DO DIVÃ À POLTRONA: O PASSE DO GUÉRIDON – por Radmila Zygouris

La rude monnaie des rêves
sonne à présent sur
les dalles du monde.¹
Paul Celan

Outrora, quando crianças, chamávamos essa passa­gem do divã à poltrona de passe. O Mestre da escola nos ensinara que era assim que se dizia.

Esse hábito que consistia em significar que alguém se tornava psicanalista, isto é, que começava a trabalhar como psicanalista, pela designação de uma mudança na postura corporal, nunca deixou de me intrigar. Pior ain­da: pelos móveis que sustentam o dito corpo.

O Dicionário etimológico de Bloch o Wartburg dá as seguintes definições para esses móveis:

Divã, 1653, no sentido de “estrado para almo­fadas”, referindo-se aos turcos. Anteriormente de­finido “corte ou conselho”, 1558, em referência à Turquia; no século XVIII, “conselho de ministros etc.”, e também, “na casa dos notáveis turcos, sala de recepção, cercada por almofadas”. Emprestado do turco diouan, que a esses sentidos anteriores, ele próprio tomado de empréstimo do persa diwan. V. alfândega. O sentido de “móvel, espécie de sofá” é encontrado desde 1742.

Poltrona². Em primeiro lugar faldestoel (stoed da Canção de Roland é talvez um erro do copista), mais tarde faldestueil, no século XIII, faudeteuil, ain­da em 1611, contraído em fauteil, 1558. Na Idade Média designa um assento dobrável que servia para os grandes personagens, reis, bispos, senho­res. Do francique faldestôl, cf. antigo alemão faltstuol, propr. “assento dobrável” (cf. alemão falten “do­brar” e Sthul “assento”). Emprestado ao francês por línguas vizinhas: italiano faldistorio, “assento episcopal”, espanhol facistollutrin“, “estante do coro”, a pr. faldestol “poltrona, trono, coro”. Hoje em dia espalhado sobre todo o território galo-romano sob a forma e sentido do francês.

Levando em conta a etimologia – e só Deus sabe a que ponto esse recurso à origem das palavras é propalado no discurso dos psicanalistas, por vezes tomando o lugar de qualquer outra forma de raciocínio – pode-se fazer as seguintes constatações:

  1. A passagem do divã à poltrona constitui um verdadei­ro périplo cultural, que vai do mundo persa, depois turco, com seus estrados e almofadas, ao mundo germânico, depois francês, das cadeiras dobráveis.
  2. Trata-se igualmente da passagem de uma postura cor­poral enlanguescida, mole e de abandono, a uma pos­tura corporal tônica, controlada e rígida. Para além do aspecto cultural, esta modificação exige um reajusta­mento considerável da imagem corporal e de suas re­presentações pessoais e sociais.
  3. Enquanto no mundo oriental a troca verbal se fazia so­bre almofadas, no mundo germânico e, depois, francês, fazia-se sentado sobre duras cadeiras dobráveis. Mas havia uma homogeneidade de posturas entre os convivas. Onde havia almofadas, não havia cadeiras dobráveis e vice-versa. A passagem do divã à poltrona introduz, pois, uma ruptura, uma descontinuidade e uma desar­monia entre os convivas, isto é, entre os parceiros da troca verbal. Um (o psicanalista) estando sistemática­mente na cadeira dobrável, o outro (o paciente) sobre um estrado e almofadas. Um, no universo germânico; o outro, no universo turco. Passar de um ao outro equi­vale, no final das contas, à passagem do Império Oto­ mano ao Império Austro-húngaro. Se nos lembrarmos, por outro lado, que a posição deitada, exigida pelo divã, é uma sobrevivência da prática da hipnose, isso nos deixa perplexos quanto à influência do Império sobre o próprio Freud, sem nos esquecer­mos que a guerra entre esses dois impérios não estava tão distante, quando da definição destas posturas em­blemáticas dos corpos para a psicanálise.
  4. Um único traço comum permite, no entanto, passar da prática de um móvel para outro, de um universo ao outro: nos dois casos, que se trate de divãs ou poltro­nas, estes eram reservados aos dignatários, tanto leigos quanto da igreja. E o povo, será que não possuía móveis? Em todo caso, não daquela espécie que passa à posteridade por meio de uma função ritual. Donde o seguinte:

Proposição de 1 de abril de 1990:³

Para remediar a esse estado pouco reluzente da imagem da psicanálise que se propõe a ser lei­go, democrática e acessível a todas as camadas so­ciais, em vez de proceder à diminuição do ritmo das sessões e dos preços, prejudiciais ao standing da corporação, e, para satisfazer as camadas desfa­vorecidas da população, eu proponho introduzir um móvel suplementar, cuja presença será tão “em­blemática e incontornável” quanto o divã-poltrona. Esse móvel será um guéridon[4].

A definição de Bloch e Wartburg é a seguinte:

Guéridon, 1650. Nome próprio de um perso­nagem de uma pilhéria (comédia) de 1614, e que, aproximadamente na mesma data, foi introduzido num balé; a palavra tomou a seguir, rapidamente, o sentido de “canção popular e satírica”, 1626 (“Poe­ mas para os guéridons e novas canções”), aplicado fantasiosamente ao pequeno móvel que ainda hoje carrega esse nome, talvez porque, nos balés, Guéridon segurava uma tocha, enquanto os outros bailarinos se beijavam. Esses pequenos móveis ti­nham, de fato, frequentemente a forma de uma pessoa, em particular de um mouro. A própria pa­lavra nasceu, muito provavelmente, de um refrão de canção, composto dos refrões gué e laridon.

No novo dispositivo do consultório do psicanalista, o guéridon terá necessariamente de ser colocado entre o divã e a poltrona, o que certos analistas de vanguarda já fazem de modo mais ou menos consciente. Tornar-se psi­canalista será designado então: passar pelo guéridon.

Isso trará as seguintes vantagens:

  1. Tornar manifestos dois significantes recalcados (ou censurados?), do campo da psicanálise, a saber, o dom e a guérison (cura), quando não o dom da cura (de la guérison).
  2. Designar o próprio processo do se tornar psicanalista por um significante popular e autenticamente francês. A referência ao mouro permitirá uma melhor integra­ção das novas gerações de outras origens e marcará um desejo de ver a comunidade psicanalítica se abrir para um mundo menos violentamente marcado exclusiva­ mente pelo judeo-cristianismo.
  3. Recalcar (ou censurar?) os dois significantes imperiais, “divã” e “poltrona”, estrangeiros e politicamente cono­tados de antagonismos. Uma outra conotação virá ocu­par esse lugar, ela será, não mais de natureza guerreira, e sim amorosa. A metáfora do Guéridon (candeeiro) dançarino, testemunha de casais que se beijam, ilumi­nará o primado sexual de qualquer cura. Esse aspecto só será acessível aos analistas no passe do guéridon, que se terão dado o trabalho de olhar o dicionário, o que é o mínimo exigível quanto à pulsão epistemofílica de um candidato à coisa.
  4. Os psicanalistas em dificuldade, iniciando sua vigési­ma análise, poderão se beneficiar das vantagens morais e fiscais da passagem pelo guéridon, divã-poltrona ou poltrona-divã, esta apelação não precisando o sentido da viagem, o que certamente é mais fiel à lógica do inconsciente.

Nota: fazer girar os guéridons não será mais reservado aos simples charlatões, e poderá se integrar ao currículo sério de uma psicanálise didática, sob reserva, bem enten­dido, de uma aprovação da comissão da IPA – montada para esse fim.

Conclusão: o passe do guéridon inscreverá, desse modo, o movimento francês na história da psicanálise in­ternacional e, mais particularmente, européia, a partir de 1992, como precursora de uma psicanálise popular, ainda que científica, pela própria inscrição em sua apelação da condensação de dois significantes programáticos e universais.

Nota confidencial: contatos discretos já foram toma­dos com o dr. Lebovid, bem conhecido por sua luta con­tra os charlatões, que se mostrou sensível à preocupação terapêutica manifesta da proposição. Convém, no entan­to, se manter prudente quanto à filiação lacaniana sub­jacente ao projeto, qualquer referência aos próprios ter­mos de significante e passe podendo ser prejudiciais para ser admitido na IPA. Nem é preciso dizer que a formação terá, consequentemente, uma vertente exotérica para o ex­terior, e uma vertente puramente esotérica para aqueles candidatos que saberão ler nas entrelinhas.

Questão: Por que os psicanalistas são tão bobos em público?

Resposta: Pode-se contar as peripécias que levam ao sofrimento, quanto ao sofrimento, nada a dizer.


NOTAS

  1. A rude moeda dos sonhos / Soa no presente / Sobre as lajes do mundo.
  2. O mesmo acontece com a palavra poltrona. Esta, em português, vem do italiano e significava “grande cadeira cómoda” (1813). (N. da T.)
  3. Brincadeira com o texto “Proposição 9.10.67”, de Jacques La­can, em que este discute a formação do analista. (N. da T.)
  4. Guéridon, em português, pode ser traduzido por candeeiro, mesa redonda de um pé só, normalmente de tampo de mármores, na qual se põem objetos de luxo. Também é o nome de um personagem da comédia. Optei por não traduzir o termo, pois, como o leitor poderá se dar conta, a manutenção do termo em francês é fundamental para a compreensão do texto. (N. da T.)

FONTE

Texto originalmente publicado em L’être et rebus, 1990. 

Publicado em português no livro “Ah! As belas lições” (ed. Escuta, 1995). Tradução: Caterina Koltai.

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