
Por que invocar particularmente a música, mais do que a pintura ou mesmo o cinema? Sem dúvida, seguramente em razão do cromatismo, das vozes minoritárias, murmurantes, que Deleuze e Guattari invocam nesse momento. Porém, há outra coisa ainda, que Deleuze redescobre com o cinema; é que a linguagem não atinge seu próprio fora, a não ser que ela rompa com seus laços visuais: é preciso que falar pare de estar em correspondência com ver (e, inversamente, que ver pare de estar em correspondência com uma palavra fixada ao visível). Mais frequentemente, falar é transmitir o que se vê, transmitir a informação ao que se tinha de ver alhures, e ver é olhar o que nos é dito. Tem–se aí um sistema de rebatidas, que faz com que cada forma seja controlada pela outra, mesmo que as duas faculdades não se recubram. E sem dúvida a música é a arte que mais se livrou da visão, do primado da visão (pelo menos quando ela perde sua função ilustrativa); em Mil platôs, é ela que arranca a linguagem de seus laços visuais para revirá–la. É mesmo esse o ato de revirar: liberar a linguagem do visível, de sua relação com o visível e com o percebido, quando se fala, enfim, de algo que não pode ser visto no próprio seio do visível.
“É o caso de dizer, com Blanchot: ‘falar não é ver’. Parece aqui que falar deixa de ver, de fazer ver e até de ser visto. Mas uma primeira observação é necessária: falar só rompe assim com seus laços visuais se renunciar ao seu próprio exercício habitual ou empírico, se conseguir voltar–se para um limite que é a um só tempo como que o indizível e, no entanto, algo que só pode ser falado”9.
Não se recai, então, nessa tentativa de saída para fora do Sistema? De um todo fechado sobre si mesmo? Porém, em Deleuze e Guattari, o sistema não é fechado sobre si, pois ele é reversível. Dito de outro modo, ele não cessa de fugir por todas as pontas. Todo sistema, com efeito, tenta conter, repelir, submeter essa heterogeneidade que o mina do interior. É inútil, portanto, supor que seja preciso sair da informação ou da comunicação, pois elas são apenas uma face do agenciamento, a face interior que tenta conter, limitar, submeter seu fora. Por isso, não há necessidade alguma de reverter ou de sair de um dado sistema, pois ele só opera sobre o que lhe é exterior, e o que lhe é exterior não pode ser contido ou ultrapassado numa unidade de ordem superior; é uma exterioridade irredutível, que renasce incessantemente, que faz parte do próprio sistema; trata–se, sobretudo, de marcar aquilo que, de dentro, dá testemunho dessa exterioridade; trata–se de estabelecer um diagnóstico, um levantamento das forças que dão testemunho desse fora, do fora da informação e da comunicação. Ora, essas forças são marcadas pela maneira com que elas desatam a relação de correspondência recíproca entre a linguagem e o visível, pela maneira com que introduzem entre ambos uma não–relação. É isso que Deleuze chama corte ou interrupção. Lutar contra a proliferação de informações, contra a comunicação, não é necessariamente desligar seu computador. A interrupção não consiste em cortar, mas em disjuntar falar e ver, para constituir uma não–relação de um com o outro. É por isso que, em A Imagem–tempo, Deleuze pode dizer:
“Já não acreditamos num todo como interioridade do pensamento, nem mesmo aberto; acreditamos numa força do fora que se escava, nos agarra e atrai o dentro. Já não acreditamos numa associação de imagens, nem mesmo transpondo vazios, acreditamos em cortes que tomam um valor absoluto e subordinam toda associação. (…). O cérebro corta ou faz fugir todas as associações interiores, ele atrai um fora para além de todo mundo exterior”10.
No fundo, trata–se de fender a mônada em nós, pois nossa racionalidade não para de colocar em correspondência ver e falar, imagens e linguagem; é a única maneira de liberar o cérebro e, simultaneamente, de restabelecer o liame do homem com o mundo. Com efeito, esse liame só nos é restituído em presença do intolerável, do insuportável, diz Deleuze, isto é, de todos os afectos capazes de fender a mônada e que, por isso mesmo, nos abrem ao político, porque nos tornamos o povo que esse intolerável faz sublevar–se. Diante do intolerável, cada um de nós devém um povo que se levanta. Só há política com essa condição: sentir–se devir povo quando a mônada se fende. Não se age em função do verdadeiro ou justo (em relação a um mundo possível, melhor ou ideal); age–se porque algo é escandaloso ou intolerável em relação ao mundo no qual nossas potências de vida são atacadas.
Para findar, uma palavra sobre a política em Deleuze. De certa maneira, pode–se dizer que Deleuze propõe bem pouco, se buscamos em sua obra um pensamento a propósito do governo, da racionalidade econômica ou da ecologia. Nenhuma proposição sobre essas questões, nenhum programa. Pode–se levá–lo a comparecer diante de uma espécie de tribunal, onde ele seria obrigado a assumir suas responsabilidades, sempre a respeito dessa mesma questão: o que você propõe? O que fazer com suas críticas ao capitalismo, às vidas neurotizadas, a Édipo? Qual política se constrói com seus conceitos? Etc. É que ainda não se fez o luto da filosofia como aparelho de Estado. Enganâmo–nos sobre seu papel e sua destinação. Mas se o primeiro ato político consiste em desfazer em nós aquilo pelo que vivemos sob controle, em desfazer essas maneiras de falar e de ver num mundo que não mais é nosso, que talvez nunca tenha sido o nosso, então tudo muda. Deleuze contribui muito ao tornar novamente possível o afecto político (para começar), que permite desdobrar todas as nossas forças em favor de um mundo sempre por vir.
NOTAS
- [O autor se refere a toda integração de técnicas de eletrônica, de informática etc., utilizadas nas mais variadas funções, como é comum na gestão de comunicação]. NT
- Pourparlers, 237–238 [Conversações, tr. br. de Peter Pál Pelbart, São Paulo, Ed. 34, 2ª ed., 2010, p. 221].
- Idem, p. 238 [Conversações, op. cit., p. 221].
- IT Cinéma 2: L’Image–Temps, 349 [Cinema II – A Imagem–Tempo, tr. br. de Eloisa de Araujo Ribeiro, São Paulo, Ed. Brasiliense, 1990, p. 317].
- IT, p. 352 [Idem, p. 320]
- IT, p. 352–353 [Idem, p. 320].
- MP: Mille plateaux, p. 97 [Mil platôs, vol. 2, tr. br. de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Rio de Janeiro, Ed. 34, p. 13 e 14].
- MP, p. 135. [Mil platôs, vol. 2, op. cit., p. 54].
- IT, p. 339 [A Imagem–tempo, cit., p. 307].
- IT, p. 276 [A Imagem–tempo, op. cit., p. 253].
Trad. Luiz B. L. Orlandi
FONTE
Cadernos de Subjetividade, n. 12 (2010).
Grato!