Há um elo entre Guattari e os Guarani? Em “as aranhas, os guarani e os guattari. Por que importa ativar a força micropolítica do trabalho com o inconsciente?” Suely Rolnik fala acerca desse elo por meio do nome.
De acordo com Suely, “Não só os termos guatary e guetari existem no idioma guarani, mas o próprio sentido de cada um deles é portador de uma reverberação entre o mundo dos Guarani e o mundo que Guattari dedicou-se a construir, ao longo de sua vida, sempre junto com outros, em agenciamentos coletivos que variaram segundo diferentes momentos e contextos.
O primeiro vocábulo, guatary, é composto da conexão entre dois termos: guata que significa “caminhar” e ry que significa “fluxo”. Trata-se da junção entre caminhar e fluxo, cuja tradução seria “o caminhar no fluxo”, que podemos entender como o caminho que se traça no fluxo da fita de Moebius pulsional. O segundo vocábulo, guetari, significa “ainda”. Juntando ambos, Guattari significa um caminhar que não se dá no espaço nem no tempo cronológico, mas no fluxo pulsional de mutação de si e do mundo, no qual há sempre um “ainda” – ou seja, O DEVIR NUNCA SE ESGOTA.
Ora, isto descreve precisamente a perspectiva que conduziu o modo de viver daquele que recebeu este nome e, inextricavelmente, a invenção de seus conceitos e de tudo mais que criou no transcurso de sua existência.”
Para Suely, existem “outros tantos Guattaris que ousaram colocar-se fora do encosto da tradição moderna ocidental eurocêntrica e, desta perspectiva, construíram ferramentas conceituais-pragmáticas para exorcizar esse feitiço, de modo a desativar o regime de inconsciente colonial-racial-patriarcal-capitalista próprio a essa tradição.
Tal perspectiva, assumida como herança e reiteradamente defendida neste ensaio, poderia ser sinteticamente descrita como o ponto de vista da pulsão em seu exercício ativo: potência de transfiguração e criação de novos territórios. A potência que, como vimos, foi (e continua sendo) desviada deste seu destino ético pelo regime de inconsciente dominante na referida tradição, para ser instrumentalizada a serviço da acumulação de capital.
É nesta perspectiva que Guattari se encontra com os Guarani, confluência que se apresenta curiosamente no significado de seu nome na língua desse povo indígena. Tal perspectiva é uma das camadas do agenciamento que se operou, em mim, entre as sensações dos efeitos de meu encontro com os vocábulos desse idioma e as marcas desse pensador inscritas na memória de meu corpo, apesar da diferença abissal entre seus (nossos) respectivos mundos. […] Tecer teias nesse abismo entre mundos, de modo que a confluência entre eles se faça presente e outros mundos possam emergir desse encontro, não é nem um pouco evidente, sobretudo para quem se situa no topo ou próximo a ele na tal hierarquia trapaceira. […]
O caminho para construir mundos, a partir das reverberações que transpõem o tal abismo, é cheio de idas e vindas, equívocos de rota, tropeços em pontos cegos e outros tantos riscos. Mas dispor-se a percorrê-lo é a exigência ética que só pode ser enfrentada coletivamente, embora ela seja assumida singularmente em cada sujeito. Tal enfrentamento se dá num processo experimental de criação, orientado por aquilo que emerge das teias que vão sendo tecidas entre potências e epistemes singulares que, de distintos modos e com diferentes linguagens, colaboram para realizar o descarrego colonial e devolver à vida sua potência ativa.”
Leia o texto completo no livro PSICANÁLISE E ESQUIZOANÁLISE: DIFERENÇA E COMPOSIÇÃO (org. Anderson Santos ( @clinicand_ ), n-1 edições , 2022).