Em 26 de dezembro de 2013, Eric Favereau, publicou no jornal Liberátion, um belo artigo sob o título Emmanuelle Guattari. Une saine enfance [Emmanuelle Guattari. Uma infância saudável]. Nesta semana me encontrei com esta publicação, e hoje foi um prazer traduzi-la para o português.
Para aqueles que se interessam pelas contribuições de Félix Guattari e/ou pela clínica La Borde, será um bom encontro através das palavras de sua filha Emmanuelle Guattari, conhecendo momentos de sua infância na La Borde, a convivência com seu pai, e sua vida pessoal neste movimento de memória, da infância entre os loucos e permanência neste espaço, onde continua atenta as ameaças das “normas” que ainda buscam atravessar La Borde.
A filha do psicanalista e filósofo cresceu nas trilhas de seu pai na clínica de La Borde, com os loucos.
Manou, filha de Félix Guattari… há pior filiação [il y a pire comme filiation]. Emmanuelle, conhecida como “Manou”, é a filha deste magnífico filósofo, com um sorriso caloroso, que durante muito tempo co-dirigiu, com Jean Oury, este lugar único que foi – e continua ser – a clínica de La Borde, próxima de Blois (Loir-et-Cher).
Neste outono, Emmanuelle Guattari publicou dois pequenos livros em torno deste lugar mítico, incluindo a Petite Borde. Parece grande coisa [L’air de rien], com palavras esculpidas, nas pequenas histórias que ela conta, mostra o milagre desse lugar que viu conviver com os loucos, cuidadores, mas também suas famílias.
Emmanuelle Guattari é doce, sensível. “Ela tem uma forma de delicadeza, eu nunca a vi irritada“, diz sua grande amiga, Marianne. Toda sua infância, Manou passou com os loucos, neste grande parque e castelo que não tinha esse ar. Um espaço onde a terra se mistura com o céu, perdida no campo, com um prédio central e outras pequenas casas espalhadas pelas florestas. Mais de uma centena de pacientes, a maioria psicóticos, vivem lá. Félix Guattari e Jean Oury são os dois carvalhos do lugar. Félix Guattari é um grande intelectual, amigo de Gilles Deleuze, e muitos outros. Jean Oury é médico, psiquiatra, um talento clínico reconhecido por todos. La Borde, nos anos 70, é um lugar magnífico: tudo circula, os pacientes e também as grandes figuras intelectuais do momento.
“Um dia, escreve Emmanuelle Guattari, enquanto esperava no carro, Bertrand, um paciente, me disse com um sorriso: “Christian e eu, estamos esperando que nossos dentes voltem a crescer.” Eu balancei a cabeça com um beicinho e um encolher de ombros: “Isto não pode acontecer.” “- Sim, continua ele, mas ainda podemos esperar.“
Emmanuelle Guattari está feliz. Sua mãe, enfermeira, também trabalha na La Borde. “Nós sabíamos que os internos eram loucos, obviamente. Mas La Borde, antes de tudo, era nossa casa. Os habitantes, dizíamos também que os pacientes, não eram nem mais nem menos. Eles estavam lá e nós também. Nós sabíamos, nós compreendíamos. Nós rapidamente adquirimos a sensação de poder fazer certas coisas com os habitantes“.
Ela fala sobre La Borde, como outros falam sobre a cidade onde cresceram. “Na infância, também tivemos consciência que este lugar era como um refúgio, para fugir da doença. Alguns saíram de um enclausuramento muito difícil.” Mas escrever sobre isso não é uma ideia engraçada? Até mesmo infantilidade? “Se houve um disparador, ele remonta à uma grande década“, diz Emmanuelle Guattari. “A “Creche” de La Borde, é o nome do berçário para as crianças do pessoal da equipe.” Esta creche está localizada no mesmo local da clínica. Continua em pé, hoje, está ameaçada de fechamento. As autoridades consideram que essa proximidade não é boa para as crianças. “Nós, as pessoas que haviam passado nossa infância na La Borde, fomos solicitadas a escrever cartas de apoio. É aí, talvez, que eu compreendi.” Entendi o que? “Estávamos conscientes, com certeza, de ter tido um passado singular, mas até então, não tivesse me demandado mais reflexão.” A infância se conjuga sem falsa fuga com as dores da loucura? “Era um lugar de cuidados. Nós eramos muito livres, nos arrastávamos, mas ainda eramos crianças com nossas preocupação de crianças.” Emmanuelle Guattari solta essa bela pergunta: “Evidentemente, que restam marcas e questões. Qual é o real quando você viveu essa infância? O que fazemos no mundo? Sim, surgem estas questões. Na infância, nós vimos coisas particulares: as pessoas que não podiam, por exemplo, passar por uma porta porque era impossível para elas, isso fica na sua cabeça. Estas são questões profundas, não?“
Aos 8 anos de idade, seus pais se separam. E, com sua mãe e seus irmãos, eles viverão na ZUP de Blois, onde vivem muitas pessoas de La Borde. Após o liceu, Emmanuelle vai para Paris. “As crianças de La Borde tinham, de fato, destinos comuns“, diz. Ela estudou História. “Eu fui para os Estados Unidos. Eu queria morar na cidade e tive a possibilidade de viver em Nova York.” Terminou seus estudos, dá aulas. E, todos os anos, retorna à clínica.
Neste mês de agosto de 1992, ela está na La Borde. Seu pai também. Ataque cardíaco. “Eu amava muito meu pai“, disse ela, lentamente. Quem não o amava? Desde o pós-68, ele era uma das figuras mais calorosas, com seus cabelos em batalha, seu sorriso onipresente, sua força de engajamento. Tinha de vê-lo animar assembleias gerais com os loucos. Félix Guattari era sorridente, igual a si mesmo, dividindo seu tempo de palavra, em incrível hospitalidade para o outro. Emmanuelle Guattari hesita. “Deixou-nos com sua obra, seus papéis. O que fazer?” Ser filha de Félix implica certas tarefas: “Meu pai tinha muitos arquivos. Foi uma grande responsabilidade. Foi necessário organizar. O IMEC [Institut Mémoires de l’édition Contemporaine, ndlr] nos ajudou muito. Primeiro, meus irmãos cuidaram disso, depois, eu assumi a entrega de seus arquivos.“
Quando seu pai morreu, Emmanuelle, seu marido diplomata e três filhos decidiram finalmente voltar para a França. Sua mãe morreu três anos mais tarde. “Agora? Eu estou indo a La Borde, em 15 de agosto, para a quermesse. Há sempre essa atmosfera, a mesma, única, uma mistura de doçura e circulação.” Como tantos outros, ela imagina que o que ameaça a clínica não é tanto a morte de seu fundador, Jean Oury, mas o mundo das “normas”. Para aqueles que não compreendem, Jean Oury como os outros de La Borde contam a mesma desventura.
É a história da cozinha. Um lugar importante, cada cuidador como cada paciente tinha um papel, um lugar. Nos anos 90, ditaram as regras e a higiene foi imposta. Por medo de sabe-se lá quais micróbios, foi necessário colocar tudo nos padrões. Acabaram-se as refeições coletivas, tão terapêuticas quanto socializantes. Não há mais pacientes servindo e cozinhando. Cada um em seu lugar. Isto é, sem lugar singular.
Emmanuelle Guattari colocou de lado as aulas. Ela escreve. “Eu herdei de meu pai o hábito de nunca mover as coisas, nem os móveis“, diz ela. “Ele era muito afetivo. Quando lhe foi oferecida uma pintura, ele procurou o lugar onde coloca-la, depois não moveu mais.” Se arrepende da América? “Eu descobri o horizonte nos Estados Unidos. Em Blois, está chovendo, é um nevoeiro, mas eu gosto dessa paisagem.” Então essa lindas palavras: “Eu sempre tive o sentimento de ter o céu acima da cabeça. Os mortos voltam quando chovem.“
Em 4 datas:
1964: Nasceu em Blois (Loir-et-Cher), viveu na La Borde, com seus pais.
1987: Se mudou para os Estados Unidos.
1992: Em agosto, morte de Félix Guattari.
2013: No outono, publicou o Petite Borde, depois Ciels de Loire (Mercure de France).
Tradução: Anderson dos Santos.